domingo, 22 de março de 2015

Guiné 63/74 - P14397: Libertando-me (Tony Borié) (9): Este fui eu

Nono episódio da série "Libertando-me" do nosso camarada Tony Borié, ex-1.º Cabo Operador Cripto do CMD AGR 16, Mansoa, 1964/66.




Esta personagem fui eu, mas penso que, talvez em parte, também eras tu, que nasceste entre os anos trinta e cinquenta do século passado ou talvez até antes ou depois, andaste por aí, sobreviveste e hoje até tens a pachorra de me estar a ler.

Isto não é impressionante? Sobrevivemos, sendo filhos de mães que não se alimentavam com todas aquelas proteínas necessárias para o bom funcionamento do organismo, comiam queijo e toucinho gorduroso, andavam de “de barriga à boca”, até ao último dia, sempre a trabalhar na agricultura, sujas, com as pernas cheias de “varizes”, que eram umas veias saídas nas pernas, muito perigosas, devido ao esforço despendido e, talvez não só, algumas bebiam álcool, enquanto estavam grávidas, sem nunca fazerem um simples teste de diabetes. Nascemos. Fomos colocados para dormir, em berços ou numa simples canastra, cobertos com cobertores, farrapos ou panos feitos com tintas coloridas, feitas à base de chumbo, à base de brilhantes, de barriga para baixo ou para cima, um farrapo borrado e molhado por horas, chorando, às vezes chupando num pano molhado em água de açúcar, ou quando as nossas mães queriam trabalhar sem ouvir o nosso choro, nos colocavam um pouco de pão molhado em vinho, na boca, para assim, “adormecermos”.

Ouviam-te chorar. Talvez com dores em qualquer parte do corpo, embalavam-te por alguns momentos e calavas-te, não te administrando qualquer medicamento.

Mais tarde. Com a tal baba e ranho no nariz, às vezes sujo e com pouca roupa no corpo, pois normalmente usavas o resto da roupa dos teus irmãos, ou até do teu pai, fazendo chuva, frio ou calor, vias as outras pessoas andarem de bicicleta, sem capacetes ou outros utensílios de segurança, os que andavam de carro, não usavam cintos de segurança, as crianças não tinham assentos especiais, os pneus estavam carecas, não havia “air bags” e às vezes nem travões.

Bebíamos água dos ribeiros, das fontes, dos poços ou das minas e, não da garrafa.

Compartilhávamos um “pirolito” com quatro amigos, bebendo da mesma garrafa e ninguém realmente morreu por isso.

Comíamos biscoitos, broa, pão branco, manteiga real, toucinho, batatas, nabos, couves, feijão, arroz, mal ou bem cozinhado, bem ou mal lavados, na tal panela de três pernas, comunitária, que cozinhava para a família, às vezes para os vizinhos e entalava alguns legumes para os animais, tudo temperado às vezes com sal “amarelo e rançoso”, que se tirava da caixa, a que se chamava “salgadeira”, onde se guardava a carne salgada do porco, laranjadas ou pirolitos, feitos de água com açúcar, o que queríamos era “encher a barriga” e, nunca estávamos acima do peso.

Porquê? Porque estávamos sempre a brincar, ou a trabalhar na agricultura, lá fora, pois saíamos de casa pela manhã e andávamos lá fora o dia todo, estávamos de volta quando o sol desaparecia. Chegámos até aos dias de hoje, talvez porque passávamos horas construindo os nossos brinquedos, como por exemplo carrinhos de madeira com rodas de toros de pinheiros e, montá-los ladeira abaixo, sem travões, caindo e levantando-nos sem nunca nos queixarmos, aprendendo assim a resolver os nossos problemas.

E claro, aprendemos o “a, e, i, o, u”, ou a “a, b, c”, naquela “lousa” de pedra preta, onde um lápis era um “riscador”, também de pedra preta, sabíamos a “tabuada” de cor e salteado, nas salas de aula não havia tecto, víamos as telhas onde fazia frio no inverno e eram quentes a partir de Maio e, estava lá, ao lado daquele quadro, que nos parecia muito grande, uma cana comprida para manter o respeito, não tínhamos Playstations, Nintendos, jogos de vídeo, 150 canais na TV a cabo, não havia filmes de vídeo ou DVDs, com som surround, telefones celulares, computadores pessoais, com Internet.

Mas tínhamos amigos, era só vir à rua e encontrá-los. Só havia dois modelos de corte de cabelo, era comprido, de vários meses, talvez até anos, sem nunca ter sido cortado, onde havia os tais insectos a que nós chamávamos “lendias e piolhos”, ou rapado, onde o barbeiro deixava uma “franginha” na frente a cobrir parte da testa, caíamos das árvores, ficávamos magoados, quebrávamos os ossos ou até os dentes e não se ia ao hospital, nem havia acções contra as companhias de seguros por esses acidentes.

Comíamos vermes, terra e lama, enquanto brincávamos em terreno sujo e, os vermes não continuavam a viver em nós por toda a vida. Pelo nosso aniversário nunca nos deram brinquedos, tais como cópias de armas modernas, como pistolas e metralhadorasdo  último modelo, mas sim brinquedos feitos por familiares, com paus ou bolas de trapos.

Aprendíamos a lidar com a decepção, se não éramos escolhidos para a equipa de futebol da nossa rua ou bairro.

Era inédita a ideia que os nossos pais iam socorrer-nos se por acaso quebrássemos a lei, pois eles realmente estavam sempre do lado da lei.


A nossa geração passou, entre outras, pela Segunda Guerra Mundial, por aquela maldita Guerra do Ultramar, produziu alguns dos melhores inventores, tendo sido em parte, uma explosão de inovação, nasceram líderes, claro, com algumas excepções, que têm solucionado a maior parte dos problemas que vão afectando o mundo de hoje, num mundo onde cada vez existem mais facilidades para alguns, mas muito mais dificuldades de sobrevivência, pelo menos para nós, os tais que nascemos entre aquelas datas, alguns até antes ou depois e, tanto no fracasso como no sucesso, sempre assumimos a nossa responsabilidade, os nossos compromissos, a palavra dada, para nós conta e aprendemos a lidar com tudo isso, embora agora, como já mencionámos antes, com muito mais dificuldade.

Se tu, que me estás a ler, és um deles, PARABÉNS. Tenta sobreviver, companheiro de jornada.

Tony Borie, Abril de 2014
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Nota do editor

Último poste da série de 15 de março de 2015 > Guiné 63/74 - P14368: Libertando-me (Tony Borié) (8): Retire da Terra o que é necessário para viver e nada mais

6 comentários:

José Pedro Neves disse...

Camarada ex Combatente Tony Borié, também sou, em parte, um desses, como tu foste, mas como vivi sempre em Lisboa, foi um pouco diferente, mas na essência foi igual. Um Abraço Amigo.

Anónimo disse...

Caro Tony

Em parte fui mais "bem tratado", pois já era filho de emigrante nos States, mas a vida saudável ao ar livre era quase igual. Com os vizinhos nas correrias, em todos aqueles jogos do passado que já ninguém sabe que existiam, pelas terras de semeadura a apanhar "catarinas" para assar enquanto os donos as lavravam com as charruas puxadas pelos bois. No tempo das maçarocas de milho leitoso a surripiar algumas para assar barradas com manteiga que se surripiava em casa.
Enfim, outros tempos, outra forma de vida.

Abraço
JPicado

paulo santiago disse...

Tony
Este foi o fim de semana dos Passos aqui na nossa Águeda.Penso que te lembras bem destas cerimónias da Quaresma.
Grande abraço

Paulo Santiago

Antº Rosinha disse...

Tony, já naquele tempo eramos um país de "Doutores".

Hoje é pior, repetem-se as estatísticas que ser "Doutor" virá a ter mais sucesso na vida do que aquele que começa a dar massa ao pedreiro aos 11 anos.

Ora, se começar a dar massa ao pedreiro só com 26 anos, quando terminar o curso, é melhor já nem começar a trabalhar, já chegou à idade da reforma.
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Tony, agora mudando de assunto, ando muito preocupado (nem durmo) com o problema do Obama e dos americanos.

Então aquela de os afro-americanos levarem porrada a toda a hora dos polícias euro-americanos, nunca mais acaba?

Se vires o Obama, diz-lhe da minha parte que nós os colonialistas tugas já tínhamos resolvido esse problema racial há mais de 100 anos.

Simples, os cipaios eram também afros.

Portanto, só polícias afro-americanos, e acabou o racismo na américa.

É de graça o concelho.

Cumprimentos



José Botelho Colaço disse...

A franjinha na minha terra chamavam-lhe melena.

Hélder Valério disse...

Caríssimo Tony

Sou um regular leitor das tuas crónicas.
Gosto de ler, gosto de conhecer, gosto de aprender.

Hoje trazes à colação as vivências de muitos da nossa geração e aproveitas para fazer algumas comparações com os dias de hoje.

É claro que a roda da história não anda para traz e é natural que hajam hoje vivências novas, diferentes, com problemas e soluções(?) novas.
Claro que concordo contigo em como o estilo de vida, em termos de espaços de convívio, de interacção "ao vivo", em termos de actividade, que foram apanágio dos anos das nossas infâncias e juventude eram (foram), sabemos hoje por comparação, muito mais saudáveis, muito mais motivadores, muito mais indutores para a vida colectiva em vez do isolamento e individualismo que se vive hoje, pelas camadas mais jovens.
Nós sabemos isso, porque comparamos, mas terão que ser 'eles' a perceber e a decidir, pois caso contrário haverá sempre a natural reacção dos novos aos 'velhos', que costumam de classificar de conflito de gerações.

Abraço
Hélder Sousa