sexta-feira, 20 de fevereiro de 2015

Guiné 63/74 - P14275: (Ex)citações (261): Uma coisa posso dizer com clareza: o povo guineense é um povo digno de admiração (Manuel Joaquim, membro da ONGD Ajuda Amiga)









Fonte: Solidariedade - Para Amizade Sovieto-Africana, boletim de informação, agência Novosti, 8, 1969, p.4. (Material apreendido ao PAIGC em Nhacobá,. Região de Tombali, Guiné, em maio de 1973 (*).. Coleção de António Murta [ex-alf mil inf , Minas e Armadilhas, 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4513. Aldeia Formosa, Nhala e Buba, 1973/74]

Foto: © António Murta (2015). Todos os direitos reservados [Edição de CV]



Sintra > Azenhas do Mar > Setembro de 1977 > Adilan, o menino balanta-mané que o Manuel Joaquim trouxe da Guiné em 1967 e que criou como se fosse seu filho... Aqui,com as suas "manas"... Hoje, o José Manuel S. C., com 54 anos, casado, pai de filhos, é cidadão português e está plenamente integrada da sua segunda pátria.

Foto: © Manuel Joaquim  (2010). Todos os direitos reservados.



Cascais > Janeiro de 2011 > Quando fez 50 anos, em 12 de janeiro,  o Adilan [, José Manuel S.C....] com as suas "manas", não de sangue mas de afeto... Uma belíssima história, já aqui contada e recontada, e que na começa num operação militar ao Morés (**)...

Foto: © Manuel Joaquim  (2011). Todos os direitos reservados.



1. Comentário de Manuel Joaquim (***) [, membro da ONG Ajuda Amiga,  ex-fur mil  armas pesadas, CCAÇ 1419, Bissau, Bissorã e Mansabá, 1965/67; padrinho do "Adilan, nha minino";  professor do ensino básico, reformado; por todas as razões, talvez o camarada da Tabanca Grande que menos de lições precisa de dar e receber  em matéria de afetos lusoguineenses...]

Vamos aos afectos, queridos camaradas da Guiné! (Veem como estou afectuoso?) Falo por mim que de afectos é o que mais preciso agora, neste momento de opinar.

Isto de levar a dianteira em matéria de afectos será complicado de gerir pelos sujeitos da afeição:"Quero lá eu saber se aquele chegou em 1º ou em último lugar; agrada-me é que gostem de mim, o resto é lá com eles".

Bem, não dirão nada pois não terão conhecimento desta tão agradável notícia, digo eu.

O objectivo é saber se há uma relação afectuosa entre alguns (muitos, poucos?) portugueses e os guineenses. Porque entre os dois conjuntos, "povo português" e "povo guineense", duvido que alguém consiga avaliar essa relação. E penso que, a ser avaliada, não obteria uma posição de relevo se comparada com a de outros povos ditos amigos da Guiné-Bissau.

É verdade que tenho afeição ao povo guineense mas este inquérito não é sobre afectos individuais.
Começo já por dizer que concordo totalmente que "em matéria de afectos e em relação aos guineenses, levamos a dianteira ....". 

Mas agora me pergunto: Qual a posição nessa dianteira? Encostados, mais ou menos perto ou muito à frente do segundo lugar?

Não sei responder. Russos, chineses, cubanos, suecos, etc.etc., actuaram na guerra colonial em favor do povo guineense?

Aceitando a linguagem política da questão, digo que sim, que actuaram na retaguarda, na formação militar e ideológica e na logística da guerra do PAIGC, alguns a participarem directamente nos combates (quase só cubanos).

Ajudaram sob o signo da amizade? Ajudaram, sim. Mas não o fizeram só pela amizade (ficava-lhes caro demais). 

As «Associação de Amizade X - Guiné-Bissau», (sendo, por exemplo, X o nome de um dos países ajudantes) parecem querer dizer que sim mas a Amizade" talvez seja o último dos objectivos a atingir pelos parceiros da Guiné-Bissau. Há outros, económicos e estratégicos, mais importantes e prioritários. De resto a chamada "amizade entre os povos", notariada em cerimónias diplomáticas, é quase sempre fantasia para uso político-económico, onde os afectos não contam.

Na dianteira dos afectos vão os portugueses. Acredito, mas até quando?

Afinal o que é que nos liga à população guineense, qual foi o "cimento" e o adubo desses afectos?
Penso que o "cimento" foi a guerra colonial e o adubo tem vindo a ser distribuído desde o início da guerra. Mas não podemos equiparar à realidade actual o grau afectivo das relações entre muitos dos antigos combatentes portugueses e a população guineense com quem conviveram. E é o que pode acontecer quando se escrutinarem os resultados desta consulta, pois quer-me parecer que haverá gente a responder pensando "particular" (em si) e não "global".

Esta afectividade ainda existente, não sei em que grau, deve muito aos afectos nascidos durante a guerra e presentes na memória de muitos dos participantes nessa guerra ainda vivos, combatentes ou não, militares ou civis.

Mas o tempo não perdoa. Muitos dos usuários dessa memória, a maior parte deles guineenses, já morreram. Por isso não acredito que os laços afectivos se tenham vindo a fortalecer apesar de não ser difícil encontrar notícias de afectividades recentes resultantes dos contactos de cidadãos portugueses que têm visitado a Guiné nos últimos anos. Tenha-se em atenção que muitas destas afeições são interesseiras, só existem no discurso: "a necessidade aguça o engenho!".

Creio que esta relação afectiva não é igual de parte a parte. Será mais forte do lado guineense do que do lado português. O desenrolar da vida política, social e económica da Guiné tem sido um desastre desde a sua independência. Como não admitir que o povo sabe fazer comparações sobre a sua situação entre os tempos de antes e o pós-independência?

 Afinal o que é que liga à Guiné, afectuosamente, muitos dos antigos combatentes portugueses?
Será a recordação dos tempos difíceis e das situações aflitivas por que passaram, dos momentos de camaradagem, de alegria e de sofrimento, das marcas deixadas pela guerra e que, para o bem e para o mal, não se apagaram?

Serão as memórias da sua juventude passada na Guiné, para muitos deles tempos de muitas dificuldades mas também tempos de revelação de si próprios,  das suas capacidades e do comportamento humano perante o bem e o mal, tempos de descoberta de outros "mundos", de outros lugares, de outro(s) povo(s) com seus usos e costumes?

Será para alguns a lembrança da ternura e da afabilidade sentidas nos momentos de convívio com a população que os rodeava, contrapondo esses consolos aos momentos de tristeza e medo, provocados pela guerra para onde foram obrigados a ir e de onde regressaram (os que regressaram) muito diferentes do que eram quando lá chegaram?

Procurar conviver com a população foi para muitos um objectivo facilmente cumprido pois o povo que os "recebeu" tinha, em geral, um comportamento não conflituoso com os militares. Era mais frequente mostrar afabilidade que indiferença. Sinais visíveis de desprezo seriam raros, o que não quer dizer que não pudessem existir em número mais elevado. Mas também havia sinais de dedicação e de sacrifício no apoio a muitos militares portugueses.

A afectividade ainda hoje existente nasceu de tudo isto?

Os afectos que muitos dos ex-combatentes têm por muitos guineenses poderão assentar nestas recordações de uma terra estranha para onde foram lançados e onde se viram obrigados a situarem-se de modo a lhes ser mais fácil alimentar a esperança de regressarem, vivos e inteiros.

Procurando um ponto de equilíbrio, conscientemente ou não, criaram laços, criaram amigos, "forçaram" relações pessoais e/ou aceitaram de bom grado outras delas, entraram de cabeça, uns, de mansinho e receosos outros. E assim conviveram sem sobressaltos de maior com o povo que lhes rodeava os aquartelamentos.Quem perde a memória feliz daqueles momentos?

 Durante algumas centenas de anos não houve naquela terra qualquer tipo de convívio social de portugueses com a generalidade da população da Guiné. Não me admira nada, os tempos eram outros, a visão centralista europeia olhava os povos africanos não como seus semelhantes mas como seus servidores. Portanto não acuso ninguém.

Não houve convívio mas houve muitos conflitos violentos, guerras mesmo.

Algumas relações sociais existiram mas para permitir acordos de negócios entre as partes, entre o poder colonial, oficial ou particular, e o dos chefes tradicionais locais. Acordos estes que variavam "conforme os ventos".

Outras relações, entre patrões e serviçais, entre dominadores e dominados, "colonos" e "colonizados", estavam assentes em posições de domínio absoluto do mais forte.

O poderem ter acontecido relações afectivas, pontuais e muito limitadas no tempo, no espaço e na sua abrangência, não me leva a dizer que as relações do poder com a população criaram afectos que se foram cimentando no decorrer do tempo. Não se acusa ninguém, há que ter em conta a relatividade histórica na análise do comportamento das sociedades.

Para que serve, então, bater na tecla das relações de amizade com os povos da Guiné, de há 500 anos para cá? Não serve nada, deixemos esta balela para gestão política.

Relações de amizade? Não estou a falar de relações sociais, amigas ou não, entre reduzidos números de portugueses residentes e algumas entidades gentílicas. 

Falo dos afectos resultantes da convivência diária, da partilha de vivências, da aculturação mútua surgida de contactos mais duradouros que foi o que se verificou em muitos lugares durante a guerra colonial de 1963/74.

A ida para a Guiné de tantos militares transportando a diversidade cultural existente na sociedade portuguesa, proporcionou ao povo guineense o ter alguma noção do que é "ser português" (o povo não é burro). Apesar de andarem de armas na mão, estes militares, não se pareciam com os antigos que, há séculos, se vinham sucedendo muitas vezes lançados ao deus-dará e a assumirem o poder colonial sem que para isso estivessem preparados nem mandatados, decididos a serem obedecidos a qualquer preço, na satisfação dos seus caprichos e ambições.

E quanto ao futuro?

Vai havendo bom trabalho, feito por organizações portuguesas e guineenses. Mas é pouco. Sei alguma coisa do que falo. Sabemos, aqui no blogue, de algumas associações e do seu trabalho na manutenção deste ambiente solidário e amigo entre muitas pessoas da Guiné e de Portugal. Convivo regularmente com guineenses, alguns deles antigos militares portugueses.

A base de sustentação dos afectos está, principalmente, nos antigos combatentes na Guiné e em poucos mais. Mas estes poucos mais não são  "pouco", são o sinal de que a solidariedade afectiva não morreu. Na Guiné sucede o mesmo. Há muita gente que gosta dos portugueses mesmo que políticos de serviço tenham algumas vezes afirmado o contrário. A população que conviveu com os militares portugueses não os esqueceu.

Não deixámos más memórias ao povo com quem convivemos. Isto na generalidade pois pode sempre haver "fruta podre nas caixas". Mas o povo não é estúpido em lugar nenhum do mundo, ainda que muita gente o afirme.  E, normalmente, sabe relativizar os acontecimentos, princípio básico necessário à sua sobrevivência com alguma dignidade social.

E uma coisa posso dizer com clareza: O povo guineense é um povo digno de admiração.

Agradecendo a quem se deu ao trabalho de ler todo este meu "discurso" um pouco atabalhoado. (****)

Abraços para todos
Manuel Joaquim
__________________

Notas do editor:

(*) Vd. poste de 6 de fevereiro de 2015 > Guiné 63/74 - P14226: A guerra vista do outro lado... Documentos apreendidos ao PAIGC em Nhacobá em 17 de maio de 1973 - Parte I (António Murta, ex-alf mil inf, 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4513. Aldeia Formosa, Nhala e Buba, 1973/74)

(**) Vd. poste de:

 10 de novembro de 2010 > Guiné 63/74 - P7261: História de vida (32): Adilan, nha minino. Ou como se fica com um menino nos braços - 1ª Parte (Manuel Joaquim)

12 de novembro de 2010 >  Guiné 63/74 - P7267: História de vida (33): Adilan, nha minino. Ou como se fica com um menino nos braços - 2ª parte (Manuel Joaquim)

(***) Vd. poste de 11 de fevereiro de 2015 > Guiné 63/74 - P14240: Sondagem: somos um povo de afetos ? Resultados preliminares (n=70): 80 % dos respondentes "concordam totalmente", com a proposição segundo a qual "em matéria de afetos, e em relação aos guineenses, levamos hoje a dianteira a russos, chineses, cubanos, suecos e outros que apoiaram o PAIGC no tempo da guerra colonial"...

9 comentários:

Henrique Cerqueira disse...

Hoje não resisti a comentar este tema dos afectos.
Tenho andado a adiar este meu comentário porque também me sinto indeciso se há ou não assim tanto afecto por um povo que já foi Português.
Para já eu posso afirmar com toda a segurança que tenho um muito grande afecto e saudade por determinadas pessoas da Guiné e muito em especial o meu antigo menino e carregador Inhata Biofa que já aqui referi num poste meu.
Mas esse tipo de afectos também o tenho por muitas outras pessoas cá do meu país...ora assim sendo os tais afectos que constaram da sondagem em que são comparados aos dos Soviéticos,Cubanos,Suecos e outros que tais e que foram muito afectivos durante as guerras coloniais em especial no fornecimento de material bélico. Enquanto que nós éramos "afectivos"mais na área da acção Psicológica.
Hoje em dia e no meu entender e até no meu coração eu desejo muito ,mas mesmos muito que o Povo Guineense consiga a prosperidade para que tanto "Combateu",mas em termos de afectos o meus são realmente para as únicas pessoas que me marcaram pela positiva naqueles dois anos em que fui obrigado a ir à Guiné.
Também não deixo de aqui referenciar que ainda não esqueci algumas atrocidades cometidas por combatentes do PAIGC( quiçá...instruídos pelos tais afectos dos outros países afectuosos).Já sei que hoje em dia,nada tem a haver com o assunto. Mas,esta é a minha verdade.
Deixo aqui mais uma vês o meu sincero desejo que o POVO DA GUINÉ BISSAU SEJA FELIZ.
Henrique Cerqueira

Rui Silva disse...

É verdade caro amigo Manuel Joaquim. O povo da Guiné pese (e muito) as circunstâncias que me levaram a conhecê-lo, ficou-me na retina se não no coração. Povo humilde e trabalhador, sacrificado, que mereceu (e merece) a minha maior admiração e respeito. A desdita da vida ao verem-se envolvidos numa guerra que muitos deles (novos e velhos) pereceram sem a compreender (se é que se compreende em caso algum) Recebe um grande abraço deste amigo que muito te considera.

Luís Graça disse...

Obrigado, camaradas, os vossos comentários são bem vindos.

Anónimo disse...

Caríssimo Manuel Joaquim. Li e reflecti. Afinal e ao que parece compartilhamos a mesma ideia para o futuro. Mas orgulha-mo -nos do que fizemos e do que fazemos enquanto por aqui andarmos. Tu mais do que eu, que votei não sei, terás uma opinião correcta.Toma lá um abraço do
Veríssimo

Torcato Mendonca disse...

Meu Caro Manuel Joaquim,

Só para te enviar um abraço, dizer que li com gosto e lentidão o teu texto (ou a tua reflexão escrita?). Um LIKE como dizem agora e não aacrescento mais porque a cabeça, a saúde, assim me pede.

Devias escrever mais vezes aqui neste espaço que, um dia, talvez muito tempo atrás disseram ser de afectos.(afetos não p.f., não)

Abraço amigo,T.

José Botelho Colaço disse...

A amizade a confiança constrói-se no dia a dia com pequenas acções,
por exemplo hoje no funeral do Amadú Jaló vi o Virgínio Briote tomar notas para tentar ajudar uns guineenses.

Antº Rosinha disse...

Só venho aqui, porque os deputados que nem são do nosso tempo, levaram Eusébio para o Panteão Nacional.

Não leves a mal este abuso Manuel Joaquim.

Mas as conversas são como as cerejas.

Luís Graça disse...

Manel Jaquim:

A história do Adilan, o menino do Morés que te caiu nos braços, comoveu-nos a todos e continua a ser uma das 10 melhores histórias aqui contadas no nosso blogue... Há de figurar numa antologia da Tabanca Grande,se tivermos tempo, pachorra, saúde e "patacão" para um dia publçicar, em livro, essa antologia...

Mas, na altura, também comentei entre coisas coisas o seguinte (e passo a citar):

"Tantos e tantos 'djubis' que não tiveram a 'sorte grande' de encontrar um homem, de coração grande, como o nosso Manuel Joaquim!...

Lembro-me, por exemplo, do Tchombé, a 'mascote' da messe de sargentos de Bambadinca do meu tempo (BCAÇ 2852, BART 2917, CCAÇ 12, 1969/71)... O que será feito deste 'minino', que não teria mais do que cinco anos quando o conheci, e que ninguém pôde ou quis trazer para a metrópole...

Julgo que era 'órfão de guerra' (ou talvez apenas mais um 'rafeiro', como diz o Cherno Baldé, que vivia na órbita da tropa...).

Eh!, malta de Bambadinca, alguém de lembra do puto Tchombé ?"...


Pois é, ninguém ainda apareceu a dizer que se lembra do Tchombé!... Sei que que lhe arranjaram a uma farda, camuflada, a condizer... E vivia connosco!... Não há sequer uma foto dele ? Ua história dele ?

Apelo à malta da CCAÇ 12 e da CCS/BCAÇ 2852 (1968/70)...

Anónimo disse...



Amigo e camarada Manuel Joaquim:

Gostei muito do que escreves-te, pela honestidade intelectual que revelas ao dares opiniões não categóricas e ao fazeres tantas interrogações por vezes desnecessárias. Da amizade entre os dois povos, a minha opinião que neste aspecto me parece não diferir da tua, existir terá sido construida nos anos da guerra, com a população,os milicias e os soldados africanos que estiveram próximos de nós.
Não podemos esquecer que os povos pobres, vivendo em sociedades de subsistência, no caso dos gineenses, são sempre muito sensíveis ao sorriso franco e à simpatia que outros povos lhe manifestem. A sociedade portuguesa, sobretudo a do interior era, ao tempo, também uma sociedade de subsistência.
A maior parte dos nossos militares ficavam encantados com essa simpatia, que já fazia parte da cultura deles. Era como se os irmãos brancos e africanos de encontrassem.
Esta é a minha modesta opinião e estero que ajude nalguma coisa a esclarecer um pouco mais tudo o que tu com mais conhecimento escreves-te.
Um grande abraço

Francisco Baptista