quinta-feira, 6 de agosto de 2015

Guiné 63/74 - P14975: Guiné, Ir e Voltar (Virgínio Briote, ex-Alf Mil Comando) (IX Parte): Mais dois lugares è mesa; Bomba em Farim e Rumo a Barro

1. Parte IX de "Guiné, Ir e Voltar", enviado no dia 2 de Agosto de 2015, pelo nosso camarada Virgínio Briote, ex-Alf Mil da CCAV 489, Cuntima e Alf Mil Comando, CMDT do Grupo Diabólicos, Brá; 1965/67.


GUINÉ, IR E VOLTAR - IX

Mais 2 lugares à mesa

Regressado de uma saída qualquer, com o estômago roído de saudades de um frango assado com batata frita, pediu ao Alegre que o largasse no Portugal. Viu-os cá fora sentados na esplanada a observarem a Praça cheia de movimento àquela hora. Estavam ainda nos cumprimentos e o “Carlos Morais” a chegar, acompanhado pela jovem.

A “Helena”, deslumbrante, já mais ambientada com o calor, perturbava. Todos repararam, uns a disfarçarem mais que os outros, que vinha de acordo com as noites quentes, um vistoso vestido claro, de seda ou do género, a cair-lhe muito bem, seguro nos ombros brancos, o decote em vê, o sutiã cor de carne a espreitar lá de dentro. E a brancura da pele, rara por aqueles lados, um ou outro talvez até já nem se lembrasse que havia mulheres com aquela cor.
Dentro da sala de jantar, alguma cerimónia nos lugares, nada de admirar, era a primeira vez que os 4 tinham companhia. Fico aqui, o Carlos com a mão numa cadeira. Em frente deles, a Helena tinha o Vilaça de um lado, e do outro o Gião com os olhos minúsculos dentro dos óculos da cor e da grossura do fundo de uma garrafa de champanhe. Ficaram de pé, à espera que o Vilaça chegasse a cadeira da senhora para a mesa, depois sentaram-se todos, devagar, os cuidados com as cadeiras, guardanapos nos colos, as cerimónias todas.

Quando ainda eram quatro, não tinham sentido qualquer necessidade de marcar os lugares, iam-se sentando à medida que iam chegando. A entrada em cena de uma senhora obrigou-os a alterar os procedimentos. Não que tivessem tido necessidade de fazer uma reunião para o efeito, apenas concordaram que a presença da “Helena” alterava tudo, obrigava-os a cuidados que antes não eram necessários. Cada um senta-se onde lhe der na gana, desde que nós fiquemos com os olhos virados para a rua, não é? E atenção à língua!
Passaram a ser seis. Nos primeiros tempos as cadeiras estiveram sempre ocupadas, coincidências, claro. Quando algum falhava apareciam outros, uns conhecidos e outros nem tanto, grandes cumprimentos como se tivessem andado todos na mesma turma, perguntas e mais perguntas, o pessoal sentado a levantar-lhes os olhos, os conhecidos não sabiam donde a perguntar-lhes está ocupada?
No fim do jantar saíam para a praceta, conversavam ainda um bocado antes de cada um seguir aos seus destinos.

“Passou mais uma semana sem que tivesse recebido notícias tuas. Começo a ficar preocupada com o teu silêncio. Espero ainda receber carta até terça-feira de manhã mas já não tenho grandes esperanças de que isso venha a acontecer e vejo que terei de esperar mais uma semana inteirinha que me parecerá interminável.”

No quarto tentava pôr as cartas em dia, depois de amanhã era dia de S. Avião, a correspondência mais importante a apertar, queria saber datas de férias. Férias? Ainda nem pensara como descalçar a bota, o que fui arranjar! 

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Bomba em Farim

Uma das mulheres do Camará à porta de armas, que o marido, não dava dinheiro há manga1 de tempo, tinha que pagar arroz, ele não dá dinheiro, nosso alfero! E porque vens falar comigo, eu não sou teu marido, fala com o Tomás!
Mas, nosso alfero, ele não vai a nossa casa, meninos não têm que comer, eu não tem que dar!
Como te chamas, qual é teu nome? Binta? Nome lindo, e quantos pesos bó2 precisa?

Um dia normal, igual a tantos outros. Aplicação militar de manhã, banho, carreira de tiro, almoço, uma sorna a seguir. Lá para as quatro, frente a Brá, exercícios com as equipas, progressão das parelhas por lances, projécteis nos troncos das palmeiras quando mostravam o quico, eles outra vez aos ziguezagues, granadas ofensivas para cima, reunir as equipas para o regresso. No caminho em direcção ao aquartelamento, alguns mais descontraídos, já relaxados, a conversa a alargar-se, uma granada ofensiva para cima, para lhes lembrar que nas guerras não há descansos. E nove deles para o hospital, dar trabalho ao pessoal de enfermagem, para retirar um a um, os pequenos estilhaços e areias que lhes tinham calhado em sorte.
À noite, crosse até à entrada de Bissau, pelas margens da estrada, a cantarem, eu vi a BB na avenida marginal, a andar de lambreta, mas que lasca bestial, toda nua, nua, nua, toda nua, volta à rotunda, para trás até Brá, eu vi a BB3.
Para o quarto de banho, para o chuveiro, para onde há-de ser? E depois, tens alguma ideia? Ideias, Vilaça, não me fales em ideias, às vezes são tantas que até atrapalham.

Um dia, curso terminado nem há uma semana, tinha tido uma que, passados meses, ainda o moía. Fora até uma carreira de tiro que tinham improvisado, uns quilómetros para lá da base aérea. Pegara na G3, um cunhete ainda fechado, sozinho, jeep na esgalha, como de costume. Mirara os alvos, garrafas de cerveja, de uísque, latas e mais latas, umas pelo chão, outras penduradas nos arames, umas atrás das outras. Do cunhete sobrara a caixa de madeira, pisava cápsulas, pelo chão mais de cinco mil de certeza, as que tinha gasto mais as que por lá tinham ficado de sessões anteriores. Depois, mais calmo, com o final da tarde a aproximar-se, sentara-se no jeep, arma com o cano a deitar fumo no banco de trás, ouvidos a zunirem, de regresso a Brá, uma brisa a dar-lhes. Arma no quarteleiro, para limpeza completa.
No dia seguinte, acordara com a voz esganiçada do Sany, capitão Saraiva quer falar com nosso alfero.
Encontrou o capitão no gabinete às voltas com o relatório do final do curso. Os bons dias que dera não tiveram resposta, se calhar não ouviu, embrulhado com a papelada, nada que fosse da especialidade do Saraiva.
Viu-o levantar-se, o olhar de poucos amigos, e o que ele tinha para lhe dizer.
Uma G3 na mão, o capitão disparou, quem foi o asno que fez esta merda? Olhou para a arma, era a sua! Um pequeno lanho na ponta do cano, sem tapa chamas.
Não foi um asno, fui eu, a arma é a minha, não, não há dúvida, é mesmo a minha, admitiu depois de ter passado os dedos pela racha.
Ora bem, os olhos do capitão, como é que o alferes quer resolver isto? Vou pagar, tem que ser, olhos nos olhos.
Pagar vai, isso está fora de dúvidas, agora vamos ver como quer pagar, não é?
Aqui há sempre alternativas, responde o capitão. A expulsão ou um par de chapadas, a escolha é sua! Chapadas, expulsão?
A expulsão é pública, sabia-o bem, já a fizera a um cabo. Os grupos formados em sentido, o clarim, o cabo em frente, a tremer todo, saco de objectos pessoais no chão, escolta ao lado, a nota de expulsão em voz alta, o chefe de equipa a arrancar de uma vez o crachá, os distintivos, o lenço, a entrega da guia de marcha para o QG, a escolta a conduzi-lo à porta de armas, esta a fechar-se, tudo seguido.
O par de chapadas devia ser em privado, mas mesmo assim, chapadas? Na cara?
Quem lhe costumava dar umas chapadas era o pai, há uns bons anos já. Depois, que se lembre, só lhe foram aos focinhos nas aulas de boxe, claro.
Não, não sabia o que fazer, as alternativas não eram fantásticas. Vou pensar, meu capitão.
Aqui e agora, alferes. Ficamos os dois, à espera, até se decidir.
Ao lembrar-se como tudo terminara saiu-lhe uma gargalhada. O Saraiva a passar-lhe algodão e água oxigenada, o nariz a ferver, um abraço e o convite para jantar no Grande Hotel.
Ideias, Vilaça, não me fales em ideias!

Ao sair do banho, tinha visitas, o capitão Rubim passava os olhos pelos títulos arrumados na estante.
Há bocado, em Farim, num batuque com muita gente, a tabanca em peso e alguns militares nossos também, um gajo qualquer lançou para o meio deles um saco com granadas de mão, defensivas e ofensivas, à mistura com pregos, bocados de metal, garrafas, eu sei lá que mais. Acabou o batuque, foi tudo pelos ares!

Tabanca de Farim morucunda

O Dakota aterrou lá de noite, com os faróis das viaturas a iluminar o campo. O hospital está a abarrotar, vai por lá um pandemónio.
Tem o dia de amanhã para preparar o seu grupo. Vai até àqueles lados, uns dias.
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Notas:
1 - Crioulo: muito
2 - Crioulo: você
3 - Brigitte Bardot, actriz francesa muito famosa na altura.
4 - A PIDE, em mensagem por rádio existente nos arquivos de Salazar na Torre do Tombo, escrevia que, no dia 1 de Novembro de 1965, cerca das 20 horas, fora lançado um engenho explosivo para o meio dos africanos que se encontravam num batuque em Farim. A explosão teria provocado 63 mortos e feridos, na sua maioria mulheres e crianças. Foi detida uma meia centena de pessoas. Confissões obtidas levaram à detenção de um tal Issufo Mané, que declarou pretender atingir alguns militares. Para o fazer teria recebido 14 contos de Júlio Lopes Pereira, o qual, por seu lado, actuara por indicação do chefe da Alfândega de Farim, Nelson Lima Miranda. E este teria vindo a declarar que a bomba fora lançada a mando da direcção do PAIGC. (AOS/CO/UL- 50-A, Informações da PIDE, 1965-1966, 86 subdivisões, pasta 2, fls. 636, 637, 638, 641 e 642).

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Rumo a Barro

A caminho de Bula, atravessaram o Rio Mansoa em João Landim, meteram-se outra vez a subir até embarcarem em S. Vicente, Cacheu acima, numa LDM5. Sentados no convés, a dormitarem, um marinheiro de ordenança a perguntar, quem é o comandante do grupo, ah aquele ali, é alferes, tenente ou quê, cumprimento militar para o alferes, de quico em cima dos olhos, a passar pelas brasas.
O marujo, cheio de maneiras, como se estivesse num Hilton, o senhor comandante tem muito gosto em convidar o senhor alferes para almoçar.
Uma pequena sala de refeições, mesa redonda para os dois, pão e manteiga na mesa, grumete a servi-los, de travessa na mão, um luxo! Não havia dúvida, o pessoal da marinha tratava-se bem.

Pés na margem, Unimogs à espera, todo o pessoal em cima das viaturas a caminho de Barro.
Toilas, Alferes Toilas, é assim que sou conhecido aqui. Mas, espera aí, já te conheço, porra, estive contigo em Buba, lembras-te? Não? Duma vez em que andamos perdidos a noite toda, naquele tarrafo6, lodo por todo o lado, nem conseguimos entrar, não te lembras?
Estava a ver que não te lembravas! Como vai isto? Por aqui, até agora, tudo ok. Em Bigene é que as coisas têm estado mais para o aquecido. A PIDE está lá, prenderam lá uns gajos, aquilo está tudo minado, os turras estão infiltrados em todo o lado, pá!

O Sargento Valente alojou o grupo num sítio precário como era tudo ali. Uma rua e pouco mais, algumas casas de tijolos e cimento, um comerciante libanês que vendia tudo e a tabanca atrás.
Aproveitou para dar uma volta pela pequena povoação com o Alferes Toilas. Este, enquanto ia partindo mantenhas7 com pessoal que se cruzava, aproveitava para perguntar se tinham visto pessoal novo a chegar nestes dias. Não, alfero, cá tem8 chegado, o negro descalço. Atenção Mané, vê lá, se pessoal novo chegar avisa alferes, correcto?

Povoação de Barro. 
Foto: © Coronel A. Marques Lopes. Com a devida vénia.

Na manhã do dia seguinte, ao nascer do sol, despedira-se do Toilas. Vamos dar uma volta por aí. Arrancaram para Bigene, pouco mais de uma dúzia de quilómetros a pé, pelas margens da picada.


Tudo calmo. Bigene à vista, um Barro um pouco maior. Foram entrando, espaçados, em coluna por um, como era hábito, com os nativos a olharem para eles.
Capitão Rosas, baixo, atarracado, para o forte, a caminho dos 40. Boa ideia terem vindo, os gajos ontem estiveram aqui. Umas morteiradas e rajadas de metralhadora. E depois rajadas também de dentro. Uma hora e tal que durou esta merda!
Sim, de dentro também! Sei lá como entraram, entraram, como quer que saiba?
Não, felizmente, dois feridos ligeiros só, nada de grave, com estilhaços de uma morteirada para além daquela casa, ali. Tinha lá um pelotão alojado!
A PIDE está cá, parece que um gajo de Farim está a falar, temos metido uns gajos dentro.

Os gajos, ah, senhor capitão, a comer à vossa mesa, ah? Agora sente-se capitão Rosas, sente-se, se não cai... o pide, camisa de caqui de cor indefinida, cabelo a cheirar a Panténe, a entrar no posto de comando da Companhia, Venha comigo, o capitão para o alferes recém-chegado, vamos ali fazer uma visita, com este senhor. Venha, venha daí, vamos conversando!

Uma casa ampla, flores em vasos à entrada, pequena horta nas traseiras.
"Panténe" a abrir o portão, o capitão com o alferes atrás, duas ou três escadas.
Uma senhora de trinta e poucos, graciosa, cabo-verdiana, mão na porta, surpreendida com as visitas. Meu marido está no banho, vou-lhe dizer, voz de medo, o pide, desconfiado, a olhar para o capitão. Nós entramos, com a sua licença, minha senhora.
Mas ele está no banho, eu vou chamá-lo, não demora!
Uma sala espaçosa, mesa, as cadeiras, mais duas grandes para a preguiça, motivos africanos, estatuetas de pau-preto, coisas assim. Bons momentos devem escorrer aqui, os dois, as tardes a irem-se na calmaria, a imaginação a falar com ele.
O administrador do posto de Bigene, algemado com as mãos atrás, cabelo ainda a escorrer, um equívoco, senhor agente, só pode ser, a mão do pide nele.
Deixa apertar a camisa, Sony, tira as sandálias, calça o sapato, a senhora ajoelhada, aos soluços, lágrimas pela cara abaixo.
Bem boa, ah, mesmo no ponto, não digam que não marchava já, cá fora o capitão, gorduroso, os olhos pequeninos.
Que merda! Mão na cara, a limpar os perdigotos. Um cheiro a uísque, uísque estragado, azedo.
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Nota
8 - Não

(Continua)
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Nota do editor

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