segunda-feira, 26 de janeiro de 2015

Guiné 63/74 - P14190: Notas de leitura (674): “Senhor médico, nosso alferes”, por José Pratas, By the Book, (www.bythebook.pt, telefone 213610997), 2014 (1) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 22 de Janeiro de 2015:

Queridos amigos,
Preparam-se para uma grande, grande revelação: primorosamente escrito, sentido até à medula, este médico militar é finalmente portador da mensagem de gratidão que devemos a estes provedores que nos ajudavam a mitigar todo o tipo de sofrimento, incluindo o moral e o psicológico.
Por favor, não deixem de ler esta obra-prima de memórias: é necessário encomendar, trata-se de uma edição de autor, inexplicavelmente este texto extraordinário não deve ter interessado a nenhuma casa editora.
Não vou apostar, mas deve ter sido a grande surpresa em livros da guerra de 2014.
Não percam!

Um abraço do
Mário


O médico militar na guerra colonial: um testemunho surpreendente (1)

Beja Santos

É uma revelação… mas que grande revelação! José Pratas, especialista em Gastrenterologia, Chefe de Serviço da Carreira Hospitalar dos Hospitais Civis de Lisboa, fez a sua comissão na Guiné entre 1971 e 1973, na região do Gabu e no chão Manjaco, e foi igualmente Adjunto do Delegado de Saúde de Nova Lamego (Gabu-Sara) e de Teixeira Pinto (Canchungo). Agora decidiu passar a limpo as suas memórias, entrega-nos um documento estarrecedor, vai direitinho para o topo da literatura da guerra colonial, sem nenhum favor: “Senhor médico, nosso alferes”, por José Pratas, By the Book, (www.bythebook.pt, telefone 213610997), 2014. O que levou este autor a responsabilizar-se pela edição da sua obra quando é indiscutível o seu valor literário, a sua originalidade, a sua pertinência, uma agudeza de espírito que perpassa por todo o seu olhar, e que acaba por ser extensivo às três frentes da guerra colonial? Pode conjeturar-se que a Guiné está fora de moda e que estas memórias não chegam a ser um embaraço para as novas gerações, são um antolho, estão para lá da imaginação das gerações que navegam no digital e que não enfrentam nas ruas os deficientes das Forças Armadas. No entanto, edita-se muito sobre Angola e Moçambique, romances, memórias e investigação histórica, o que leva a pensar que não é o fascínio africano que arrefeceu, mas há uma grande indiferença sobre aquele mundo do arame farpado, das viaturas atascadas, dos gritos lancinantes dos feridos, dos tiroteios, das emboscadas e das explosões das minas anticarro. Em dado passo José Pratas exproba esta amnésia do poder político que recai sobre os antigos combatentes: os povos que esquecem os seus bravos não terão um final mais feliz do que o daqueles que queimam os seus livros; e mais adiante mostra a sua expetativa de “que as novas gerações recuperem da história recente o exemplo de resistência e luta pela sobrevivência, que talvez lhes sirva nas adversidades atuais que o país enfrenta”.

Pescando e convivendo numa pescaria de rio, vendo-se ao fundo o chamado tarrafo

Mas vamos ao que importa: os médicos militares estão de parabéns, têm aqui o seu cronista bem documentado a explicar a todas as gerações o que foi a guerra, por onde passava o poder do médico. Até onde podia chegar este médico militar? José Pratas faz o enquadramento: “Com os escassos recursos disponíveis, os médicos deveriam ser os provedores da saúde física e mental de dezenas ou centenas de militares que junto deles encontrassem o abrigo para muitos dos seus padecimentos. Por isso lhes competia, para além de socorrer os feridos e confirmar os mortos, a obrigação moral e o dever profissional de se baterem pela melhoria razoável dos meios e das condições de sobrevivência que, apesar dos constrangimentos, ajudassem a minimizar as circunstâncias da guerra: vigilância da qualidade e quantidade da alimentação dos militares; higienização de abrigos e dormitórios; carência de material e equipamento sanitário adequados aos condicionalismos do isolamento; pedagogia dos hábitos de saneamento básico junto das populações e introdução de procedimentos clínicos elementares, por exemplo, na área da saúde materno-infantil”.

Como se chegava a médico militar? O autor esclarece: “Concluído o 1º ciclo do COM, aos médicos, estava-lhes destinada a Escola de Serviço de Saúde na Estrela, em Lisboa, onde os esperava, durante cerca de três meses, um obsoleto e imbecil programa, deslocado dos contornos e exigências da guerra que iriam enfrentar. Entre despropositados conceitos de higiene e enfadonhas noções de organização sanitária, decorreram doze semanas de tédio e desperdício de tempo, consumido num insulto à inteligência de cada um”. Numa noite de tempestade de inverno, o nosso alferes médico encontrou um telegrama debaixo da porta: “Embarque 28.12.1971/04 horas, destino CTIG, comparência imediata STOP”. É assim que ele vai aterrar em Pirada, mesmo junto à fronteira do Senegal. É aqui que presta consultas internacionais, diariamente acorriam largas dezenas de doentes, muitos deles oriundos do Casamansa, e dá-nos o ambiente: “No interior da tenda militar, mastigavam-se nuvens de poeria irrespirável que aquela gente levantava ao arrastar-se no seu jeito indolente, derretidos em cascatas de suor. Pirada era um forno. O furriel enfermeiro José Luís Passos, partilhava comigo o tremendo sacrifício que fazíamos para atender, depois da consulta militar, toda esta multidão. Com pouco mais de 20 anos, o Passos era já merecedor de um louvor pela sua destemida disponibilidade, certa vez que foi necessário integrar um pelotão que partiu em socorro do destacamento de Copá, que estava a ser flagelado num ataque com feridos”. E exalta o míster destes enfermeiros: “Tecnicamente mal habilitados, como não podia deixar de ser, compensavam com a sua generosidade e dedicação o que lhes faltava em preparação profissional. Era neles que no interior do mato, em momentos de atribulação, os militares e as populações depositavam confiança”.

Homem Grande da etnia Balanta do sul da Guiné

E fala dessas consultas de rotina, os analgésicos, antidiarreicos e antipalúdicos, das febres, da malária, “e das doenças envergonhadas, homens e mulheres escorrendo as consequências venéreas de relações promíscuas, passando pelas gigantescas hérnias inguino-escrotais e os intransportáveis hidrocelos, ocultados sob coloridos panos enrolados à cintura”. E os acidentes, as quedas dos coqueiros, as lesões por armas de fogo, uma lista inenarrável de situações. E conta histórias, José Pratas é espirituoso, frontal, compassivo, lembra os médicos que morreram em África, caso do João Cantante abatido por um míssil que atingiu a DO em que voava, em 1973. Como recorda o alferes Ferreira doente mas inquebrantável em não arredar do seu destacamento a 35 quilómetros da sede do batalhão, percebe-se a emoção e a admiração no relato: “Quando lá cheguei, nesse manhã cinzenta e aguaceira de Setembro, era preciso transpor um extenso lamaçal onde as botas se inundavam nos charcos povoados de mosquitos e batráquios que abriam o caminho à nossa frente. De um buraco, emergindo do chão, assomou do seu abrigo, emagrecido e frágil, o alferes Ferreira; a expressão sofrida, o brilho lardáceo da pele, o olhar vazio, a barba de vários dias. Apertei-lhe a mão húmida e trémula. Preveniu-me, obstinado: 
- Não quero ser evacuado. Ajuda-me a tratar-me. Tenho muito frio e muita sede!
Apesar da minha insistência para o trazer comigo, o Ferreira resistiu aos meus argumentos e aceitou apenas a minha prescrição: comprimidos para a malária e um litro de soro que eu levava na mala. Permaneci com ele por algum tempo ainda, enquanto éramos observados pela inquietação dos soldados que se interrogavam, intranquilos pela saúde do seu comandante de pelotão. 
- O nosso alferes vai ficar bem, disse-lhes na despedida.
Para trás ficou um punhado de homens, ou miúdos crescidos, atascados na sua solidão, no seu silêncio e na sua sorte”.

Mas que grande livro! Porque esperam os editores?

(Continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 23 de janeiro de 2015 > Guiné 63/74 - P14177: Notas de leitura (673): “O Império da Visão, fotografia no contexto colonial português (1860-1960)”, organização de Filipa Lowndes Vicente, Edições 70, 2014 (Mário Beja Santos)

3 comentários:

antonio graça de abreu disse...


O Mário Beja Santos deverá ter toda a razão, o livro do Alf. médico José Pratas parece ser mais do que excelente.
Creio que ainda esteve comigo em Teixeira Pinto em 1972/73, na entecedência ou sequência dos outros médicos que conheci em Teixeira Pinto, o Mário Bravo, o Bagulho, o Pio de Abreu.
No livro há alguma referência ao CAOP 1 e ao coronel pára-quedista
Rafael Ferreira Durão, meu comandante e o homem grande branco de todo o chão manjaco?
Obrigado, Mário Beja Santos.

Abraço,

António Graça de Abreu

Anónimo disse...

Beja

Olha, já encomendei o livro.

Aproveito para te enviar um abraço.

Jorge Rosales

Costa Abreu disse...

Caro Amigo Mario B. Santos,
Agradecia que me informa-ses para onde posso encomendar o livro, pois estou muito interessado em ler.
O meu e-mail podes encontrar no caderno que o blogo manda com toudos os nossos adressos
Julio Abreu
Grupo de Comandos Centurioes
Ex-Guine Portuguesa