sexta-feira, 1 de maio de 2015

Guiné 63/74 - P14552: Notas de leitura (708): "Cabra Cega - Do seminário para a guerra colonial", por João Gaspar Carrasqueira, Chiado Editora, 2015 (1) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 20 de Abril de 2015:

Queridos amigos,
Por intermédio do nosso confrade Marques Lopes, recebi esta "Cabra-Cega" que, segundo apurei, terá o seu lançamento em Junho.
A vários títulos, estamos perante uma obra invulgar, seguimos o itinerário de uma criança pobre educado no seminário até aos 20 anos, faz o 7.º ano enquanto estuda como ajudante de fiel armazém. Segue-se Mafra, e na Amadora vai formar batalhão.
Em impressiva água-forte, regressamos aos anos 1960, quatro aspirantes que foram convergidos à pressa para uma companhia dialogam entre a inocência e um certo fundamentalismo. O capitão Mendonça é uma figura antológica, verão. E depois a Guiné, algures, depois de um rio largo que depois se estreita. E um dia, aquele alferes descobre que está sozinho, a sua tropa debandou depois de um fogo intenso.
E há muito mais para vos dizer.

Um abraço do
Mário


Cabra-cega, por João Gaspar Carrasqueira (1)

Beja Santos

É um livro íntimo, com vários biombos, com a simulação de artifícios para dificultar a perceção da realidade. Será que João Gaspar Carrasqueira existe? E, a existir, foi conterrâneo de António Aiveca que deixou estes papéis para publicar e já está na terra da verdade?

Faltava-nos esta peça na literatura da guerra da Guiné, uma autobiografia camuflada, da infância até ao termo da comissão. Um menino nascido em Lisboa e logo transferido para Penedo Gordo, não muito longe de Beja. E regressado depois a Lisboa, vivia numa pobreza extrema, fez a instrução primária num colégio de padres e daqui seguiu para o seminário. Aos vinte anos, entra em discordância, é tempo de acabar com a comédia da vocação, e sai do seminário. Regressa a Lisboa, para sobreviver, trabalha como ajudante de fiel de armazém e estuda. É assim que recebe uma convocatória para se apresentar em Mafra, temo-lo como atirador de infantaria. Segue para a Guiné, é logo lançado no mato, o relato não indica nem o tempo nem o lugar como se buscasse a universalidade de todas as guerras. O capitão, comandante de companhia, é gizado como um valdevinos, um frequentador de cabarés lisboetas; e o retrato que o autor nos dá dos quatro alferes da companhia é singular, atrevo-me a dizer único, aquelas quatro pessoas poderão ter existido na inocência, no fanatismo, na pesporrência, na indiferença acompanhada de ignorância, quanto ao modo de participar na guerra. O alegado António Aiveca ao fim de quatro meses é ferido em combate, evacuado para o Hospital Militar Principal, transforma-se numa reencarnação no comandante companhia, morto na improvidência de um levantamento de mina. São tempos de estúrdia, somos envolvidos naquele terrível compasso de espera de alguém que tem os tímpanos feridos e que escancara as portas ao inferno dos estropiados que jazem num dos anexos do hospital. E dá-se o regresso à Guiné, vai passar mais uns meses numa companhia de recrutamento local, sai-lhe um portão de Balantas na rifa. E depois o regresso, numa atmosfera de espessamento e de desencantos. Todos mudaram, ele não ficou para trás, viveu a morte em vários espelhos coloridos e jogou à cabra-cega. Foi demasiado, se o seminário o desencantou, as idas e vindas com a Guiné ao fundo deixaram-no agrilhoado ao somatório das perdas.

Vale a pena abrir a mão de todo este longo itinerário que se atribui a António Aiveca, segundo o presumível imaginário de João Gaspar Carrasqueira.

Primeiro, o Alentejo, as raízes da família, mãe ceifeira e o pai tratorista nos campos dos latifundiários, rasgando-os com aivecas, daí o nome que ficou para a família. Passou a infância numa parte de casa em Campo de Ourique. E depois temos um colégio de padres, um caseirão enorme, estamos então no seminário, reza ao terço todos os dias antes do jantar, acompanha o diretor na visita às famílias ricas da terra. Passados cinco anos, é transferido para um seminário maior, noviciado em Filosofia, temos aqui descrições primorosas, há frases que ficaram gravadas ao ex-seminarista para todo o sempre: “Quem não fizer penitência morrerá” ou “Na missa, quando no altar se imola Jesus, não nos devemos julgar na terra, mas no céu entre os espíritos celestes”. Pobreza e castidade, e obediência. O controlo é absoluto, mal se põe a conversar mais longamente com alguém é logo advertido que não é bom fazer amizades, há inconveniência nos afetos duradouros. Pede para sair, entregam-lhe o papel da dispensa dos votos, vai viver com os pais em Lisboa, na Calçada da Patriarcal, trabalha, estuda, descobre o cinema. Tem o 12.º ano, é hora de partir para Mafra. O autor dá-nos algumas águas-fortes para preparação militar, dado transversal da obra são os diálogos das pessoas, conversas sincopadas, ali à volta, nas fendas e interstícios é-nos permitido conhecer os estados de alma, mas tudo com comedimento. Já é aspirante, é colocado numa unidade e redige jornais de parede. Ainda foi a Lamego, a sua prestação não agradou, é recambiado para o RI 1, Amadora, é aqui que vai integrar uma companhia, em breve todos saberão que o seu destino é a Guiné. Temos aqui um dos momentos culminantes do livro, as conversas entre os aspirantes Aprígio, Castro, Zé Pedro e Aiveca, é um bom registo de mentalidades. E somos inseridos na vida noturna de Lisboa graças ao capitão Mendonça que tem garrafas com o seu nome em diferentes bares.

Deliberadamente, não sabemos a data de partida no Ana Mafalda para a Guiné, presume-se que estamos em 1967. Uma LDM leva-os através de um rio para perto do destino. Sabemos que é um rio largo, que depois vai estreitar, condensa floresta nas margens, com curvas e contracurvas, havia muita tensão, mas nada aconteceu. E depois vão em coluna, após uma noite horrível, não se sabe bem por onde nem para onde, e chegam ao destacamento, sabe-se que têm a sede do batalhão a 30 quilómetros, há vários quartéis isolados. Correm rumores de que os rebeldes se aproximam da região, fazem-se patrulhamentos, Aiveca aprende os horrores daquele sol abrasador, vê horrorizado os soldados a mijar nos cantis. Mendonça, que dava a imagem da pândega na vida noturna de Lisboa, revela-se um traste, em positivo, trabalha para a folha de serviços. Sabemos que há áreas onde se deslocam sem perigo, as Panhard seguem à frente. Nomadizações, patrulhamentos, emboscadas. E a imagem de tabancas abandonadas, o testemunho daquele momento da guerrilha em que se separaram as águas, uns partiram para o mato profundo, outros aproximaram-se da tropa, ficaram em quartéis ou em autodefesa. As relações entre Aiveca e Mendonça degradam-se. E chegou a hora das grandes operações, entram em acampamentos, deitam fogo às habitações. E a guerrilha apresenta-se, há fogo intenso, é preciso apoio aéreo. Mendonça determina que vai referenciar um objetivo. É um dos momentos da obra dignos de referência. Aiveca vai ficar sozinho depois de uns tiroteios, o seu grupo debanda, vai descobrir que está sozinho. Tudo começa assim:
“Foi rastejando e, a certa altura, ouviu um silvo agudo no ar, levantou a cabeça e numa fração de segundos viu uma granada de morteiro em direção a si. Nem pensou, deu três voltas para o lado a rebolar. Ela enfiou-se na terra mole no sítio onde tinha estado, viu de esguelha o seu rebentamento, sentiu a terra que levantara cair-lhe no camuflado e ouviu o zumbido dos estilhaços. Cabeça entre os braços, ficou agarrado ao chão. Nunca imaginara que isso fosse possível, mesmo quando vira nos filmes não acreditara”.

E os guerrilheiros vão-se aproximando.

(Continua)
____________

Nota do eitor

Último poste da série de 27 de abril de 2015 > Guiné 63/74 - P14532: Notas de leitura (707): Abdulai Silá, o grande prosador guineense (3): "Mistida" (Mário Beja Santos)

3 comentários:

Hélder Valério disse...

Parece que estaremos na presença de mais um "registo de vivências" da guerra, particularmente da Guiné.

O percurso na 'fábrica de Oficiais', Mafra, será descrito de modo complementar a muitos outros que relataram a sua passagem por aquelas paredes. É verdade que cada vivência é uma vivência, mas os traços comuns deverão estar lá.
O que me parece mais singular será o facto, não inédito, dos tempos "antes da tropa", que foram no Seminário, situação menos usual, e também o regresso ao TO depois da baixa hospitalar com evacuação para Portugal. Neste último caso calculo que o ânimo fosse bem diferente do que havia aquando da chegada inicial.

Vou aguardar pela «continuação» para ver se se percebe melhor quanto de "autobiográfico" pode existir na obra.

Hélder S.

A. Murta disse...

Caro Hélder Valério
Pode ser difícil avaliar "quanto de autobiográfico" está lá, naquela ficção e em todas as outras, mas... «Contar a vida dos outros é interrogar a nossa própria vida. Só o tempo depura. Ficção constrói-se com o que fica do passado. Revive-o». Manuel da Fonseca (1911-10-15 / 1993-03-11).
Um abraço,
A. Murta.

João Carlos Abreu dos Santos disse...

... já tod'àgente entendeu, que Aiveca é Carrasqueira, e que Carrasqueira é António Manuel Marques Lopes 'himself'...