terça-feira, 10 de março de 2015

Guiné 63/74 - P14342: Brunhoso há 50 anos (1): As Autoridades (Francisco Baptista, ex-Alf Mil da CCAÇ 2616 e CART 2732)

Vista parcial de Brunhoso - O olmo da esquerda era o do ninho da cegonha, debaixo do qual os ciganos, nos meses de verão se instalavam noite e dia.


1. Em mensagem de 2 de Março de 2015, o nosso camarada Francisco Baptista (ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 2616/BCAÇ 2892 (Buba, 1970/71) e CART 2732 (Mansabá, 1971/72), fala-nos a sua freguesia de Brunhoso de há 50 anos:


Brunhoso há 50 anos

1 - As Autoridades

Havia o presidente da junta cuja escolha recaía sobre um homem dentre o número restrito das famílias mais ricas.
O regedor, representante da autoridade policial, sendo um cargo com menor prestigio social era escolhido entre os homens das famílias de lavradores remediados.

Tanto o presidente da junta como o regedor eram nomeados pelo presidente da Câmara escolhendo os mais idóneos e respeitados entre estas duas camadas da população.
O regime com esta distribuição de cargos procurava contentar uns e outros, respeitando a hierarquia social e económica.

Em abono da verdade os cargos de um e outro mais pareciam honoríficos pois pouco mais faziam do que afixar às portas da igreja ou noutros locais públicos editais e posturas camarárias, tinham uma autonomia quase nula face ao poder camarário e central. Não recebiam qualquer vencimento, nem tinham direito a qualquer mordomia pelo desempenho do cargo.

Já eu era um rapaz praticamente quando foi construída a escola primária, penso pelo ministério da educação, antes as aulas eram dadas na residência paroquial, pois o padre tinha casa própria e dispensou-a. Alguns anos depois foi fornecida eletricidade, o dia da inauguração teve direito a foguetes e banda de música, perdi a festa pois não estive presente.

As ruas, que em tempos foram construídas com pedra à maneira da calçada romana, estavam muito deterioradas com falta de pedra e no inverno algumas transformavam-se num lamaçal.

O presidente da câmara, muitos anos também deputado da União Nacional, herdou do pai a riqueza e o cargo, grande proprietário, um dos maiores do concelho, com muitos bens ao luar, em várias freguesias sendo uma delas Brunhoso. Hoje, como ontem, o poder político é pertença do poder económico e financeiro, diretamente ou através de serventuários bem pagos para isso.
Era um homem muito poupado, morava numa freguesia a cerca de 7 kms do concelho e levava todos o dias o almoço de casa para não o ter que pagar mais caro no restaurante, nas contas da Câmara, que geria, era igualmente poupado não dispensando dinheiro para o arranjo tão necessário das ruas das freguesias do concelho. Não era urgente, afinal as pessoas e os animais passavam sem ficar presos no atoleiro!

Constava-se que o município emprestava dinheiro, a juros baixos, à Câmara do Porto. Formado em direito, era um homem muito conservador, honesto e trabalhador, cumpria o horário de trabalho como qualquer funcionário. O meu pai gostava muito dele, tinham a mesma idade e fizeram a tropa juntos algum tempo, havia muita consideração entre eles.

Dentro dos condicionalismos familiares e do regime em que foi criado, sem ter um rasgo de visão e inteligência que ultrapassasse essas margens estreitas, foi um bom homem, e que eu saiba não foi importunado por ninguém na mudança de regime apesar dos cargos políticos que tinha ocupado.

O regedor, sendo a autoridade policial durante a minha vida em Brunhoso, somente uma vez o vi atuar nessa qualidade, só ele, sem a companhia dos cabos de ordem, o "Vermelho" e o "Verdinho", cunhados entre eles e dizia-se serem os trabalhadores mais valentes da terra. Por sua vez o regedor tinha fama de ser um campeão do lançamento da relha e do ferro, no concelho e nos concelhos limítrofes.
Eram três homens fortes e altos, como havia poucos na aldeia, com uma boa estrutura óssea, que infundiriam temor e respeito, caso tivessem que intervir os três nalguma desordem. Não sei se isso algum vez aconteceu. Da sua força e valentia ficou a lenda.

 Residência Paroquial onde esteve instalada a Escola Primária até cerca de 1960

Fotos: © Francisco Baptista

Brunhoso era uma terra pacifica, as pessoas iam gerindo alguns pequenos conflitos que iam surgindo sem a intervenção de terceiros. Ouvi falar, era eu muito novo não me apercebi, que foi chamado a intervir num conflito onde houve um ferido muito grave.

O conflito que eu recordo e ao qual sei que ele foi chamado com insistência porque pareceu a alguns habitantes que poderia haver perigo de morte, aconteceu num dia de Carnaval.

O dia de Carnaval na aldeia era o dia da grande borga, da grande descontracção, da grande bebedeira, alguém que me foi muito próximo, o meu pai não, que era abstémio, disse-me um dia, penso que com algum exagero, o seguinte:
- Chico, há alguns anos eu bebia um garrafão de vinho por dia e era isso que me dava força para trabalhar a terra, no Entrudo bebia dois garrafões e à noite transportava os borrachos às costas para casa deles.

Nesse ano, teria eu 16 ou 17, ao cair da noite, os que continuaram a pé pelas ruas, após as festas diurnas, eram todos alegres foliões. Tão excessivos no consumo de álcool em épocas festivas só conheci os bávaros num Carnaval em Munique. Em Munique, cerveja ou vinho quente com aguardentes ou especiarias, em Brunhoso, vinho, in illo tempore, hoje de tudo, cerveja e até água ardente.
Nesse estado de espírito alegre e divertido, com alguns copos a rodar de mão em mão, estavam muitos no Balcão, uma praça pequena, como a aldeia, comparada com Munique, uma grande cidade europeia, equivaleria à Marianplatz, em ponto pequeno e sem a estátua de Maria, mas era a praça central. Surgiram alguns "estrangeiros" que tinham estado a comer e a beber em casas da aldeia, portugueses naturais ou próximos de terras grandes e longínquas, a trabalhar em Mogadouro, que a alguns da terra fizeram perguntas que eles acharam provocadoras e de quem quer gozar com os pobres e ignorantes. Eles estavam na melhor da disposição para lhes dar comida e vinho, mas essas palavras caíram-lhes como rastilho já a arder em pólvora pronta explodir. O grande provocador, o que pronunciou as palavras que incendiaram os presentes, foi agarrado, maltratado, esbofeteado, pontapeado e por fim arrastado por uma rua contígua cheia de pedras e lama.

Quando chegou o regedor, os maus-tratos terminaram e os estranhos foram enviados de automóvel para Mogadouro. Sei que o homem maltratado, que afinal foi só um, esteve um mês no hospital, ainda pensou pôr uma acção em tribunal mas desistiu talvez por não encontrar testemunhas.

As relações entre estas duas autoridades, presidente da junta e regedor, eram corretas, sem serem cordiais ou amistosas, nunca soube qual a razão apesar de conhecer bastante bem um e o outro.
Aparentemente parecia também que não davam especial importância aos cargos e que procuravam fugir das raras cerimonias oficiais.

Parecia-me igualmente que eram indiferentes ao regime, sem terem ideias politicas para lá da defesa da propriedade, da família e da religião, aceitavam esse regime como qualquer outro que aceitasse essas premissas. Noutro contexto, e sem querer fazer uma comparação ipsis verbis, lembrei-me da forma como os homens grandes das tabancas da Guiné recebiam os cumprimentos das autoridades militares. Afinal a sociedade deles tinha resistido a revoluções várias e a regimes diferentes. Não imaginavam que o fim dessa sociedade estava próximo.

Havia duas outras autoridades de quem pensava falar o padre e a professora, fica para outra altura, pois a conversa já vai longa, como não gosto de abusar da paciência de alguém que me queira ler, vou remeter este texto ao amigo e camarada Carlos Vinhal e ele e o grande camarada Luís Graça que decidam se é publicável ou não.

Não sem razão escrevia ontem o amigo Helder Valério, por outras palavras, que estes quadros bucólicos, que pinto mal ou bem, repetiam-se muito com várias cambiantes e matizes por essas aldeias de Portugal inteiro.

Na verdade ao escrever estas estórias para muitos de vós, que já as conheceis no todo ou em parte, devia estar a escrever para os meus netos, desculpai, estou à espera que eles cresçam para me ouvirem com mais atenção. Entretanto vou relembrando aos mais esquecidos ou distraídos, ou aos que nasceram na cidade grande e tenham curiosidade de saber como se vivia à mais de 50 anos nas aldeias, muitas vezes a poucos quilómetros dessa cidade.

A todos um grande abraço
Francisco Baptista

6 comentários:

Anónimo disse...

Mais uma página da vida das aldeias de Portugal, redigida pelo Francisco Batista com a mestria que se tornou já habitual. É uma forma de nos revelarmos como fomos que nos ajudará a compreender como somos. Era o Portugal da autoridade indiscutível e da austeridade absoluta.
Um abração
Carvalho de Mampatá.

Luís Graça disse...

A minha formação sociológica e a minha sensilidade cultural levam-me a valorizar muito estes relatos da nossa infância e adolescência...

Esta é nossa geração, a que lê e faz este blogue, e que combateu na Guiné, entre 1961 e 1974, nos anos 40, uns mais para o princípio, outros mais para o fim... Vamos lá, os "piras", já nasceram em 1950, 51, 52...

Mas é tudo geração do pós-guerra, quando mais de metade da população portuguesa ativa trabalhava no setor primário (agricultura, silvicultura, caça e pescas; minas e pedreiras)... Numa economia fracamente monetarizada, e com uma forte componente de autossubsistência: em casa, fazia-se as tamancas para calçar; cultivava-se o linho para tecer e fazer as camisas e os lençois: matava-se o porquinho que era o governinho da casa para o ano interior... "E patacão cá tem"... Nos campos ganhava-se por dia, na melhor das hipóteses, um "santo antoninho" (vinte escudos), até finais dos anos 60!...

Vivia-se no interior do país, em pequenas vilas e aldeias, onde em muitos casos só chegava o médico na hora da morte...

É esse Portugal, hoje periférico, pobre, interior, envelhecido, que irá fornecer, há 50 anos atrás os mancebos que fizeram a guerra, a mão de obra que há de alimentar a emigração, maçiça, para a Europa "dos 30 gloriosos" (as três décadas de crescimento económico ininterrupto, do milagre francês, alemão, italiano...)...

E igualmente a emigração interna que vai ajudar a desenvolver o eixo litoral, industrializado, Sines-Setúbal-Lisboa-Coimbra-Porto-Braga-Viana do Castelo...

Todas as memórias da nossa infância, adolescência e juventude são bem vindas a este blogue...

E dou os parabéns ao Francisco por querer partilhar com os seus camaradas as recordações de Brunhoso connosco...

JD disse...

Camaradas,
Também saúdo o Francisco por estas narrativas transmontanas, sobretudo de Brunhoso onde terá crescido e se fez homem. Arriscaria afirmar que esta peça foi escrita pelo Carnaval, e que o levou a recordações antigas, relativas ao divertimento masculino local, que não dispensava uma bela bezana.
Eu, quase lisboeta, se lá tivesse estado, estaria sob o olhar atento dos circunstantes locais, e poderia candidatar-me a bombo da festa. Mas na minha terra periférica da capital era quase o mesmo, e a malta aproveitava todos os pretextos para gozar. E era gozo indiscriminado, às vezes até com desvalidos, o que não era prática saudável.
Para além desta viajem aos costumes, também fica registada uma incursão política, da qual avulta a dúvida, se o regedor, como o presidente da Junta eram eleitos, ou nomeados pela autarquia. Se a resposta incidir nas eleições, ouso dizer que seria uma prática de democracia avançada, pois hoje em dia, com as tricas e jogos de influência partidária, ou os mais válidos se abstêm de cargos públicos, ou podem constar de listas menos votadas.
Abraços fraternos
JD

Anónimo disse...



O Carvalho de Mampatá dá-me sempre o apoio e o abração, como irmãos da corda de Buba, Nhala Mampatá, Aldeia Formosa e doutra rota, Porto, Medas, Souto da Velha, Brunhoso. Pelos caminhos percorridos que nos marcam pelos cheiros e pelas paisaigens, tenho que ter uma especial simpatia por ele.
O luís Graça que sendo um grande camarada eu tenho-o por um amigo especial, bem sei que é especial para muitos, para mim continuará a ser também, porque eu sei que ele se pode desdobrar. Estamos a ficar velhos, quase todos gostamos duma palmada nas costas, para nos ajudar a subir a encosta. Grande camarada agradeço-te muito a força que me continuas a dar, mesmo quando eu insisto em voltar às minhas origens, quando deveria falar mais do nosso passado comum africano.
Meu caro amigo, gostaria tanto de conhecer a Guiné, dos meninos, das bajudas, dos adolescentes e dos homens grandes. Infelizmente, culpa minha, que não vou poder explicar agora, vim de lá quase tão ignorante como fui.
Do José Manuel Matos Dinis tenho a ideia que ele já me desafiou pelo menos uma vez para um confronto verbal. Eu confesso que acabei por não responder ao repto por um certo cansaço não relacionado com estas vivências. Gosto da tua jovialidade, das tuas intervenções muito personalizadas, da tua frontalidade, penso que tu és um amigo de todos e meu amigo também.
Sei que dia 19, está anunciado, vai haver um almoço da Tabanca da Linha, gostaria de ser admitido nesse almoço, está claro com a permissão do comandante Rosales. Se o Luís Graça, por vontade dele e com a vossa permissão estivesse presente seria bom. Tudo isto é uma ideia que ainda não sei se terá aprovação familiar.
Todos nós fomos tropas, os nossos sargentos e capitães gritavam muito alto na parada, mas em casa falavam baixinho, porque aí não mandavam.
Conclusão não é fácil conseguir um passaporte.

Um grande abraço

Francisco Baptista

Antº Rosinha disse...

O Francisco Baptista não chegou a estrear a escolinha do centenário do Salazar.

É e era a sina do atraso do interior do país.

Mas os nossos pais que tivessem tido a sorte de terem ido à escola, antes do Salazar governar, tinham que cotizar-se entre todos, e ajudar a pagar o aluguer de uma qualquer parte de casa, que ficava à responsabilidade do professor organizar.

É que o professor se quisesse dar escola, tinha que proceder ao aluguer de uma sala, muitas vezes uma parte da casa em que morava ele próprio.

Temos que escrever a nossa história, e o que está a fazer Francisco Baptista e nós todos, porque antes de nós pouca gente escrevia porque não havia as escolas do centenário e não sabiam ler.

JD disse...

Caro Francisco,
Muito obrigado pelas simpáticas palavras que me diriges, talvez a roçar o exagero. Acertas, porém, quando referes como prezo a amizade camarada (naquele sentido que António Lobo Antunes referiu a propósito do passamento tragico de um amigo comum, que foi publicado aqui no Blogue.
Na Magnífica Tabanca da Linha manda S.Exa. o Senhor Comandante que, naturalmente, não se ocupa de todos os assuntos, delegando funções a diferentes correlegionários. Mas nisso ele é muito exigente, no cumprimento escrupuloso de cada função atribuída. S.Exa. não é um monobloco, frio e insensível, pelo contrário, é humanista e apoia cada um dos seus.
Assim, estou à vontade para te convidar a partilhares connosco do magnifico panorama de Oitavos. Será um prazer ficar à conversa contigo, dada a admiração que grangeaste por força da tua sensibilidade, educação, e determinismo, que ainda não te conheço bem.
Nestes termos, faz o favor de apresentares à tua comandante principal, o pedido que lhe dirijo para que te autorize à experiência, que ela própria poda partilhar, e ficar-te-á muito bem a simpatia de a convidares para também desfrutar da paisagem.
Sobre o Com-Chefe Luís Graça, +e conhecida a simpatia que dedica à Magnífica, porém, os seus afazeres, quando não interrompidos por dificuldades físicas, não lhe têm permitido maior assiduidade, e nem sei se dia 19 poderá juntar-se na comedoria da bianda.
Vá lá, se sim, podes contactar-me pelo telefone 913 673 067, ou ao Sr Comandante, salvaguardadas as cerimónias de apresentação, pelo nº.914 421 882.
Um abraço amigo
JD