segunda-feira, 19 de outubro de 2015

Guiné 63/74 - P15266: Notas de leitura (768): “Jarama", por Albino Barbosa (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 9 de Dezembro de 2014:

Queridos amigos,
Chega-se ao fim da obra com a sensação desconfortável de que o autor tinha bons fios para o enredo mas muita pressa em mandar o conteúdo para a tipografia. O ambiente é descrito com bastante sobriedade, é um quartel para os lados do Corubal, há colinas, ataques com foguetões e militares que vão para os abrigos com capacetes. Há perseguições de guerrilheiros durante dias, é aliás um dos dados curiosos da trama, a narrativa no verso e reverso.
Ficam-nos parágrafos empolgantes nesta obra que parece quer ficar no semianonimato, coisa estranhíssima.
Se fosse possível, gostava muito de conversar com Albino Barbosa, ouvir da sua boca o grande romance que ficou por escrever.

Um abraço do
Mário


Jarama, por Albino Barbosa

Beja Santos

Parece uma edição semiclandestina, diz que é edição de autor mas não há mais qualquer outro elemento de referência. Lê-se e somos arrastados pela singeleza, é certo e seguro que este autor patrulhou vezes sem conta à volta do Corubal, o título talvez devesse ser Djarama, palavra iconográfica dos Fulas, é provável que o autor tenha dúvida em chão Fula. Usava capacete, o que indicia que toda esta trama narrativa poderia ter tido lugar nos primeiros anos da guerra, noutros trechos parece que estamos no adiantado da guerra. Descreve o lado “amigo” mas também faz incursões junto do inimigo, há um ataque do PAIGC, há um comandante da força que flagela aquele destacamento e vê-se que é um homem estruturalmente convicto: “10 anos de combates, eram muito tempo na vida de uma pessoa. Mas tinha que continuar. Tinha consciência de que era a única forma de voltar em paz à sua terra, quando a guerra acabasse. Preferia sujeitar-se a todos os sofrimentos, a voltar à humilhação que era a convivência com os brancos em perfeita desigualdade de possibilidades”. Na sequência ocorre a flagelação, dentro do quartel a reação parece ser competente: “Tudo tinha sido preparado até ao pormenor, para a eventualidade de um ataque. O capitão dera instruções precisas e experientes. Os militares tinham sido instruídos minuciosamente. O canhão disparou algumas vezes, até que encravou. Os morteiros continuaram a fazer fumo conforme as indicações que se encontravam dentro dos espaldões”. O atacante retirou, com baixas e pouco antes do nascer do dia passaram para a outra margem do rio.

Mudamos de episódio, um especialista em minas e armadilhas está em plena atividade, é uma das descrições mais emocionantes do livro:
“Despiu a camisa, se houvesse alguma armadilha ligada com arames, daria por isso, ao contacto com a pele. Movimentos lentos, muito lentos, para ter tempo de parar sobre qualquer pressão. Ajoelhou-se, não sem primeiro, com as mãos, verificar se pisaria outra mina. Curvou-se. Soprou a areia. A mina continuava tapada. Começou levemente, com os dedos, a afastar areia em redor, devagarinho. À volta não havia fios.
Tocou-lhe com os dedos. Era uma mina de madeira. Pensou no que diziam os livros, mas tinha apenas a imagem de alguns desenhos numa folha de sebenta. Tentou recordar o nome dado esses engenhos. No essencial sabia como funcionava. Limpou a areia por cima até a ter à vista. Ali estava. Um caixotinho daqueles. Se rebentasse naquele momento, levava-lhe a cabeça, tal a forma como estava debruçado. Continuou a limpar à volta até aparecer o detonador, no topo. Finalmente o pior estava à vista. De que tipo seria o detonador? Não conhecia. Uma parte estava metida dentro do trotil. Se o puxasse devagar, talvez se soltasse… Hesitou. Respirou. Olhou à volta. Sentiu qualquer coisa indefinida. Estendeu-se ao comprido, com a cabeça sobre o detonador, até cheirar o explosivo. Levemente, e com a maior calma possível, esforçando-se por não tremer, aproximou o polegar e o indicador em tenaz. Envolveu o detonador. Rodou-o não mais que um milímetro, para um lado e para o outro. Sentiu-o quase solto do explosivo. Leve de mais. Experimentou puxá-lo. Devagar.
Obedeceu. Não lhe pareceu haver qualquer resistência ao movimento. Puxou-o mais. Devagar. Até que lhe viu a outra extremidade. Tirou-o para fora da caixa. Levantou-se. Olhou-o bem. Estava resolvido”.
Mas era uma mina muito traiçoeira, descobriu, depois de escavar à volta, outra mina, continuou a trabalhar friamente, mesmo com uma enorme dor de cabeça. Ficamos a saber que o seu nome é Serrano. A alimentação do quartel é muito deficiente, Serrano sente-se cativado por aquelas crianças de olhos grandes, negros, humildes, sem quaisquer traços de maldade. À volta do quartel há população constituída por Fulas e Mandingas, e sabemos que há uma parada onde se perfila uma pequena construção de cimento, encimada por uma figura de Nossa Senhora de Fátima.

Em nova sequência, temos uma perseguição das nossas tropas a uma força de guerrilha, a cadência aprece plausível, uma perseguição de vários dias é que não, ainda por cima numa marcha quase trepidante, perseguidos e perseguidores de quando em vez descansam, há para ali pequenas elevações, agora a marcha é mais cambaleante, ainda por cima por ali deambulam sob forte trovoada, seguem pelo trilho deixado pelos guerrilheiros, um helicóptero lança-lhes alimentos, mais adiante tropas de um outro destacamento vieram para revezá-los, eram tropas africanas. E do lado amigo passamos para o lado inimigo: “Estavam extenuados. Andavam há seis dias no mato. Quatro dias de perseguição violenta. Passar para o outro lado do rio Corubal. Só que para isso precisava de algum tempo. E a tropa deveria estar ao longo do rio a esperá-los. A companhia que os perseguia tinha recebido apoio do helicóptero. Talvez a recolha de algum ferido, pensaram. E ao fim do dia tinha desistido, voltaram para trás. No dia seguinte passaram sem dificuldade o rio”. Mais adiante há outra perseguição, ou talvez a consequência da anteriormente reportada, desta feita o inimigo reage com fogo, tem artilharia da outra margem do rio.

Mudamos de sequência, temos um capitão de 40 anos que casa com uma moçoila com pouco mais de 20, o capitão Barros e a Mariana. Esta irá deslumbrar-se com o alferes Félix, encontrar-se-ão em Bissau, os dois têm na face a cor da paixão. Ciente do que se passa, o capitão manda Félix para uma escabrosa operação, foi uma mortandade, veio-se a saber da perfídia do capitão, as coisas acabaram mal. História de amor mais delicada é a de Carlos que durante as férias encontrou Helena, em Setúbal, também se acende a paixão, quando ele regressa à Guiné ambos têm grandes planos.

Outra sequência, outra história, desta feita um ataque com foguetões. E depois continuam as obras para construir um heliporto, nesse momento apercebemo-nos que Carlos e Serrano estão no mesmo destacamento perto do Corubal. Chegam dois oficiais tirocinantes, o Alferes Quaresma e o Tenente Crispim, deles o autor traça uma água-forte. Quanto a Quaresma: “Muito magro, muito alto, cabelo liso. A farda nova, larga, dava-lhe o aspeto de uma carcaça ambulante. Os olhos simples e francos de homem bom. O enorme nariz, destoava. Quando se ria, ou quando dava ordens, viam-se-lhe apenas por baixo do bigode os dentes brancos”. Quanto ao Crispim: “Baixinho, musculoso, atarracado, cheio de ginete, extremamente complexado. Os complexos residiam no facto de ser extremamente baixo. Voz de galo capão, gostava de dar ordens. Gostava de se ouvir a si próprio. Como não conseguia impor-se pelo respeito, impunha-se pelo medo”. E seguem-se peripécias, os oficiais tirocinantes não ficam bem no retrato.

Há um episódio dramático à volta de duas viaturas que vão buscar água, seguiam relaxados, um ataque surpresa só poupou a Rafael, a descrição é muito equilibrada, caminhamos em fuga com Rafael e com o seu corpo brutalmente ferido.

Estamos perto do fim, Carlos sente-se massacrado por tanto sofrimento, vem de férias, está decidido a não regressar. E parte com Helena para o exílio.

É dentro destes quadros, por vezes voláteis, pouco articulados, que encontramos parágrafos de grande envolvência, Albino Barbosa não está a contar histórias, não é a voz de entreposta pessoa, viveu seguramente o que conta, refugiou-se numa estranhíssima edição de autor, nem sempre bem amanhada, ficamos com a sensação de que é um esboço de um romance a que faltou coragem ou disciplina para esculpir durante muitíssimo mais tempo. Paciência.
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Nota do editor

Último poste da série de 16 de outubro de 2015 > Guiné 63/74 - P15257: Notas de leitura (767): “Como Deus me guardou”, por Agostinho Soares dos Santos, Edição de autor, Porto, 1990 (Mário Beja Santos)

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