sexta-feira, 22 de maio de 2015

Guiné 63/74 - P14649: Os nossos seres, saberes e lazeres (95): Se fosse presunto... (Manuel Luís R. Sousa)

1. Mensagem do nosso camarada Manuel Luís R. Sousa (ex-Soldado da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4512, Jumbembem, 1972/74, actualmente Sargento-Ajudante da GNR na situação de Reforma), com data de 17 de Maio de 2015, com um trecho do seu próximo livro, uma autobiografia, ainda sem nome.

Amigo Carlos:
Tenho o gosto de te comunicar que estou a escrever um novo livro, de cariz autobiográfico, cujo título ainda, por enquanto, não vou divulgar. É um projecto que visa, sob a forma de contos, descrever essencialmente tempos da minha infância e juventude, retratando, ao mesmo tempo, a vida daqueles tempos, no interior profundo transmontano, Folgares, Freixiel, Vila Flor, nos aspectos social, económico, religioso e cultural, entre outros aspectos. O "Panelo de barro preto", já publicado no blogue, integra este trabalho.
Envio-te em anexo um pequeno excerto do mesmo livro, já em fase adiantada, caso o queiras publicar na nossa "tabanca", para conhecimento de toda a tertúlia.
Envio-te também em anexo uma fotografia para ilustração.
Ao fazer este anúncio, é o assumir de um compromisso para não me dar à preguiça na prossecução e conclusão deste modesto projecto.

Um abraço
Manuel Sousa


Se fosse presunto...


"...Assim fui crescendo nesta azáfama da vida dura do campo até à minha chamada para o cumprimento do serviço militar.
Em campanha, na guerra colonial na Guiné, durante um mês de férias em Bissau, em Janeiro de 1974, tirei a carta de condução.

Regressei em Agosto desse ano apetrechado com este instrumento de trabalho e havia que retomar o ritmo, quer em casa dos meus pais, quer naqueles trabalhos sazonais em Freixiel, interrompido por aquela obrigação militar.
Voltei a integrar um rancho de azeitoneiros logo em Dezembro desse ano, a trabalhar numa das casas mais ricas de Freixiel, o senhor Ernesto Lima, que além dos olivais que possuía onde trabalhámos também tinha um lagar de azeite lá na aldeia para a transformação da azeitona, quer da sua colheita, quer a que se produzia na aldeia e noutras aldeias circunvizinhas, aliás, para quem quase sempre trabalhei durante a minha adolescência e juventude até ir para a tropa.

 Manuel Luís R. Sousa na apanha da (sua) azeitona

Conhecendo-me como conhecia e sabendo que já tinha a carta de condução, entregou-me logo uma carrinha Bedford, azul, de caixa aberta, de 3500Kg, para o transporte do pessoal para os olivais e da azeitona para o lagar ao fim do dia.

A partir daí, à noite, levava a carrinha para a minha aldeia, transportando toda aquela minha gente, que antes, como contei, andava a pé, e no dia seguinte voltávamos ao trabalho já com aquela comodidade.
Uma bênção para toda a gente, ter um motorista no grupo!

No primeiro dia que procedi ao transporte da camarada de regresso à minha aldeia, cerca de vinte pessoas, o senhor Ernesto Lima, preocupado, sabendo da minha pouca experiência e sendo a estrada que liga as duas aldeias muito sinuosa, íngreme e com curvas e contra curvas, além de algum gelo que se acumulava em alguns lugares, encarregou um motorista de Freixiel, que eu conhecia bem e de quem era amigo, com mais experiência para me acompanhar, para se inteirar do meu desempenho da condução naquelas condições, seguindo ele, o patrão, atrás, no carro dele. A viagem correu bem até ao cimo da encosta, no percurso de cerca de seis quilómetros, e chegámos assim à minha aldeia.
Regressou então o patrão e aquele motorista, o Chico António, a Freixiel no carro dele, ficando eu com a carrinha em cima para no dia seguinte transportar o pessoal para o trabalho.
Nesse mesmo dia seguinte, quando já descia a meio do percurso, verifiquei que o senhor Ernesto Lima, ainda preocupado, foi ao meu encontro no seu automóvel, seguindo atrás de mim depois até Freixiel, decorrendo a viagem sem qualquer problema.

Ambos tivemos sempre uma relação quase afectiva que ia para além da equidistância entre patrão e trabalhador, como, aliás, se pode verificar na sua preocupação em relação a mim que acabei de descrever. Sempre foi muito afável comigo nas nossas relações laborais, e não só. Estou-lhe eternamente reconhecido por isso.
A adaptação à condução da carrinha decorreu relativamente rápido e, passados alguns dias de se ter iniciado a apanha da azeitona, por ordem do patrão, deixei de fazer parte da camarada de azeitoneiros e fui incumbido de, acompanhado de um ajudante, o senhor Inácio, também da minha aldeia, proceder à pesagem da azeitona nas aldeias mais próximas e transportá-la na carrinha para o lagar para a transformação, entregando depois o azeite aos clientes.

O meu ajudante era uma pessoa com cerca de cinquenta anos de idade, de baixa estatura, de rosto miúdo e moreno, rijo, bem disposto e com muito sentido de humor! Tinha como missão transportar os sacos de azeitona às costas no local da recolha até à carrinha e depois da carrinha até à "tulha" no lagar.
Vergado debaixo daqueles grandes sacos de lona, com cerca de oitenta quilos, o senhor Inácio quase desaparecia. Não se via literalmente. Eu, sobre a caixa de carga da carrinha, ajudava-o a pôr os sacos às costas e, de vezes em quando, para o aliviar um pouco, carregava um saco ou outro.
O senhor Inácio, já muito vivido, e como não era o primeiro ano em que ele fazia aquele trabalho com outros motoristas, teve o cuidado de me prevenir, sendo eu novato naquelas andanças, que era costume os agricultores onde íamos buscar a azeitona a essas aldeias em redor, que ele já conhecia, aquando do final do carregamento da azeitona oferecerem um "taco", dizia ele.

Assim, no dia a dia, naquelas aldeias, Meireles, Vilas Boas, Roios, Samões, etc. no final do carregamento, as pessoas, muito francas, convidavam-nos a entrar em casa para comermos o tal "taco", altura em que, quase sempre, à socapa, o meu ajudante João Inácio me piscava o olho, como a dizer-me que era verdade o que antes me tinha dito.
Entrávamos então e, à boa maneira transmontana, eram postos no braseiro da lareira umas linguiças ou salpicões, acabados de tirar do estendal do fumeiro, que mais parecia um tecto falso da cozinha, que degustávamos depois de assados com bom pão centeio e vinho da casa.
Confirmei então que era assim, quase diariamente, a ponto de não comermos o nosso farnel que transportávamos no porta-luvas da carrinha.

 Uma merenda bem melhor que um "taco"

Um dia, no final do trabalho, regressámos à nossa aldeia, eu e o meu ajudante Inácio, dando também "boleia" a um rapaz lá da terra, muito mais novo do que eu, o António "Palancho", que trabalhava no lagar.
Nessa altura já a apanha da azeitona do patrão tinha terminado, embora o lagar continuasse a trabalhar, não tendo, por isso, a camarada dos azeitoneiros para transportar. O percurso de regresso a casa foi diferente do habitual, bastante mais longe, para passarmos por duas aldeias, Samões e Seixo de Manhoses, para entregarmos azeite de clientes.

Depois da entrega em Samões, em casa de um tal senhor Joaquim Madureira, foi cumprido o ritual habitual: presunto, pão e vinho na mesa com que todos os três nos saciamos com a voracidade natural do final de um dia desgastante de trabalho.
Partimos depois para Seixo de Manhoses entregar a colheita de azeite de um padre. Chegámos. Ele não estava em casa. Fomos recebidos por uma senhora ainda jovem. Não sei se era empregada ou familiar.
Abriu-nos a porta dos baixos duma casa alta, em granito, bem cuidada, e ali descarregámos o azeite num bidão. Terminada a entrega, a senhora, simpaticamente, com aquela hospitalidade transmontana, perguntou-nos se queríamos beber um copinho de vinho.
Antes que eu e o António "palancho" recusássemos, porque não éramos grandes bebedores e tínhamos acabado de comer e beber em Samões, o meu amigo Inácio, com a piscadela de olho habitual que me dirigiu, "atacou" logo:
- Bebia-se um copito..., se fosse com uma azeitonita...
- Que não seja por isso... subam, por favor.
Respondeu logo a senhora, franca e expedita.

Subimos então umas escadas altas em granito e entrámos numa grande cozinha, onde a senhora nos acomodou convidando-nos a sentar junto à fogueira que crepitava na lareira, num ambiente agradável e aconchegante, comparando com o frio que se fazia sentir na rua naquela época do ano.
Encontrava-se ali deitado, regalado ao calor da fogueira, um corpulento cão perdigueiro.

A nossa anfitriã colocou uma mesa pequena à nossa frente, coberta com uma toalha branca, onde dispôs um pão, uma malga de azeitonas e uma caneca de vinho, para que os três comêssemos e bebêssemos, deixando-nos ali sozinhos enquanto se ocupava nas lides da cozinha.

Eu e o António "Palancho", como não tínhamos fome, fomos debicando um pedacinho de pão uma azeitona por uma questão de cortesia em relação à hospitalidade da senhora. Fomos acometidos por um ataque de riso, que mal conseguimos disfarçar, vendo o nosso amigo Inácio também a debicar, a mastigar em seco, a olhar de soslaio para a senhora, a ver se trazia algo mais suculento, que era o fito dele.
Mas..., nada.

O cão perdigueiro, esse sim, é que estava com apetite, ávido de nos tirar a comida da mão.
Então o amigo Inácio, continuando visivelmente a engolir em seco, pegou num pedacinho de pão, atirou-o ao ar na direcção do cão e este com uma infalível precisão logo o apanhou no ar e o abocanhou.
Mais uma e outra vez e o cão não falhava. Eu e o António já estávamos ansiosos para sair dali porque estava a ser insuportável aguentar o riso, sabendo as intenções do Inácio.
Para cúmulo este pegou numa azeitona, atirou-a ao cão, e este, da mesma maneira, tal como fazia ao pão, com a mesma avidez, a deglutiu. Perante esta fome canina, o Inácio murmurou em sussurro:
- Se fosse presunto...!

Pronto. Foi um descalabro. Não conseguimos disfarçar mais aquele momento hilariante que rimos, rimos, abertamente, apressando-nos a dizer à senhora que o motivo da risada foi a graça que encontrámos ao cão. Agradecemos, despedimo-nos e saímos rapidamente. A caminho da aldeia, de regresso a casa, os três, continuámos a divertir-nos com aquela peripécia, com a certeza de que o Inácio, daquela vez, não conseguiu comer presunto.

O amigo Inácio já faleceu. Que Deus o tenha. Foi um privilégio, com aquela idade, com vinte e três anos, ter este estágio de vida orientado por ele..."

17 de Maio de 2015
Manuel Sousa

Fotos: © Manuel Luís Rodrigues de Sousa
Legendas da responsabilidade do editor
____________

Nota do editor

Último poste da série de 20 de maio de 2015 > Guiné 63/74 - P14641: Os nossos seres, saberes e lazeres (94): Bruxelles, mon village (Parte 6) (Mário Beja Santos)

5 comentários:

Anónimo disse...




Amigo e camarada Manuel Luís Sousa:

Adorei o teu texto pela sua verdade e autenticidade. É um retrato fiel dos nossos tempos antigos de transmontanos, em que se realça a confiança e amizade entre patrões e trabalhadores, a vida simples de uns e outros. A hospitalidade devida aos trabalhadores e vizinhos de outras aldeias. O presunto, as linguiças e salpicões, tão bons nesse tempo , que ainda me fazem crescer água na boca. Brunhoso, a minha aldeia, estará a cerca de 60 kms da tua, que hoje se percorrem em meia hora de carro, no passado apesar das dificuldades de comunicação, os usos e costumes tanto nas actividades agrícolas como nas relações de trabalho e na hospitalidade eram idênticas às de Freixiel.
A minha aldeia nesse tempo, seria maior e mais rica do que a tua pois havia três lagares de azeite, só a trabalhar para os produtores locais.
Lembro-me que a azeitona nunca podia ser colhida, talvez por édito camarário, antes do dia 8 de Dezembro. Era um trabalho difícil por causa do frio da época e porque nesse tempo a maior parte dos olivais, se situarem a 5 ou 6 kms da aldeia, nas arribas do rio Sabor. Todo esse trajeto tinha que ser feito a pé por carreiros. O regresso sempre mais difícil, depois do dia de trabalho,a subir esses carreiros com muito declive com bestas de carga, burras e mulas a transpor a azeitona.
Tempos duros, como tu bem sabes meu amigo e conterrâneo, em que os transmontanos curtiram a pele do corpo e da alma para sobreviverem.
Muito obrigado pelo teu naco de prosa, tão bom, como o presunto, que comíamos na nossa juventude.

Um grande abraço

Francisco Baptista

José Botelho Colaço disse...

Para aperitivo estás de parabéns esperamos por o prato de carne e peixe e quase de certeza que vamos ficar super satisfeitos.
Um abraço
Colaço
Nota : Também tirei carta de pesados profissional e moto em Bissau mas em Janeiro de 1965.

Manuel Sousa disse...

Quero saudar os meus companheiros Francisco Batista e José Botelho Colaço pelos seus comentários a este excerto de um dos meus contos da vida real que, como disse, intregará o meu próximo livro. Estes mesmos comentários ficarão registados naquela obra, se não se importarem.Pelo comentário do Francisco Batista,sou levado a concluir que também "percebe da poda.

Um abraço

Hélder Valério disse...

Caro camarada Manuel Sousa

Estaremos então quase a ter à disposição mais um "retrato de época", coisa que considero interessante e necessária para se fazer o reconhecimento da sociedade à época em que nos envolvemos nas nossas "aventuras africanas".
Mas também como foi o reingresso.
Como foi essa nova luta.

Tiraste a carta na Guiné.
Também eu, conforme já dei conta aqui no Blogue. E não foi "de borla", foi mesmo "à séria" numa Escola de condução, com exame teórico, aulas práticas e exame com "ponto de embraiagem" ali junto à então Praça do Império.

Hélder S.

Unknown disse...

Caro amigo e conterrâneo Manel!..

Antes de mais deixa-me elogiar-te pelo afinco e empenho que dedicas aos teus projectos, no que toca, a escrita e leitura, que disso nos vais dando provas, não desistindo por qualquer diligência ou contratempo.

Aqui te deixo o meu reconhecimento, pela forma como descreves os bons hábitos e cultura da nossa Província “Trás-os-Montes” mais concretamente a nossa terra Vila Flor Freixiel, Folgares e Vieiro, este com uma exposição já muitas vezes referida, através da consagrada pintora, também nossa conterrânea, Graça Morais.

Há que divulgar, de uma forma ou de outra o que de bom e belo temos neste recanto da Península Ibérica (PORTUGAL), cada um, com os seus conhecimentos, historiar com algum orgulho o que foi antigamente e o que é hoje; com o progresso e com o decorrer do tempo, o que de melhor e de pior, nos tem estigmatizado ao longo da nossa vida.

Força amigo, em frente é que é o caminho, e só caminhando se alcança o objectivo.

Abraço
João M V Ferreira