terça-feira, 6 de outubro de 2015

Guiné 63/73 - P15205: O nosso querido mês de férias (15): em agosto de 1971, entre a praia da Nazaré e as tertúlias de Vila Franca de Xira... enquanto em Lisboa, tudo na mesma, isto é, a vida corria... (Hélder Sousa)













Nazaré > Sítio da Nazaré > 24 de novembro de 2007 >  A terra que é, toda ela,  um magnífico "postal ilustrado",  e onde o Hélder Sousa,  passou 15 dias das suas férias da Guiné em agosto de 1971...

Fotos: © Luís Graça (2007). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem: LG]



1. Mensagem de Hélder Valério de Sousa [ ex-Fur Mil de TRMS TSF, Piche eBissau, 1970/72]


Data: 30 de setembro de 2015 às 15:21
Assunto: Ainda as "viagens de férias". A propósito da "sondagem/inquérito".

Caros camaradas

Incentivado pelo comentário do Carlos V e, já agora, pelo que ele escreveu relembrando as suas férias, posso acrescentar mais alguma coisa às minhas, que entretanto foram sendo relembradas. Enquanto escrevia vi o comentário do Luís sobre o casamento, mas sobre esse assunto, as razões, os motivos, podem ficar noutro artigo.

Realmente o custo das viagens de ida e volta deveria ter sido então os tais 6.190$20 que foram liquidados em prestações. Acho que sim.

É bem verdade que isto que nos foi proposto para relembrarmos as nossas férias (*), onde foram passadas, se é que foram, e quantas vezes, não é uma verdadeira sondagem (palavra agora muito em voga), é apenas um inquérito, um incentivo à participação e que também pode servir para 'medir' mais coisas, por exemplo os nossos "estados de alma", a situação da chegada, a ansiedade, ou não, do regresso, e também sobre a capacidade económica de quem veio gozar férias à "Metrópole".

Não é certamente surpresa para ninguém que naqueles tempos a diferenciação 'social' e por extensão a hierarquia militar originasse situações de potencial económico diferentes para as diferentes 'camadas'. Por isso as respostas ao "inquérito" acabam por reflectir isso mesmo, não vejo razão para criticar a existência, em si mesmo, da "sondagem", basta mudar o nome e concluir o que já foi referido e que é que também, ainda hoje é assim, aqueles que tinham um enquadramento mais baixo tinham, em regra, menores habilitações, menores rendimentos e como tal, também de um modo geral, acedem menos a estes meios informáticos, pelo que a sua "amostra" fica prejudicada. Mas explicada.

Voltando às viagens...

A Guiné tinha a 'vantagem' em relação aos outros TO (Angola e Moçambique) de ser mais perto e os custos das viagens serem menores. Daí que, para aqueles que tinham meios económicos próprios, ou que os conseguiram obter, a partição (quando possível) do período da comissão em três permitia as tais duas viagens. Foi o que aconteceu comigo. Cheguei lá na primeira metade de Novembro de 70 e vim de férias na segunda metade de Julho de 71, oito meses depois, sensivelmente. A 2ª viagem foi de meados de Março a meados de Abril de 72, também sensivelmente.

Quanto às reacções quando cheguei e às vésperas do regresso, acho que não foi muito diferente do que já li por aqui, claro que com a 'nuances' próprias.

O Hélder Sousa no seu quarto em Bissau
(c. 1971/72)... Elegantíssimo
Não me recordo se avisei da data exacta da chegada para me irem buscar ao aeroporto mas acho que sim pois já tenho ouvido dizer que vinha 'muito magro e que um braço dava para agarrar pela cintura' (tomara agora essa 'elegância'....).

Retenho que no imediato me sentia como se estivesse num local estranho, as coisas, o movimento à minha volta não se encaixavam no meu (re)conhecimento. Parecia que estava 'no ar'. 

Aos poucos fui-me habituando mas o que mais me caracterizava era o meu mutismo, coisa estranha para a maioria dos amigos, já que eu era um tanto expansivo. Visitei os vários familiares procurando vincar que 'estava bem'. Fiz uma quinzena de férias na Nazaré, na casa do costume, da D.ª Maria José e do Sebastião Pinto Caneco.

Lembro-me de olhar por vezes à volta e aquela alegria toda do pessoal na praia, ao sol, no mar, etc., me incomodava quando o pensamento voava para a Guiné (e isso acontecia frequentemente), sendo que aí recordava uma passagem dum poeta português que, estando em Angola, reflectia sobre o que se passava na rectaguarda e escrevia ".... em Lisboa, na mesma, isto é, a vida corre!". Assim era ali também.[O poeta é o Manuel Alegre, que escreveu o já clássico "Nambuangongo, meu amor", e que curiosamente voltou a Nambuangongo, 48 anos depois, em 2010.] [LG].

O emblema da UDV - União
Desportiva Vilafranquense
Estive com amigos da "vida artística", de várias interpretações de como a sociedade devia evoluir.

Tive uma longa confraternização (quase um dia) com um amigo que entretanto tinha mudado de nome e de morada, onde se discutiu muito sobre a situação do País e da guerra, em particular da Guiné. Estive com outros que me davam outras perspectivas. Cada um procurava captar a minha atenção e simpatia. Fui-me mantendo equidistante, mas atento.

Em Vila Franca, terra da minha formação de cidadania, fiquei também um tanto perplexo como as coisas evoluíam. Antes de me ir embora havia uma Pastelaria, a "Lezíria", que era um local normalmente frequentado pela classe média e onde as 'mães de família' passavam o tempo com as suas meninas, bebendo chá, bolos, galões e outras coisas próprias das pastelarias. Era um local com pesados reposteiros a decorar os vãos de janela.

Pois esse local foi-se transformando aos poucos num 'ponto de encontro' em horas mais tardias, para aqueles de nós que saíam
 da Secção Cultural da UDV  [, União Desportiva Vilafranquense] 
e que iam beber um copo de leite quente retemperador, em tempo de inverno. Esse local rapidamente passou a ser conhecido entre os jovens como o "Kremlin", como alusão à actividade conspiratória que ia acontecendo.

Aquando dessas minhas férias, em Agosto de 71, já era mais conhecido como "Mesopotâmia".... acho que injustamente, mas era um 'sinal dos tempos'....

Quando se aproximou a data do regresso as coisas ficaram um bocado mais tensas. Os silêncios maiores. O olhar mais vago, mais "ausente". Mas a determinação mantinha-se e com maior ou menor angústia lá se embarcou para o regresso a Bissau, com passagem e paragem sem saída, no Sal. À chegada o tal choque térmico já por várias vezes aqui relatado, foi tal e qual como descrito.
Depois,.... depois foi o retomar da actividade!

Da 2ª viagem darei conta depois.

Abraços

Hélder Sousa

__________________

Nota do editor:

(*) Último poste da série >  5 de outubro de 2015 > Guiné 63/73 - P15204: O nosso querido mês de férias (14): À procura de aconchego, e de amor temperado com algumas paródias, que um mês, naquele tempo, passava muito depressa (José Manuel Matos Dinis)

6 comentários:

Omis Syrev Ferreira disse...

Meu jovem Amigo:
Duas vezes? Pôssaras, qu'assim até dava gosto ser militar.
Aceita lá um abração e aguardo que mandes mais.

Anónimo disse...



Camarada e amigo Helder

Belas fotos das terras onde passaste férias que contrastam bastante com o teu estado da alma já inadaptado às relações e rotinas com os amigos e familiares. Trinta dias é pouco tempo para um homem se libertar daquele ambiente de guerra para mais com a certeza de ter que lá voltar. Nas férias ou no regresso final quase todos, julgo eu, passamos por essa fase "de não te rales" e "por favor deixem-me em paz".
A tua descrição está muito perfeita e realista. Aguardamos a próxima.
Um grande abraço. Francisco Baptista

JD disse...

Viva Helder!
Por várias razões, comento o teu post depois de ter deixado uma mensagem a quem comentou o meu. É que hoje o Barbosa completou sete anos de alegria e vida, coisa normal para o puto, mas extraordinária para mim. Além disso tive um almoço de putos cascaenses da minha geração, situação a que se recorre com vontade compulsiva. E durante o final da tarde li uma interessante análise sobre o recente processo eleitoral, da autoria do nosso amigo escalabitano, a que não evitei um comentário.
Sobre este teu post, devo dizer que pareces ter bebido do estilo do nosso Chefe Luís Graça, tendo em conta as circunstâncias sociais que condicionavam a condição militar, mas notei que ainda acrescentavas uma alusão à pastelaria e ao UDV onde deves ter integrado interessantes tertúlias.
E agora, peço desculpa, mas está a dar um febril Sporting-Benfica, que parece excitadíssimo. Não leves a mal, mas estou curioso até me fartar.
Um abraço
JD

Mário Vitorino Gaspar disse...



Pois Camarada Hélder de Sousa “parecia que estava no ar”. Eu decerto que nem para lá caminhava, mas para o fundo da terra.
A Nazaré era local preferido dos habitantes de Vila Franca de Xira, aliás o filho da terra Alves Redol era por onde andava.
A “Pastelaria Lezíria”, não era local que frequentasse, mas referes, e com razão ser um espaço das pessoas de bem da terra.
Na então vila existia espaço para todo e qualquer Grupo. Para os amantes da Corrida de Toiros; Pseudo-Intelectuais; muitos outros e a Secção Cultural do UDV (era previsível ser conhecida como “Kremlin” – andei nesse passeio, não me arrependo). Lá conheci e privei com o Escritor Alves Redol, que escreveu um dos livros da minha vida: “Fanga” – a libertação do homem (Manuel Caixinha) do eterno tirano, e pela primeira vez é ele, abandona os cordéis a que se encontrava ligado. Liberdade. Aí eu aprendo.
“Café Central”, “Maioral”, “Zé dos Frangos”, “Zé Barbeiro”, muitos mais… e Tascas. Apareceu uma casa onde íamos petiscar, frequentada por José Júlio, Mário Coelho, José Trincheira e mais, não recordo o nome.
Era amigo de José Falcão, nunca imaginei que o seu sonho se tornasse realidade e a última vez que o vi foi na Estação da CP do Setil.

Mário Vitorino Gaspar

Mário Vitorino Gaspar disse...


Não disse que José Facão foi um Matador de Toiros Vilafranquense que conquistou o mundo tauromático, e no auge da carreira morreu numa Praça de Toiros.
Desculpa Camarada Hélder.

Mário Vitorino Gaspar

Hélder Valério disse...

Meus amigos

Este foi um relato possível das minhas primeiras férias aquando da estadia na Guiné.
Poderia entrar em mais pormenores mas acho que isto é o essencial e dá uma boa panorâmica do que se passou.
No fundo, acho que muitas das minhas emoções e reacções foram comuns a tantos outros. Pelo menos por aquilo que já li e também pelo que fui conversando com alguns.
E acho também que talvez não pudesse ser de outra maneira.
Seria diferente estar mais ou menos a recato, em Bissau, ou até mesmo em acções menos 'exigentes' e poucas horas depois desembarcar em Lisboa no meio de toda aquela diferença, de temperatura, de roupas, de conversas, de ambiente. Tudo muito estranho.

Caro Veríssimo, não sejas 'invejoso'. Aliás, já passou!
Caro Francisco, foi isso mesmo, principalmente aquela do "deixem-me em paz".
Caro Zé Dinis, peço desculpa mas não sei a que Barbosa te referes, mas seja lá quem for, aproveito para te fazer portador dos meus parabéns. 7 anos é uma boa etapa da vida. Relativamente à parte em que dizes que devo "ter bebido do estilo do nosso Chefe Luís Graça, tendo em conta as circunstâncias sociais que condicionavam a condição militar", pois olha que não sei se isso é um 'elogio' ou 'antes pelo contrário'....
Caro Mário Gaspar, por força da minha ligação à aldeia onde nasci ainda apanhei uma parte daquilo que eu chamo a "geração das tabernas" e no meu crescimento apanhei a "geração dos cafés". Houve depois a "geração dos bares", a "geração das 'boites'", a geração das discotecas" e agora não sei bem qual é...
Quanto a 'grupos' acho que isso está bem retratado num livro do Sttau Monteiro, salvo erro o "Angústia para o jantar", em que há (ou havia...) uma 'tendência' para nos congregarmos em grupos, diferentes nos seus propostos, as 'maltas', e em que os seus membros podiam estar em mais que um, como por exemplo "a malta dos copos", a "malta da bola", a "malta do cinema" a "malta dos bailes", a "malta da política", etc.
Os lugares que indicaste naturalmente que são meus conhecidos, fui a todos e ainda também ao "Chave D'Ouro' e à "A Brasileira" jogar bilhar e dominó. Quanto a esses 'matadores' só não tive contactos com o falecido José Falcão pois quanto ao José Júlio e ao alhandrense José Trincheira sou contemporâneo e até fiz, no âmbito da Escola, uma entrevista ao José Júlio depois da sua alternativa, por intermédio da sua prima Marieta, minha amiga e colega da escola primária. Ao Mário Coelho, também conhecido por "Pecas", tinha acesso por intermédio do seu pai que tratava do jardim/quintal e para o qual entrava através da loja do meu pai.

Hélder S.