segunda-feira, 12 de janeiro de 2015

Guiné 63/74 - P14142: Notas de leitura (669): “Guiné 1968, o regresso dos heróis”, por Domingos Gonçalves, edição de autor, 2001 (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 5 de Janeiro de 2015:

Queridos amigos,
Desarma-nos, no conjunto dos seus trabalhos, Domingos Gonçalves e a sua frontalidade e o uso irrestrito das suas notas íntimas, redigidas com simplicidade, algo que certamente, durante décadas, não fazia parte das suas preocupações em dar à estampa.
É o caso deste seu terceiro e último livro, dedicado ao regresso, a partir de Binta.
Perpassa o sentimento de solidariedade, é tocante o seu jeito de balanço daqueles tempos ásperos. E os heróis são fundamentalmente aqueles soldados que correram todos os riscos entre Binta e Guidage, é para eles que vai a sua última e tão singela lembrança.

Um abraço do
Mário


Guiné 1968, o regresso dos heróis

Beja Santos

É tentador, quando reescrevemos com base nos nossos apontamentos as nossas memórias de combatentes, reconfigurar situações, polir o estilo, fugir às contumélias decorrentes de apreciações aos órgãos de comando, aos próprios camaradas, enfim, tudo parece guiar-nos para o embelezamento ou retoque das nossas notas, do que veio nas nossas cartas e aerogramas.

Quando se lê os escritos de Domingos Gonçalves, é bem percetível que aquele alferes que andou pelo Leste, por Binta e Guidage, não quer embelezar nem retocar e muito menos tornar as suas notas uma obra literária. Aliás, ele di-lo reiteradamente: “Não é pretensão do autor fazer literatura, apenas o move o intuito de transmitir mais um testemunho sobre o desenrolar da guerra colonial do teatro da Guiné". É exatamente isso que vai acontecer no volume “Guiné 1968, o regresso dos heróis”, por Domingos Gonçalves, edição de autor, 2001.

Neste terceiro e último livro respeitante à sua última comissão(*), Domingos Gonçalves reflete sobre o desencontro ainda existente entre uma parte fundamental da sociedade portuguesa e aqueles que combateram nos teatros africanos, entre 1961 e 1964: “Um dia virá em que o país, finalmente, se reconciliará com o seu passado e com a sua história, com dignidade e sem complexos de culpa. Existe ainda um certo inconsciente coletivo, doentio e com laivos de frustração, onde predomina uma cultura de intolerância, incapaz de ao menos admitir que se entenda a história, muito embora reprovando alguns dos que foram seus autores”.

Estamos em Janeiro de 1968, no primeiro dia, e ele escreve: “A Guiné será muito em breve para mim e para todos estes heróis que me acompanham como que um sonho que me aconteceu ontem” e volta a registar que foi à caça, apanhou algumas rolas. No dia seguinte compareceu a uma cerimónia religiosa de Mandingas. Volta a Guidage e deixa escrito que volta a estar de candeias às avessas com o comandante de companhia: “É um louco. Agora deu-lhe para martirizar o pessoal da secretaria com trabalho noturno. Como de costume, levanta-se perto do meio-dia. À noite dá-lhe para chatear toda a gente. Passa o tempo a berrar e a gritar". Viaja até Farim ao encontro do pelotão que ficará em Guidage no interregno da rendição. A tropa que estava em Guidage veio com ele para Binta, são homens esfarrapados, assiste a um grau de abandalhamento e desmotivação, isto quando o inimigo existe para além do rio. Já se fala em condecorações e louvores, o que verdadeiramente o preocupa é se o governo em Lisboa está devidamente informado sobre o evoluir da guerra. E chega a lancha Alfange, que os leva até Bissau, mas não foi uma viagem linear. A lancha chegou, desembarcaram os periquitos, subiu a CCAÇ 1546, em Farim entrou a CCAÇ 1548 e a CCS, voltaram a Binta, passadas umas escassas centenas de metros foram alvejados com bazucas e canhões, regressaram a Binta, permaneceram toda a noite a bordo da lancha. Não havia memória de ataques a embarcações da marinha tão perto de Binta.

Desembarcaram de novo em Binta e ao meio-dia dá-se um acidente, um cabo pegou numa granada de bazuca, a granada que caiu ao chão explodiu, o cabo sofreu ferimentos mortais e dois camaradas ficaram gravemente feridos e foram evacuados para o Hospital Militar em Bissau. Finalmente todo o pessoal regressou para a Alfange e ao amanhecer atracaram ao cais do Pindjiquiti. Chegara a hora das delícias em Bissau, mas ainda há trabalho, como ele anota no seu caderno: “Acompanhei vinte soldados a exame da quarta classe. Fizeram as provas escritas. A sabedoria deles não era muita, mas eu lá fui fazendo de espírito santo de orelha… Voltei com os soldados a exame. Hoje fizeram as provas orais. Passaram todos. Este diploma é a única coisa importante que levam desta terra”. Quando sabe que o BCAÇ 1887 recebeu um louvor coletivo, comenta: “Seria bem melhor que estes homens quando chegassem às suas terras pudessem contar com estruturas de apoio que os ajudassem a conseguir trabalho, a ter condições de acesso a cuidados de saúde, e a uma boa integração no meio social e familiar. As sequelas desta vida de sofrimento vão fazer-se sentir ainda por muito tempo, ou talvez para sempre. E não serão estes louvores a amenizar as suas consequências”.

Embarcam no Quanza. O seu pensamento vai para os que tombaram em combate, recorda os que adoeceram, os feridos em combate. E muito mais: “E lembrei-me de um povo rude e generoso, junto de quem vivemos, a quem a tropa ajudou a minorar os efeitos da miséria e do atraso em que vive, mas povo que nos ajudou, também, as vezes com enorme sacrifício, a viver os nossos tristes dias”. Nem durante a viagem desfalece a escrita: “Vi o sol nascer, com um brilho maravilhoso a pratear as águas do oceano em toda a dimensão do horizonte”; “o mar por estas paragens anda bastante agitado, sopra continuamente um vento bastante frio que se dirige para sudeste”; “o oceano assemelha-se a um grande lago, grande até não ter fim, onde todos vamos, serena e alegremente navegando, comove-me, até ao mais íntimo de mim mesmo, esta grandeza que não termina, este mundo de luz e mistério perante o qual sinto mais presente a minha pequenez que também não tem fim”.

E agora o desembarque, é uma algazarra indescritível, num ambiente festivo incomparável. E lavra a sua última página:
“Soldados desconhecidos, heróis de um império agonizante, quem será capaz, amanhã, de os recordar?
Aos mortos da CCAÇ n.º 1546, que tombaram pelas terras da Guiné, fica em homenagem ao seu sacrifício esta modesta página de um livro, que eles também ajudaram a escrever.
A partir do quartel da Amadora, a tribo muito unida que fomos espalhou-se rapidamente em todas as direções, num adeus de saudade. Que não seja uma separação para sempre. Que fique apenas a amizade construída na alegria e na dor de tantos longos dias que a tornam profunda e inesquecível.
Que ninguém mais esqueça o camarada que caiu a seu lado!
Que ninguém mais esqueça o amigo de todos os dias, junto de quem sofreu e lutou.
Se não fosse a Guiné e a guerra, enquanto conjunto de homens, nunca mais chegaríamos a existir…”.
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Nota do editor

(*) Vd. postes de:

29 de Dezembro de 2014 > Guiné 63/74 - P14093: Notas de leitura (661): “Guiné 1966, reportagens da época”, edição de autor de Domingos Gonçalves, ex-Alf Mil da CCAÇ 1546/BCAÇ 1887 (Mário Beja Santos)
e
2 de Janeiro de 2015 > Guiné 63/74 - P14109: Notas de leitura (663): “O céu de Guidage”, por Domingos Gonçalves, edição de autor, 2004 (Mário Beja Santos)

Último poste da série de 9 de janeiro de 2015 > Guiné 63/74 - P14132: Notas de leitura (668): “Honório Pereira Barreto”, escrita pelo médico Jaime Walter, e editada em 1947 pelo Centro de Estudos da Guiné Portuguesa (Mário Beja Santos)

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