quinta-feira, 13 de agosto de 2015

Guiné 63/74 - P14998: Guiné, Ir e Voltar (Virgínio Briote, ex-Alf Mil Comando) (X Parte): Barro, Bigene; Bigene, Barro

1. Parte X de "Guiné, Ir e Voltar", enviado no dia 10 de Agosto de 2015, pelo nosso camarada Virgínio Briote, ex-Alf Mil da CCAV 489, Cuntima e Alf Mil Comando, CMDT do Grupo Diabólicos, Brá; 1965/67.


GUINÉ, IR E VOLTAR - X

Barro, Bigene

Isto por aqui estava tudo calmo. Agora parece que chegou a nossa vez, parece não, chegou mesmo. Isto é complicado, o nosso governo tenta manter esta merda sob controlo, estamos aqui quê, 15, 20 mil gajos, não? Não é pela Guiné, claro, esta terra não tem nada, por outro lado é preciso ver, os soviéticos querem manter o Salazar sob pressão, estás a ver, dispersão de esforços, para a malta não se concentrar em Angola, petróleo, diamantes, madeira e tal, a Guiné é água e mosquitos, fazem-me a vida num inferno, os filhos da puta picam-me até dentro dos lençóis, grandes cabrões, aqui não há mais nada, é ou não é?
É pá, falam da ONU, a ONU é outro buraco, dali não sai nada para nós, pá, o Johnsson está atolado no Vietname, os Américas nem a cabeça podem pôr de fora, caladinhos que nem cucos, votam a nosso favor nas coisas de merda, votam contra nós nas outras, querem lá saber da malta!
E Barro, o que é Barro? Um buraco, num buracão que é a Guiné, correcto?
Mas nada de grandes problemas, mais ou menos calmaria até à semana passada, percebes? Agora, aquela bronca de Farim, é que foi o caraças! Está aqui a malta metida, meia dúzia de gatos-pingados, ainda por cima meias-fodas, que não têm onde cair mortos, a ver se o tempo passa, agora chegam vocês, só me faltava mais esta!
Mas qual ajuda, qual merda! Vocês montam aqui as barracadas e tal, e depois é como os enxames de abelhas, abanam a árvore, as putas das abelhas, dá-lhes não sei o quê, parecem stukas a cair em cima de nós, e depois como é?
Depois vocês vão para o quentinho, para Bissau não é, p'rás cabo-verdianas, para o meio da coxas delas, lençoizinhos brancos que elas gostam, mosquiteiro e tudo, não é, que eu bem sei, também passei por Bissau, ainda me lembro, que é que julgas, a malta aqui nem o padeiro vê, há que tempos que já nem me lembro, ó pá, aqui só tropa, mais nada!
Ouviste, desculpa lá, cabo-verdianas, pois, obrigado, agora estou sempre a lembrar-me é da mão, sim é com esta, sou canhoto, porquê importas-te? Ah bem, era só o que me faltava vir agora um guerrilheiro de Bissau dizer-me para mudar de mão, nem a professora, a D.ª Eugénia, lá de Vinhais, boa senhora, coitada, aquilo é que era uma professora, agora já não há disso, o que é que estava a dizer, ah já sei, olha que nem a D.ª Eugénia, coitada da senhora, se cansou de falar à minha mãe, não me puxavam as orelhas, qual quê, amarravam-se a elas, foda-se, estás a ver como ficaram, espera aí, acabo já, de que é que estávamos a falar, ah a mão, claro já me lembro, estou a dizer-te, amigo, nem a D.ª Eugénia conseguiu mudar-me a mão, ouviste?
Ainda há bocadinho, antes de vocês chegarem, dei com uma revista, ai nossa senhora, uma revista qualquer, sei lá, qual Playboy qual quê, essas ficam todas em Bissau nas mãos do ar condicionado e tal, espera aí, já sei, Estúdio ou Studio, agora não tenho bem a certeza pá, era uma revista de cinema, a Ava Gardner, uma artista, sabes quem é? Sentada num banco alto, ai nossa senhora, não vais acreditar, umas pernas, o vestido um bocadinho acima, os joelhos à mostra, quando fui à sentina, baixei as calças pá, não sei como, sai-me o pau virado p'ra cima, quase encostado ao umbigo, não acreditas? Estás a rir-te, pá? Não acreditas?
Desculpa, amigo, agora a sério, desculpa pá, estavas a falar de quê? Estou meio zuca, não repares pá! Não era só eu que estava a falar, desculpa lá, mas tens que ver, estou aqui há não sei quanto tempo, há dias que não falo, há dias em que só falo comigo! Espera aí, o que é que eu estava a dizer? Ah, sim! Então, vocês levantam a caça, põem-se na alheta, depois é que é o caraças, nós é que vamos apanhar com os cagalhões em cima, foda-se, fodam-se todos mas é!
Não é trovoada, não! Não ouves, porra? Ouvidos de Bissau, claro, é só carros, não têm ouvidos para outra coisa. Aqui em Barro não há surdos, ouvimos tudo!

Pouco mais de um metro e meio, cabelo farto dos lados mais que em cima, bigode farfalhudo, Toilas, o alferes Toilas como era conhecido, comandava aquele destacamento com uma garrafa de Vat 69 mesmo à mão. O outro ao lado, numa esteira presa aos pilares da casa onde estava alojada a inteligência deste posto avançado, Barro, na fronteira norte com o Senegal.
Do quarto ao lado, onde funcionava o posto rádio, o radiotelegrafista a gritar, Bigene está a ser atacado!

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Bigene, Barro

Em Bigene bebia-se bem, capitão à cabeça. Ou comando ou não comando, o comandante à rasca com as palavras.
Não fico nem mais uma noite neste quarto, daqui a bocado, ponho-me na alheta. Ou acordava com os arrotos ou com as idas do capitão ao quarto de banho, amarrado às paredes, vómitos, água do autoclismo.

Estremunhado, parecem estrondos! O barulho da locomotiva na cama ao lado entrara em velocidade de cruzeiro. Rebentamentos? Ai são, são, calças enfiadas, botas sem meias, p'rá rua já!
Clarões para os lados de Barro. Um espectáculo magnífico e assustador, tal e qual como vira uma vez, quando numa noite de um Agosto longínquo, regressava das festas da Agonia em Viana.
Galgou as duas escadas para a sala do rádio, o telegrafista de serviço na cama, a sono solto. Não se passa nada aqui, o rádio aflito a chamar, não se calava nem o militar acordava. A pé, baixinho, só para os ouvidos do radiotelegrafista. Um pulo, o coração dele também pelos vistos, ligação estabelecida, finalmente! Barro à morteirada, há meia hora pelo menos, temos feridos.
Pessoal cá fora, todos com os olhos para Barro. Chamou o Valente, falaram à parte, outra vez para o quarto. Pepsodent, cuecas e meias no saco, água na cara, porta fora.

Para Barro, margens da picada, em coluna por um, bem espaçados, a 1.ª equipa à frente, destacada uns 50 metros, cuidados mais ainda que os habituais. Uma madrugada fresca, boa para andar. À medida que iam andando, os rebentamentos iam espaçando, até que deixaram de se ouvir.
Chegados a dois ou três quilómetros da povoação, meteram-se para dentro da mata, e deixaram-se estar ali até o dia começar a clarear. Quando voltaram à estrada, um dos homens da frente chamou a atenção para o que lhe parecia ser um papel, pregado numa árvore. Duas folhas dactilografadas, tudo em maiúsculas.

"Chamais bandidos aos que lutam pela sua terra e pela liberdade do seu povo. Vós bem sabeis contudo, que verdadeiros bandidos, são vosso patrão Salazar e a camarilha de ladrões que roubam o bom povo português, mandando os jovens da vossa pátria morrer ingloriamente por uma causa injusta e por isso de antemão perdida.
Sabeis que vossas mães, noivas, irmãos e amigos choram de dor pelos vossos camaradas que morrem neste país que não é o vosso, longe da vossa pátria e da vossa família. Os nossos chefes não estão no chão francês, estão dentro do nosso país!
Vós sois escravos de um tirano, de um velho caótico de 75 anos, peru vaidoso, que demonstrando claro desprezo pelas gerações modernas do vosso país, em conferência concedida ao chefe do "Bureau da Reuter", nas Nações Unidas, declarou que gostaria de se demitir das funções que ocupa mas que não o poderia fazer pela necessidade de dirigir a política portuguesa em África. O vosso patrão considera-se o único homem em Portugal com valor para dirigir o vosso país!
Nós não passamos fome!
Nós não passamos frio!
Porque estamos na nossa terra e a lutar pela nossa pátria.
Na vossa pátria milhares de vossos compatriotas passam fome e toda a miséria possível, vendo-se obrigados a imigrar clandestinamente para o estrangeiro para não morrerem de fome. Só para a França fugiram nestes dois últimos anos mais de cinquenta mil operários, conforme declarações oficiais francesas.
O nível de vida do vosso povo é o mais baixo da Europa e um dos mais baixos do Mundo! A tropa não vai embora?
Sim, infelizmente para vós, muitos ficam!
Não voltarão mais aos seus lares, não voltarão mais ao convívio dos seus, jamais voltarão a receber os carinhos dos pais, das esposas, dos amigos.
Ainda estais a tempo de ir pelo vosso próprio pé!"

Foram entrando devagar em Barro, povoação fantasma. Ouviam risadas de alguns nativos que se iam apagando à medida que os iam vendo, fechavam a cara, ficavam a olhar para eles.

Barro. 
Foto: © A. Marques Lopes, in Luís Graça e camaradas da Guiné.

Uma loja de uma família libanesa, daquelas que vendem arroz, agulhas de coser, frigoríficos, panos, mancarra, o que havia, sentado cá fora, cara de infeliz, chávena de café na mão, o Toilas a olhar para ele.
Calmaria em Barro era uma vez. Por acaso até estava acordado, foi um estrondo a abrir, só queria que ouvisses, não, trovoada não, pá, vai gozar com o caraças, um estrondo mesmo em cima de nós, merdas a partirem-se. Não tive dúvidas, só gritei, é malta, p'rós abrigos!
Sei lá que horas eram, nem me lembrei de olhar para o relógio. Do lado do rio não, fogo foi só daquele lado, do lado do Senegal. Respondemos pois, ai não, à morteirada para não ficarmos atrás e umas bazucadas de brinde. Para onde?
P’ráqueles lados. Queres ver as marcas dos balázios dos gajos? Uma vintena de passos dados, lá estavam as paredes da pequena casa que servia de posto de comando de Barro crivada de furos.
Não, ainda não saímos daqui, o Toilas, agitado. Como é que havíamos de os perseguir, que porra!
Temos cabrito para logo! E temos mais ali, para ocasiões especiais, como esta é que espero que não! Não pode ser tudo mau, não é? Quando voltais a sair? Esta noite não, porra! E o capitão, meteu-se muito nos copos? Aquele gajo já veio bêbado da metrópole, é um profissional do mergulho!

Cabrito arrumado com cerveja, a lua e o sono misturados, num momento parou tudo. Estás a ouvir, outra vez, ouviste? Filhos da mãe, os gajos outra vez! É Bigene, o telegrafista, como se os outros não ouvissem.
Outra vez para Bigene, a mesma caminhada, quase as mesmas horas, procedimentos idênticos. Só o barulho de helis para os lados de Bigene é que foi diferente. À entrada da povoação flagelada nessa noite, os nativos remexiam no chão, nos buracos frescos e, ou não os viam a chegar ou então faziam de conta.
Ar de apardalados, caras desanimadas, uma noite infernal. O capitão, decidido, tinha pedido apoio a Farim. Chegara há momentos uma equipa médica e mais um pide. E havia mais gente dentro das cadeias improvisadas.
Bigene estava a ser atacada de fora, mas também de dentro, as trajectórias das balas, da casa do administrador e de outras casas também, para o edifício onde os oficiais dormiam, não lhes deixavam dúvidas.
Militares num magote, a uma centena de metros além do arame farpado, rodeavam dois tipos brancos com ar de polícias e um desgraçado, àquela distância parecia cabo-verdiano, no meio deles.
São os pides que estão a interrogar o administrador do posto! Está farto de enfardar, toda a maralha já molhou a sopa no gajo, um soldado para outros que corriam para lá, no meio de grande agitação.
Diga lá, senhor Sony, como combinaram então o ataque? Recapitulando, o senhor veio até aqui, esperou junto a esta árvore o Ramos, não foi? E depois, abra lá essa cloaca, conte tudo, que a gente não sai daqui sem o senhor contar tudo, não é?
O desgraçado com marcas de sangue fresco na cara, nos braços, nas costas, os olhos exaustos! Até bocados de pele e carne lhe faltavam!
É guerra, é guerra, um militar inflamado!
O espectáculo continuava, sem intervalos, agora com mais gente, população local também, todos num magote, numa agitação ainda maior.
Um dia para esquecer, ou para não esquecer nunca mais!
O grupo tinha o regresso a Bissau marcado para dois ou três dias depois, por via marítima. No dia seguinte, ao alvorecer, partiriam para Barro, onde aguardariam instruções sobre a data e hora exactas de embarque. Durmo com o grupo na “arrecadação”.

A mulher do chefe de posto, de vestido preto sem mangas, o gabinete do capitão, o tipo a levantar-se, beijo na mão, o sentar elegante e digno dela, o capitão a passar a mão pela careca, olhos de uísque, a porta a fechar-se com estrondo, o coração aos pulos, a querer abrir a porta, não abria, a maçaneta soltou-se com a força, a mão com a maçaneta aos murros na porta, capitão, capitão, não!

Acordou sobressaltado, os estrondos enormes lá longe, outra vez Barro, toda a gente a pé, a correr para a rua, o mesmo espectáculo.

Os ataques às povoações de Barro e Bigene, fisicamente não os tinham apanhado, nunca souberam nem como nem porquê, coincidências apenas.
Alguém alvitrara que as mudanças constantes terão sido um motivo, outros que talvez o IN estivesse a jogar ao gato e ao rato. Chegaram a sair aí pelas três ou quatro da tarde, fizeram grandes desvios pelo mato para disfarçar, dispuseram-se em frente a Barro uma vez e outra em Bigene, aguardaram emboscados noite fora até o Sol nascer, que os guerrilheiros flagelassem para tentar apanhá-los na retirada, eufóricos como costumavam mostrar-se quando não tinham baixas.
Nunca aconteceu. Emboscadas, patrulhamentos, nem um contacto.
Donde vêem eles? De Sano, toda a gente falava em Sano. É de lá que os gajos vêem, é um acampamento grande!
Onde fica isso, o que é que há lá, algum guia para nos levar? Uma noite destas vamos lá acordá-los. Nem penses, comigo não contes, só com uma ordem de operações na mão, arrumara definitivo o Toilas, com um cigarro a cair da boca.

E, na noite desse dia em que chegaram a Barro, prepararam-se para irem a Sano, ao Senegal, sem mais informações a não ser os caminhos que os guias de Barro conheciam. Era o 1.º dia de Dezembro, uma data festiva. O Toilas a insistir, esta noite não pode ser, hoje até é feriado! Toilas, é uma noite muito conveniente.
Um incidente à partida, invulgar para os costumes deles. O sargento Valente pegou-lhe num braço e afastaram-se uns metros.
Estamos com um problema na equipa do Black. O Bacar Jassi recusa-se a levar o lança-rockets e as munições.
Como? Recusa-se? Sempre foi assim, desde sempre, outros carregaram sempre com o material, porque não quer, porque é que o Black não consegue que ele entenda?
Que é muito peso, só quer levar 4 munições, os outros que levem as restantes!
Cheira-me a esturro, Valente, não pode ser, o Albino leva a MG, as fitas, mais de 10 quilos!
Foi ter com o Jassi, ouviu-lhe as razões, uma birra muito estranha.
Os rockets vão, contigo ou com outros, Jassi!
Não posso, meu alferes!
Algemas nas mãos, enfiaram-no num galinheiro com suspeitos apanhados nos últimos dias, arame farpado à volta, enquanto o grupo se aprestava para sair. Um comando estar preso com turras, o Jassi1 a chorar, aos gritos!
Tudo pronto para a saída, duas secções do pelotão do Toilas incluído, e o Valente outra vez, que o Bacar Jassi queria falar com o comandante do grupo. Jassi achava ter razão, que era peso a mais, que na instrução o alferes sempre dissera para pensarem com a cabeça, mas que estava pronto para cumprir a ordem e pedir desculpa.
Enquanto o resto do grupo aguardava que o sargento Valente soltasse o Jassi, o grupo começou a sair de Barro equipa por equipa. Duas ou três centenas de metros adiante, aguardaram que o grupo se recompusesse e puseram-se a caminho, os dois guias à frente, o Jamanca logo a seguir e o grupo todo atrás.
Cerca de uma hora depois arrancou a tropa de Barro, iria ficar instalada a cerca de um quilómetro de Sano. Uma noite boa para andar, lua fraca, noite seca, um pouco fresca.
Aí pelas quatro horas viram luzes, ouviram galos, estavam perto de uma povoação, os guias a dizerem que Sano era em frente, aquelas casas que se recortavam ao fundo. Fizeram o que deviam, colaram-se ao chão, em linha, bem separados. Curvado, percorreu o grupo, parelha por parelha, tudo em ordem.
Estamos em Sano, parece não haver dúvidas, Valente.
Pois, uma povoação no Senegal, se calhar só civis, guerrilheiros o que se sabe até agora é só conversa, mais nada, histórias que têm um acampamento aqui nesta zona. Isto aqui à nossa frente é uma povoação, galos a cantarem, é melhor pensar bem, não? E o meu alferes nem ordem escrita tem!
Mais de meia hora a mirarem Sano. Ok, Valente, não vamos fazer nada2. Civis lá dentro, amanhã o Shenghor, o Touré3, os N’Krumahs4 todos, um barulho danado na ONU, o Salazar furioso, inquéritos, mais chatice, ninguém nos mandou entrar no Senegal, é, vamos mas é dar meia volta, decidiu algo contrariado.
Foi o que fizeram, não sem um perguntar, então, e os rockets voltam outra vez? E outro, nem um aviso deixamos? Achas que é preciso, o furriel Azevedo a cortar.

Regressaram a Brá todos enlameados, por fora e por dentro. A guerra era para ser feita sem alardes, com inteligência. Havia que preservar o grupo de tarefas inúteis, de algumas guerras que uns escritores de relatórios gostavam de desenhar, para depois realçarem no papel a intrepidez da acção, a argúcia do ataque, os resultados brilhantes, que em vários casos só eles viram. Quem os lia no QG, achava uma autêntica felicidade, tanto fogaréu, ataques tão violentos, tantas baixas no In e a NT sem uma beliscadura, ou então uns feridos ligeiros só.
Várias vezes ouvira apartes deste tipo, das bocas de pessoal das 2.ª e 3.ª Rep., em pleno QG em Bissau.

Já à noitinha em Brá, tão exausto que se deitara só para matar saudades da cama, antes de tomar um bom banho, a cara ainda preta de carvão e suor, a voz do Vilaça, com a corda toda, a contar histórias de Bissau, ficara colado ao colchão como um íman, a noite toda.
Quando abriu os olhos viu os dentes brancos do Sany, sentado a olhar para ele. Estava sem calças, sem botas, sem meias, em cuecas só. Sem dar por nada, o Sany tirara-lhe a roupa toda mal chegou pela manhãzinha. Saco arrumado no canto, o quarto outra vez um brinco.
Infamara Sany, herança do capitão Saraiva, era um tipo raro na Guiné daqueles tempos. Uma dedicação tão treinada que incomodava. Em frente do Sany nem se arriscava a tirar a camisa. Quando ia pegar nela outra vez, já tinha ido para lavar. Botas a reluzir, fardas lavadas a cheirar a Tide, engomadas que era um regalo, o quarto a brilhar, nunca em casa alguma em que estivera antes, vira tanta coisa tão limpa ao mesmo tempo!
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Notas:
1 - Bacar Jassi nasceu em Fulacunda, em 7 Janeiro 1944. Foi incorporado em 13 Set. 1964. Tenente da 3.ª CCmds Africanos em 1974. Fuzilado no Cumeré em data não apurada.
2 - 01/12/65, Op. "Soquete", base de Sano, zona de Barro-Bigene. Apoio do BArt 733. Com a base/aldeamento à vista, bem dentro do território do Senegal, foi decidido não atacar.
3 - Sékou Touré, Presidente da República da Guiné-Conacry
4 - Kwame Nkrumah foi Presidente do Ghana de 1960 a 1966

(Continua)
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Nota do editor

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2 comentários:

JD disse...

Olá Virgínio, bom dia!
Ando com a leitura atrasada, mas este episódio volta a ser uma boa amostra da guerra na Guiné. Sugere o gato e o rato, e o rato tinha intuição e muita mobilidade para a iniciativa. Um capitão degradado como aquele também ajudava à festa, quiçá terá sido (terão sido) um forte estímulo para a revolução. Incontidos whikies, notícias da metrópole, incertezas e fracturas familiares, terão sido razões contributivas. Os altos-comandos tornavam-se também heróis pela manipulação da informação que justificava tanto avanço sobre o erário, e disfuncionava a quadricula em situação de desprezo. Nunca terão sido controlados.
Curiosamente a mensagem deixada continha verdades, mas o(s) autor(es) não podia(m) afiançar sobre o futuro ridente da independência, e recebiam reconfortantes apoios no grande forum da Nações Unidas que sobre a matéria não revelava interesse especial para além das hipocrisias ideológico/interesseiras. Nada mudou, e a humanidade continua a revelar grande dificuldade para implementação da solidariedade, se é que chega a ter vontade disso.
Com um abraço
JD

Anónimo disse...

Caro JD,
Nesses anos, 65/66, apesar da guerra já morder bem (que o digam os que conseguiram sobreviver, os feridos e os outros, que para os mortos nesses anos a guerra foi definitiva), ainda estava numa fase de baixa intensidade. Minas, flagelações (em que o maior perigo residia principalmente nos primeiros disparos), emboscadas ainda algo incipientes, a guerrilha encontrava-se ainda a subir na curva de experiência. Dois ou três anos depois a guerra já assumia outras características, a intensidade já estava noutro patamar.
Obrigado pelo teu comentário, Caro José Dinis.
V Briote