terça-feira, 18 de agosto de 2015

Guiné 63/74 - P15015: Nas férias do verão de 2015, mandem-nos um bate-estradas (21): Esta Europa vai definhar por anemia, implosão e autofagia (Francisco Baptista)

1. No seu bate-estradas do dia 9 de Agosto de 2015, o nosso camarada Francisco Baptista (ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 2616/BCAÇ 2892 (Buba, 1970/71) e CART 2732 (Mansabá, 1971/72), fala-nos da nossa velha Europa.

A minha mulher pediu-me para fazer algumas compras num super-mercado próximo. Antes de ir lá decidi passar pela minha amiga Lurdinhas, dona da tasca Badalhoca, a comprar dois tocos de presunto que podem ser bons para cozer e descarnar o bom presunto que têm, como para comer cru. O presunto junto do osso é o mais seco e o melhor.

Depois duma conversa amigável e apimentada, pois a Lurdinhas conforme o tom da conversa tanto pode chamar-me meu grande amigo como outros nomes que na gíria do Porto antigo e popular serão aceitáveis ou não, para isso tem que se pedir aos clientes que tenham olhos e ouvidos sensíveis, pois para além da audição conta muito expressão.

Depois fui ao banco onde uma funcionária simpática me disse que as minhas fracas poupanças depois de terem acabado o depósito a prazo só poderiam ter um juro de 1 por cento ao ano. Chegámos a tal ponto que para termos bancos como os países ricos, vamos ter que pagar a essa corja de ladrões, banqueiros, políticos e associados, que vão à falência mas quem fica na miséria somos nós.

Saí do banco, pouco confortado, mas sem vontade de descarregar a minha raiva sobre uma simples funcionária, a quem não podia imputar responsabilidades e para mais uma senhora, entre os 30 e 40 anos tão simpática e que nem será muito bem paga.

Depois fui ao supermercado fazer as compras. Dirigi-me a uma caixa. À minha frente estava somente uma cliente com bastante compras, na caixa ao lado estava uma jovem senhora africana, de aspecto urbano e delicado, com cerca de vinte cinco anos, que empurrava uma bebé num carrinho. O jovem de serviço da caixa contabilizou os artigos da senhora que somavam 24 euros e pouco. A cliente meteu um cartão multibanco que me pareceu tanto a mim como ao jovem da caixa ela não sabia utilizar muito bem. Depois de algumas tentativas e ensinamentos o "caixa" chegou à conclusão que o cartão não teria dinheiro de saldo. A jovem senhora em face disto, puxou da carteira e deu vinte euros, procurou outros trocos que não encontrou. Como tal começou a retirar artigos, talvez os menos necessários, o primeiro não recordo, sei que o segundo era massa italiana, o terceiro que o rapaz da caixa ia retirar-lhe do saco, não sei se eram batatas, ela não deixou, protege-o até como se do pão da vida se tratasse.

Logo atrás dela estavam três cavalheiros, com cerca de sessenta e tal, setenta anos. O que estava mais próximo começou a olhar para a senhora e para a menina no carrinho, com algum mal-estar patente na sua expressão facial. De repente vi-o tirar uma nota de dez euros da carteira que deu à senhora e dizer ao caixa: Por favor volte a meter tudo no saco. A jovem, muito agradecida, pagou e devolveu-lhe os 5 euros e tal do troco, apesar da insistência dele para que que ficasse com eles.

A seguir reparei que este homem depois de fazer essa dádiva, como quem se liberta de um pesadelo, ficou mais calmo. Reparando melhor eu reconheci o homem como sendo um camarada, ex-furriel que me disse uma tarde escura, sem sol, sem pássaros, com chuva, que tinha estado no norte de Moçambique. Era o camarada que encontrei, no Inverno, à saída de uma churrasqueira onde fui lanchar com três amigos para alegrar um pouco esse dia. Esse camarada com a pele já bastante curtida e engelhada pelo vento, pelo tabaco ou pelas agruras da vida, que me pareceu mais velho do que os anos que contava. Era o mesmo camarada que me tinha dito com tristeza que tinha conhecido e sentido a guerra em Moçambique, enquanto fumava um cigarro à porta do restaurante.

Muitas vezes, aos que por lá andámos, com pouca ou muita guerra, sobra-nos guerra para toda a vida. Uns digerem melhor do que outros as situações fáceis ou difíceis. Uns falam muito dela, outros não dizem nada, outros falam dela mas evitam falar das situações mais dolorosas. Alguns procuram guiar-se através duma memória muitos anos adormecida para trazer à tona essa realidade esquecida e só recordada em pesadelos.

Recordo-me dum cadete em Mafra que na carreira de tiro quando chegava a vez dele não conseguia disparar e punha-se a chorar, porque dizia ele que no alvo via um homem. Não é difícil entendê-lo, não há qualquer premonição nessa visão, afinal nas guerras os homens matam-se uns aos outros. Em Mafra como em tantos quartéis de Portugal estávamos a ser treinados para matar. Muitos perderam a guerra antes de chegarem à Guiné, uns por não acreditarem na vitória, outros por não acreditarem nas razões da luta. Entre eles estavam sobretudo oficiais e sargentos que por serem mais instruídos, tinham mais capacidade e informação, para pôr em dúvida a politica ultramarina do governo da ditadura.

Em Buba dei-me conta que a maioria dos militares do meu pelotão não punham em causa a defesa das colónias e a politica ultramarina do governo. Nesse tempo o atraso politico cultural e educacional em sentido lato era muito grande. Não minto se disser que pelo menos metade dos soldados do meu pelotão fizeram a quarta classe em Buba. Poucas fotografias trouxe da Guiné, na aldeia do interior norte do país onde me criei, os meninos e garotos como eu não tinham direito a fotografias, não havia máquinas nem fotógrafos, já na juventude não lhe senti a falta, não faziam parte da minha cultura que se alimentava mais da palavra escrita, a literatura sempre me fez sentir uma grande emoção estética. Só mais tarde me apercebi que a fotografia pode contar grandes histórias humanas, sociais e naturais.

Eis o meu pelotão da CCac 2616, desarmado, confesso que com armas se sabiam bater como leões, a opção da fotografia sem armas terá sido minha. 

Esta fotografia foi-me amavelmente remetida pelo António Granja, soldado do pelotão. Tenho pena de não ter uma foto semelhante do pelotão da CArt 2732, de Mansabá, onde estive sete meses. Tanto num pelotão como noutro conheci homens solidários e corajosos, a maioria deles, quase todos. Os nossos soldados eram os descendentes iletrados dos nossos marinheiros dos séculos quinze e dezasseis, que guardavam ainda a autenticidade e a bravura dos antigos lusitanos. Nas suas veias corria ainda o sangue duma Pátria milenar e vibravam ainda com a glória duma bandeira desfraldada orgulhosamente por todos os mares e continentes da Terra. A ditadura que lhes garantiu uma existência esfomeada deu-lhes também uma educação escassa, perseverando-os de ambições materiais para lá da alimentação necessária à vida. No seu espírito, imune às diferentes ideologias dum século em conflito, desprovido de ideais, cultivou com êxito o patriotismo e os valores da tradição gloriosa da Pátria.

Por vezes penso que atendendo ao espírito de sacrifício e à coragem dos nossos soldados, se eles tivessem comandantes que os motivassem e os soubessem orientar na arte da guerra, venderiam bem cara a derrota ou o abandono dos territórios ultramarinos, que dadas as circunstâncias adversas da politica internacional, com a conjugação do bloco comunista e capitalista, apostados na descolonização, tornaria muito difícil ou impossível a vitória.

Quando saí do super mercado, vi que a jovem africana tinha outra filha, que tinha ficado a brincar fora, com 5 ou 6 anos e a quem falou em francês. Deduzi, não sei se apressadamente, que seriam naturais do Senegal, da Guiné Conakri ou de outro país francófono africano. A sociedade de consumo é uma sociedade canibal já que tem sempre que andar à procura de recursos e matérias primas que irão empobrecer e matar povos menos desenvolvidos politica, social e tecnologicamente. Quando se fala nos pedidos de perdão dos grandes erros do passado, da Inquisição por parte da Igreja, de alguns povos pelos morticínios que fizeram noutros, era já tempo da Europa inteira indemnizar toda a África pela exploração dos recursos humanos e naturais que fez nos últimos séculos e que continua a fazer através de muitos políticos africanos corruptos, que tal como tantos ocidentais, somente vêem o bem deles, esquecendo o bem comum.

Li ontem um poste, P14985, muito elucidativo, de um nosso camarada que lutou em África, trabalhou em África, percorreu parte dela. Passo a citar um parágrafo dele: "A Europa vai pagar tudo com juros suportando as reclamações dos jovens africanos, pois é apenas a reclamar, aquilo que os africanos estão a fazer em Calais e no Mediterrâneo e em Ceuta. António Rosinha".

A velha Europa que se cuide pois os africanos já provaram tanto no Novo Mundo, como no Mundo Antigo que sabem resistir a todas as guerras e calamidades. Pelos seus conhecimentos, pelas suas vivências, pela sua seriedade, pela sua lucidez, o António Rosinha para mim é, o africanista, o analista político deste blogue, que melhor sabe interpretar a desgraça desses pobres do mundo que vindos do sul tentam atravessar o mar Mediterrâneo, onde muitos encontram a sepultura, quando tentam entrar na Europa, essa terra de promessas e ilusões. Por todas as regiões da Terra para onde se deslocaram ou para onde foram vendidos como escravos, os africanos estão em crescimento. Não se deixaram abater por doenças ou por guerras e morticínios como milhões de índios da América do Sul e do Norte. Os africanos continuam em expansão e os povos guardam por séculos a memória do bem ou do mal que lhes fizerem.

O meu pensamento dispara e divaga pela história antiga e pelo futuro que não é história e a mim parece-me que a Europa será submergida por vagas e vagas de povos africanos e orientais. Os povos demograficamente mais produtivos e menos decadentes, tomarão conta da Europa, tal como os Vândalos, Suevos, Visigodos, Francos, os Iberos e Celtiberos, os Germânicos e outros, tomaram conta do Império Romano do Ocidente no século quinto da nossa era. A Europa de tantas guerras, entre dois povos ou entre várias povos em aliança, uns contra outros, no último milénio foram guerras sem fim, guerras intermináveis, até houve uma guerra dos 100 anos, guerras cruéis e execráveis, piores em selvajaria e desumanidade do que as piores guerras de qualquer continente. Esta Europa que já não pode fazer a guerra, (as bombas nucleares só intimidam, não são para utilizar) para resolver ódios antigos e conflitos nunca resolvidos e para se revitalizar, vai definhar por anemia, implosão, autofagia.

A todos até breve.
Nove de Agosto de 2015, num dia de calor, aqui neste ponto do extremo ocidental da Europa.
Francisco Baptista
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Nota do editor

Último poste da série de 13 de agosto de 2015 > Guiné 63/74 - P14999: Nas férias do verão de 2015, mandem-nos um bate-estradas (20): Recordações "non gratas" da guerra da Guiné Operação Tridente (José Colaço)

5 comentários:

Juvenal Amado disse...

Camarada

Bem traçada esta crónica dos nossos dias , dos nossos temores, e de futuro incerto.

Também eu fui tocado pelo que escreveu o António Rosinha, mas a voragem do blogue como se compreende, leva a que certos textos rapidamente fiquem fora da vista levou que na altura começasse a escrever
Para trás ficam as razões da permanente sujeição a que os povos foram e são sujeitos no grande tabuleiro, que são os interesses que as potências ricas e ex colonizadoras, exercem sobre a autodeterminação e a independência dos povos. As independências meu ver são da mais inteira justiça pois a liberdade é um direito instituído e todos os homens deviam nascer iguais em direitos.
Está claro que o resultado dessas mesmas independências que aconteceram à sessenta anos mais coisa menos coisa, é hoje uma fotografia suja desfocada e onde se baralham lutas étnicas, nacionalismos, interesses estrangeiros e estados falhados e corruptos com os consequente roubos das suas riquezas naturais.
No cortejo de misérias o pior ainda está para vir, com a desestabilizarão das potências emergentes, que não conseguiram, não puderam, ou não quiseram alterar a relação do poder com os seus cidadãos, distribuindo para o bem geral as riquezas que os seus territórios são detentores.

Com a devida vénia aqui reproduzo a opinião do coronel Carlos Matos Gomes onde ele diz;

- A explicação dos "refugiados", ou migrantes do Mediterrâneo, ou de Calais, como quiserem passa pelo que está neste texto e neste documentário. A partilha de África para o controlo das suas riquezas. O Saara tem reservas imensas de petróleo, mas há o urânio, os metais raros... por isso as guerras no Sudão, na Somália... por isso as ditas primaveras árabes... estes refugiados são o primeiro refluxo das operações preparatórias do saque... a seguir, já não haverá refugiados: morrerão no local como carne de canhão dos novos senhores da guerra ao serviço das grandes potências... e a África será de novo dividida. O canal ARTE é francês... esquece o papel da França...sublinha o dos americanos...-
E acabo juntando a estes os ingleses e alemães na minha opinião, são estes os grandes responsáveis pelos xadrez sangrento, em que se movem os interesses não só em África, como no médio Oriente, onde se embrulham cristãos, árabes que são hoje os responsáveis por lutas religiosas que tivemos na Europa entre seguidores do Papa e não seguidores, turcos e kurdos que lutam contra dois ou três países pela sua autodeterminação etc .
E assim os telejornais ao sabor do que interessa difundir ou deixa de interessar, têm mais que possibilidade de escolha na miséria com que nos presenteiam.

Um abraço

Antº Rosinha disse...

Este blog já me ilucidou e clareou mais em 5 anos, sobre os treze anos da Guerra do Ultramar, e sobre tudo o que vi na Guiné, Brasil, Angola e Madeira, do que os mais de 40 anos que andei por lá.

Francisco Batista, penso, digo, penso que a assiduidade de alguns camaradas do blog, já terá diminuido devido a afirmações insistentes da minha parte.

Mas no meu entender tudo o que se afirme ou opine aqui, é para se concordar ou discordar, mas o ponto de vista de cada um não deve ser camuflado.

Se vivemos a história porque serão os outros a contar aquilo que nós vimos ou sentimos?

Anónimo disse...

Amigo António Rosinha, aprecio tudo o que escreves mesmo quando as tuas opiniões divergem das minhas. Tu és um homem intelectualmente honesto e elegante no trato que sabes ter com todos os camaradas, mesmo quando discordam de ti. Continua a escrever de acordo com as tuas convicções, eu continuarei ser um teu fiel leitor.

Um abraço. Francisco Baptista

Anónimo disse...

Ninguém tem o direito de contestar a assumpção da independência por parte dos movimentos independentistas. Afinal esse é um direito dos povos reivindicado desde os primeiros tempos da humanidade. Sucede que o processo independentista de África não foi igual ao das Américas. Nas Américas as independências foram assumidas pelos emigrados europeus e em África, excluindo as tentativas da África do Sul e Rodésia (só tentativas), as independências não tiveram a "estruturação" europeia, apesar de traçadas geograficamente pelas potências colonizadoras. Por outras palavras: o melhor cimento de uma Pátria é uma língua e uma cultura comum e capacidade ao nível de recursos humanos. Veja-se como Cabo Verde é um sucesso, enquanto país novo de África em confronto com outros países novos de África, bem mais ricos. As etapas dos processos históricos não são anuláveis - antes têm que ser vencidas.

Um abração, para o Francisco, para o Rosinha e para todos os combatentes.
Carvalho de Mampatá

JD disse...

Caro Francisco,
Convenço-me de que serias um bom companheiro para o Comandante Rosales. Cada um com o seu estilo, os seus modos de ver, mas com essa comunhão de interesse pela vida e pela solidariedade. A distância, porém, impede-nos de partilhar o tempo com encontros mais ou menos frequentes.
Quanto ao teu texto, francamente, não me enche as medidas, tem aspectos da minha concordância, outros que suscitam dúvidas, e os que não concordo. É da nossa natureza, e tu sabes que entre nós há diferenças de apreciação, que não serão suficientes para quebrarem a admiração que nutro por ti. Até porque estamos juntos na apreciação da justiça para a humanidade, e acho poder dizer que, antes do mais, somos homens do mundo.
Com um abraço
JD