sexta-feira, 6 de março de 2015

Guiné 63/74 - P14326: Notas de leitura (687): “O Legado de Nhô Filili”, por Luís Urgais, Oficina do Livro, 2012 (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 21 de Maio de 2014:

Queridos amigos,
Temos aqui uma surpreendente e atrevida intrusão multicultural, Nhô Filili é um funcionário régio que no último quartel do século XIX irá desafiar leis sociais cabo-verdianas casando com uma escrava guineense.
Luís Urgais está na posse de pleno conhecimento do barro que molda, constrói um romance histórico com muita plausibilidade e pena é que tenha precipitado o final do romance, pondo a galope os acontecimentos que precedem as atividades dos movimentos independentistas.
Uma obra que exalta os valores específicos da cabo-verdianidade e se mostra bem documentada quanto à natureza e importância do comércio negreiro e ao porquê da perda de influência da rota cabo-verdiana no termo da II Guerra Mundial.

Um abraço do
Mário


O Legado de Nhô Filili: Quando a literatura luso-cabo-verdiana se encontra com a Guiné

Beja Santos

“O Legado de Nhô Filili”, por Luís Urgais, Oficina do Livro, 2012, é um romance originalíssimo escrito por alguém que tem aprofundado conhecimento sobre a mestiçagem e a Cabo-verdianidade, trata-se de um registo poderoso de multiculturalidade em tempos da abolição da escravatura. A figura central é João Bento Rodrigues, conhecido por Filili, filho de minhotos, nascido na Ilha do Fogo. Será proprietário e funcionário régio, diretor local das alfândegas, irá afrontar a sociedade do seu tempo casando-se com a escrava Maguika, capturada nas matas da Guiné. É uma história de amor mas é acima de tudo um muito bem organizado romance histórico que tem o seu ponto de partida em 1869 (ano em que a monarquia portuguesa decretou a abolição da escravatura) e o seu termo será o período em que estão a eclodir as independências africanas.

É mesmo um romance histórico no seu figurino mais rigoroso: um cenário plausível, uma atmosfera de viragem, uma estrita compreensão das economias coloniais, um domínio absoluto da vida cabo-verdiana a partir do último quartel do século XIX. Dado o recorte da personalidade de Filili, a trama irrompe na Praia da Bateria, Filili, conhecido no meio local por Nhô Joãzim compra uma escrava ao corretor Abílio. Chama-se Maguika, mas Filili dá-lhe o nome de Guida, Margarida Gomes Fernandes. Guida é de etnia Papel, os tangomaus, intermediários no comércio de escravos, fora capturada por Bijagós, e ali estava. Os afetos prontamente faíscam:
“À medida que o tangomau desagrilhoava os tornozelos da fêmea nova e Filili pousava nela o olhar, estabeleceu-se uma clara empatia entre ambos. Ele quis saber se a sua nova escrava entendia a língua portuguesa ou o crioulo, mas de repente achou-se ridículo, não era suposto o escravo capturado entender o linguajar dos aculturados, e muito menos o do colonizador. Arrependido da observação, como se tivesse acabado de ofender a menina, Filili emudeceu. Mas ela, a quem jamais se ouvira uma palavra, atirou num português claro de sotaque arredondado: - Sou Maguika.”.

Enceta-se um romance em que a escrava fica como que numa aprendizagem de um Pigmalião, esse Filili asceta, cristão devoto e negociante irrepreensível. É esta menina vinda da Guiné que lhe irá dar coragem para enfrentar os negreiros, pôr em prática as normas régias tendentes a restringir e disciplinar o tráfico de escravos nos portos de Cabo Verde. O romance histórico entremeia informação que contextualiza o comércio negreiro ao longo dos séculos com o amadurecimento da relação entre Guida e Filili. Este restringe a sua vida social, deixa de ir aos bailes dos sobrados da elite, há mesmo uma apaixonada, de nome Antonieta, que não desarma. E as peripécias sucedem-se:
Leila, a amante de Filili, que dele estava grávida, viaja com Abílio, pai de Antonieta, o guarda-costas Abel mata-o a pontapé para lhe roubar uma boa maquia e rapta Leita, leva-a pelo caminho dos desfiladeiros em direção às montanhas dos rabelados, era ali que viviam os escravos fugidos em redutos fortificados. E de uma assentada Antonieta teve dois desgostos: após o funeral do pai, abriu o cofre onde este guardava o dinheiro e descobriu que caminhavam para a miséria; e descobriu que Filili andava perdido de amores pela escrava guineense.

A descrição do processo educativo de Guida é um primor de análise em torno dos meandros do que seria uma educação romântica na colónia portuguesa com maior sedimento cultural. Mesmo a incandescência da paixão é pintalgada com cores ténues, expressões contidas:
“À terceira vez que sentiu passos no corredor, a escravinha tomou coragem e, de um salto, saiu da cama. Ao assomar-se à porta do quarto, deu caras com Filili, que caminhava para a frente e para trás, aparentemente insone. Mas, quando ele se voltou e viu o corpo da sua Guida à transparência da camisa de dormir, não aguentou mais e correu para ela, abraçando-a e beijando-a num sufoco. Ela, evidentemente, correspondeu.
Filili era, porventura, o homem de pele mais clara do arquipélago de Cabo Verde e Guida uma das negras mais escurinhas. Mas, no rolar dos corpos, ter-se-ão, de tal modo, misturado um com o outro que ficou sem se saber, exatamente, onde começaria o branco dele e acabaria o negro dela”.

E Filili confronta-se com os costumes da sociedade cabo-verdiana, passa a viajar na companhia de Guida levando consigo o cónego Teixeira, como se o representante o igreja o protegesse da má-língua. Luís Urgais enquadra com mestria os ambientes, as festas, a vida de interior, os protocolos, a vida rural, é um artífice laborioso, bem documentado, que empurra a leitura de uma página para outra. A viagem entre o Fogo e a Brava, num canal onde subitamente estala a tempestade, é de elevada pirotecnia literária. Igualmente contido quando disseca a sociedade feudal cabo-verdiana. E naquele cheiro de uma África com odores de água salgada e vegetação rasteira, o cónego Teixeira casa os dois amantes, um homem caucasiano de pele muito clara, descendente de minhotos, com uma negra da Guiné.

Não há paixão angelical que sempre dure, vão chegar os filhos, entra-se num período de marasmo de secas e de fomes cíclicas. O filho mais velho, de nome Armando Napoleão, ia a filha mais velha, Leonilde Amélia (Titcha), vão revelar-se dois trastes. Somos inseridos nas atmosferas fúnebres, aquela estiagem é interminável, as nascentes secam, o povo está à míngua. O autor exponencia a importância de Joana, a criada que vem dos tempos da infância de Filili e que há-de acompanhar Guida, tem um papel fundamental na narrativa, realçando pelas histórias que conta a força da esperança, a vibração do sonho. Chega-se à República e ao Estado Novo, há jovens cabo-verdianos que partem à busca de uma vida melhor na metrópole. Durante a guerra, o Mindelo iria funcionar como asilo para muitos europeus. O porto de Dakar irá substituir pela importância que no passado tiveram os portos cabo-verdianos. José, o filho dos amores de Leila e Filili, irá ser educado pelo pai e madrasta, é um modelo de virtudes. No envelhecimento, Filili descobre que os filhos mais velhos lapidaram património. Filili desaparece, Guida vai ser repudiada por esses filhos rapazes. No auge da dor, Joana conta uma história exemplar a Guida, exatamente naquela praia em que se tomara de amores por Filili. Está só, mas confia plenamente nesse enteado exemplar. E toda esta história que tem como cenário a evolução de Cabo Verde, este retrato de uma África bela e sedutora, uma verdadeira metáfora da história da mestiçagem biológica e cultural de que Cabo Verde foi exemplo acabado, termina com um pensamento de Guida para o seu Joãzim, ela dá conta de uma borboleta branca que por ali esvoaça, prenúncio de boas novas:
“Olhou o mar diante de si e abriu um sorriso do tamanho do mundo”.

Uma grande surpresa para a lusofonia, esta promessa literária de Luís Urgais.
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Nota do editor

Último poste da série de 2 de março de 2015 > Guiné 63/74 - P14312: Notas de leitura (686): “Nós, Enfermeiras Paraquedistas”, coordenação de Rosa Serra e prefácio do Prof Adriano Moreira, Fronteira do Caos, 2014 (Mário Beja Santos)

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