sexta-feira, 13 de março de 2015

Guiné 63/74 – P14357: Divagações de reformado (Pacífico dos Reis) (7): Vivo num país que não me faz chorar, faz-me enraivecer

1. Em mensagem do dia 8 de Março de 2015, o nosso camarada José Marcelino Martins (ex-Fur Mil Trms da CCAÇ 5, Gatos Pretos, Canjadude, 1968/70), envia-nos mais uma Divagação de um Reformado, no caso o Cor Cav Ref Pacífico dos Reis, ex-Capitão Cav e Comandante da CCAÇ 5 entre 1968 e 1970:

Bom dia
Tive ontem noticias do "meu comandante" e nosso camarigo Pacifico dos Reis.
Junto o texto recebido, depois de complementado com fotos.

Bom Domingo para todos.
Zé Martins

Divagações de Reformado

7 - Vivo num país que não me faz chorar, faz-me enraivecer


Já estou na idade da “lágrima fácil“. Vivo no entanto num país que não me faz chorar, faz-me enraivecer. Li que 26% dos portugueses não ”mexeriam uma palha” se tivessem que defender o seu País. De quem é a culpa? Deles? Não! Dos muitos pseudo políticos que inculcaram nos jovens uma vida de facilitismo, das famílias que não souberam passar valores à nova geração, dos progenitores que pretendiam que os filhos não passassem as dificuldades que eles passaram.
Nas décadas de 60/70 muitos milhares defenderam o Portugal de então. Nessa altura o nosso Portugal estava espalhado por três continentes. Íamos para o Ultramar com Portugal no Coração. Agora os políticos pavoneiam-se com Portugal na lapela.
Morria-se a defender o País. Neste momento a gente séria morre de vergonha com a catadupa de escândalos de corrupção, lavagens de dinheiro, subserviência ao poder estrangeiro, etc., etc.
À, Eça tanto material que terias agora para as tuas escritas.

Secção de Comando Dragão 
© Foto: José Martins

Por isso prefiro relembrar as saudades que tenho da Guiné e dos tempos que passei em Canjadude, a comandar homens com H grande, guinéus mas portugueses completos, que tinham Portugal no Coração. Sofremos, mas todos em conjunto. Combatemos lado a lado. Sentimos a dor dos feridos (felizmente nunca tivemos mortos debaixo do meu comando) que caíram ao nosso lado.

Prefiro recordar as bolanhas, os espaços livres, a vida simples da população, todo um conjunto de pequenas coisas que sociedade europeia já esqueceu preferindo viver sem valores, formatada pelos grandes banqueiros, secundados pelos políticos corruptos e por um sistema que prepara todo um envolvimento para facilitar a vida a uma corja de privilegiados.

Recordo que muitas vezes saí em operações somente com a secção de Comando (10 homens), todos africanos, sem qualquer problema. Porque eles eram e sentiam-se portugueses. Tinham algo para mostrar ao Mundo. Queriam ser portugueses para todo o sempre. Tinham valores que respeitavam. Muitos depois do 25/4 morreram por manterem esses ideais.

2.º Sargento Enfermeiro Cipriano Mendes Pereira, tombado em 16 de Novembro de 1970, durante um ataque a Nova Lamego 
© Foto: José Manuel Corceiro

Prefiro recordar com saudade o meu Sargento Enfermeiro, também guinéu, que me salvou a vida por duas vezes. A primeira quando adoeci com paludismo cerebral, que geralmente é fatal, mas que conseguiu debelar pelo seu enorme conhecimento das doenças tropicais e grande dedicação.
A segunda quando um dos militares da Companhia se etilizou e meteu na cabeça que queria matar o Comandante. Estava à espera na Parada que chegasse ao pé de mim. Era fundamental para a minha credibilidade na Unidade. Já tinha visto que a Madsen que ele trazia estava em segurança. Não havia perigo iminente. No entanto o sargento Cipriano com risco para si próprio injectou-lhe um calmante que o pôs a dormir.
Este homem bom, cidadão português, corajoso, foi morto em Nova Lamego conjuntamente com a família pelos “libertadores“, já depois de eu ter saído da Companhia

É isto que, já no final desta passagem por este mundo louco, pretendo recordar.
É por isso que nesta ”idade do condor“ esqueço as dores nas articulações e recordo com saudade as dores em todo o corpo ao fim de 4 a 5 dias de operações.
Recordo com saudade a “granada de 60“ vulgo garrafa de cerveja que me vinham trazer mal chegava. Nunca mais bebi uma cerveja tão gelada e tão boa. Recordo emocionado o dia em que retornei a Canjadude para desactivar um campo de minas e toda a Companhia me levou em ombros até ao meu antigo gabinete julgando que ia regressar ao Comando da Unidade. Foi difícil e pungente desenganá-los. E mais tarde, já no ”Puto“, tive o prazer de receber muitos daqueles portugueses africanos que removeram céus e terra para me encontrarem. Muitos com marcas do que sofreram às mãos dos “libertadores”, com histórias daqueles que fugiram e agora eram mercenários noutras terras, aqueles cujas famílias desapareceram, etc..

Tudo isto faz uma vida.
Tudo isto recordo com saudade.

Pacífico dos Reis
Gato Preto
“Faca de Mato “
____________

Nota do editor

Último poste da série de 30 de agosto de 2010 > Guiné 63/74 – P6911: Divagações de reformado (Pacífico dos Reis) (6): TAP ou TAPioca…? (José Martins)

1 comentário:

António J. P. Costa disse...

Olá Camarada
Não te alarmes com a percentagem de portugueses que não se mexeriam em defesa da Pátria. Não há memória de que um país se tenha levantado como um só homem contra um agressor (ou tido como tal) ao país. Se tens dúvidas relembra o colaboracionismo europeu para com os invasores alemães. No nosso país recorda a "rede Shell" e o modo como foi reprimida. Mas os exemplos podem multiplicar-se, em portugal e no estrangeiro. É que, na análise destas situações, pesam outros conceitos e preconceitos que surgem em cada situação.
Quem não se lembra do "Angola é nossa? Vendo a minha parte por meia-garrafa de branco!"?
E estou a falar dos metropolitanos que, em poucos anos questionavam (e bem, em meu ver, claro) o que andavam a ali fazer. É amarga a sensação de não se encontrar uma lógica para o que se faz. E fugir dela é tapar o sol com a peneira.
Claro que me faz pena e me dói o que sucedeu aos que "apostaram no cavalo errado" em nome de um patriotismo que sentiam no íntimo das suas mentalidades pouco desenvolvidas (há que não ter medo das palavras!).
Sacrificaram-se ingloriamente e depois tiveram a paga dos colaboracionistas (injusta, muitas vezes). Mas hoje o seu sacrifício só tem par nos combatentes de pé-no-chão do PAIGC que sofreram - de tanta maneira - e se imolaram em nome de um outro patriotismo que sentiam no íntimo das suas mentalidades pouco desenvolvidas. Uns e outros devem estar hoje a questionar-se sobre a necessidade e utilidade dos seus sacrifícios...
Mas a vida é assim e, num dado momento histórico, é necessário decidir e depressa, pois o inimigo (seja ele o que for) não nos dá tempo para pensar e nem sempre é possível mantermo-nos "neutrais" à espera de como é que tudo vai acabar.
Claro que a solidariedade humana levada a níveis é sempre bela, mas hoje é uma boa lembrança.
Um Abração
António J. P.Costa