segunda-feira, 5 de janeiro de 2015

Guiné 63/74 - P14118: Notas de leitura (665): “Memória sobre o estado atual da Senegâmbia portuguesa, causas da sua decadência e meios de a fazer prosperar”, por Honório Pereira Barreto (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 30 de Dezembro de 2014:

Queridos amigos,
É um documento arrojado, digno do patriotismo que sempre orientou Honório Pereira Barreto, a quem a Guiné Portuguesa e a Guiné-Bissau tantíssimo devem, sem cuidarem do seu labor, da sua dedicação, do seu desempenho político inultrapassável.
Desenhou fronteiras, comprou território, fez tratados, enfrentou intromissões britânicas, advertiu Lisboa da cobiça dos franceses.
Esta Memória devia ter sido do nosso conhecimento, quando desembarcámos naquele jardim tropical, tínhamos ficado a saber como toda aquela incúria vinha de longe, era musgo de séculos, eram terras de negros de que se fugia pelo clima, por já não haver escravos e não haver gente ousada disposta a grandes cometimentos agrícolas.
Foi assim, e Honório Pereira Barreto bem advertiu no arranque da sua Memória: “Estas possessões perdem-se, se o Governo e as Cortes lhes não acodem quanto antes”.

Um abraço do
Mário


Memória sobre o estado atual da Senegâmbia: Documento fundamental da história da Guiné, no século XIX

Beja Santos

É lastimável que a Guiné-Bissau continue a descurar um dos seus mais imponentes pais fundadores, Honório Pereira Barreto, que na ideologia inicial do PAIGC era encarado como um negreiro e mero executor às ordens do colonialismo português. Antes de falar do homem, do seu pensamento e ação enquanto hábil político e governante, tome-se nota do que escreveu em 1843 com o título “Memória sobre o estado atual da Senegâmbia portuguesa, causas da sua decadência e meios de a fazer prosperar”. Não conheço documento mais rico, mais luminoso, verbo mais lúcido e coragem mais medular. Deixou-nos uma radiografia que muito nos pode levar a perceber, para além das razões que assistiram aos nacionalistas que pugnaram pela independência da região, como alguém tido por mestiço tinha um coração bem português e desejava o melhor para aquele rincão. Logo na introdução desta Memória queixa-se da falta de um Boletim do Governo e adverte o leitor: “Estas Possessões perdem-se, se o Governo e as Cortes lhes não acodem quanto antes. Diferentes causas concorrem para sua destruição. Eu as mostrarei sem rebuço. Quando vejo o país onde nasci, e pelo qual gostosamente fiz mil sacrifícios quase em completa ruína, não posso deixar de postergar considerações pessoais para falar alto a linguagem da verdade”.

Apresenta a Guiné da época assim: “Os estabelecimentos portugueses de Senegâmbia formam um governo sujeito aos das ilhas de Cabo Verde, e organizado em dois concelhos: o primeiro, de Bissau, composto da praça deste nome, do presídio de Geba, da ilha de Bolama, do ponto de Fá, e dos presídios de Cacheu, Farim, Zeguichor e Bolôr”. Refere-se ao clima doentio, à falta de limpeza das ruas, e lança uma farpa: “Apesar de ser reconhecida em salubridade do clima, o governo não manda para cá nem cirurgião nem botica (…) Em Bissau há uma casa indecente, escura e húmida que se chama hospital (melhor seria chamar-lhe cemitério)”. A presença portuguesa está seriamente comprometida, os gentios cercam os estabelecimentos, insultam, ferem e até matam os portugueses. A seguir, traça um quadro sobre os habitantes, seus usos e costumes. Deixa claro que o comércio é dominado pelos estrangeiros.

E é implacável quanto aos termos da nossa presença: “Desgraçadamente se pode dizer que nestas possessões há um governador e comandantes mas não há governo. O país está inteiramente desorganizado. Todos os empregados, desde o primeiro até ao último, ignoram quais são as suas atribuições e, por consequência quais são os seus deveres: só tratam dos seus negócios, pois são negociantes”. E mais adiante: “Se na administração tudo é arbitrário mais o é no judicial. O governador e comandantes são os juízes de paz, e contenciosos, porque o abuso, ou falta de lei especial, assim o quer. São acusadores, porque não há quem represente o Ministério Público. São parte, porque nunca instauram processo, se não para se vingar ou para seu interesse. A justiça para os ricos é diferente da dos pobres: o rico tem sempre razão”. É pouco lisonjeiro com os governadores: “Os Governadores sendo militares, como são, não estudam ordenações nem reformas judiciárias; portanto tudo afinal se julga militarmente”. E desmonta a ausência de autoridade: “Em todos os estabelecimentos há uma autoridade que sob o título de Juiz do Povo governa o Povo. Estes juízes, excetuando em Zeguinchor, diferenciam-se dos outros por serem mais bêbados. As suas atribuições são impor multas em aguardente…”. O clero também não é poupado: “Os vigários, apesar de serem ministros de uma religião sublime, pouco se importam com a moral e preceitos dela. Vivem com as suas barregãs em casa, e apresentam-nas a todos, como qualquer homem casado pode apresentar a sua mulher. A instrução deles apenas consiste em lerem o missal com alguns barbarismos”. E chega o momento de falar da tropa: “Atualmente a tropa é um bando de homens indisciplinados, turbulentos, esfarrapados, nus e traficantes: não obedecem ao seu chefe e já têm chegado a insultar os seus oficiais. Valentes em se baterem com cacetes, não sabem manejar uma arma. Das ilhas de Cabo Verde só mandam para estas guarnições os soldados mais incorrigíveis que lá há”.

E começa a especificar as possessões guineenses, refere em primeiro lugar o concelho de Bissau, composto da praça, do presídio de Geba, do ponto de Fá, da ilha de Bolama e do Ilhéu do Rei: “Bissau é uma praça construída segundo o sistema de Vauban, mas não foi acabada. Não tem obras algumas exteriores, à exceção dos fossos já quase entulhados e aonde se planta algodão, milho e índigo. O quartel da tropa está quase a cair e por isso que a maior parte dos soldados moram em palhoças, chove no quartel dos oficiais como chove na rua. O governador mora no quartel dos oficiais em quartos pequenos e ridículos”. Ficamos a saber quem são as etnias ali residentes: Papéis, Brames, Balantas, Bijagós, Nalus e Mandingas. Os ingleses tinham feito um tratado com o régulo de Bandim, tinham-se estabelecido neste território. Os negócios do gentio com os estrangeiros era uma realidade, cada ano aportavam a Bissau 80 navios estrangeiros, em média.

Refere-se a Geba como um presídio sem fortificação, tem seis praças e é de perguntar qual a sua utilidade. O comércio tem bastante peso: cera, couros, marfim e algum ouro. Apresenta Fá como um pequeno e ridículo ponto, não longe de Geba: “É só mantido para entreter boa amizade com o gentio, que quer que ali sempre se conserve uma casa, sob pena, em caso contrário, de cortar a comunicação do rio”.

Quanto a Bolama, foi cedida a Portugal em 1828 pelo rei de Canhabaque, Damião. Diz que os ingleses disputam e contestam o nosso direito. Referindo-se ao Ilhéu do Rei, fronteiro à praça de Bissau, diz que foi comprado por ele e oferecido ao governo em 1838.

Passando para o concelho de Cacheu, releva o sossego e a segurança ali existentes: o gentio é mais comedido, os soldados mais subordinados e o povo mais obediente. O concelho é constituído pelo presídio de Cacheu, Farim, Zeguinchor e Bolôr. “Em todos eles a artilharia está falhada e carcomida”. Refere que Cacheu se situa na margem esquerda do rio S. Domingos, que não é braço do rio Gâmbia, como muitos julgam. “Hoje está muito decadente e quase de nenhuma importância. É defendido por uma paliçada e quatro pequenos redutos arruinados: quem os fez não tinha ideia alguma de fortificação”. Esta Memória, parece-me evidente, é um documento de uma importância extraordinária. Feita a caraterização da Senegâmbia, refere as causas da sua decadência: “A principal causa do atual estado destas Possessões é o pouco caso que o Governo Supremo e o geral da província sempre fizeram delas”. Atribui graves responsabilidades aos partidos políticos, pelas nomeações de incompetentes, pelo estado de impunidade e pela falta de ordem. E na terceira parte procede a um esboço quanto aos meios de fazer prosperar a Senegâmbia, ele sente-se ferido nos seus brios de patriota: “Penaliza-me observar o estado atual, a sua desgraça e miséria. Não devemos considerar estas possessões pelo que são; mas pelo que podem vir a ser”. E faz propostas concretas: instituir na corte um tribunal com gente que tenha conhecimento do ultramar, competir-lhe-ia elaborar e prepara as leis há tanto prometidas; dar-se ao Governador amplos poderes; deve-se promover em grande escala a agricultura, introduzindo-se novas ferramentas; os empregados devem ser pagos em metal e ter bons ordenados. E termina dizendo que já é tempo de acabar aqui com as rodas de pau, prisões arbitrárias e violabilidade da casa do cidadão.

Eis, em suma, a Memória de Honório Pereira Barreto, dada à estampa em 1843, em Lisboa, documento de um ex-governador agraciado com as mais altas condecorações, hoje praticamente desconhecido em Portugal e a quem a Guiné-Bissau deve muitíssimo, apesar dos preconceitos que pesam sobre a conduta de um homem que esteve sempre para além do seu tempo.
____________

Nota do editor

Vd. último poste da série de 2 de janeiro de 2015 > Guiné 63/74 - P14110: Notas de leitura (664): Do livro "Família Coelho", edição de autor, 2014, de José Eduardo Reis Oliveira (JERO), "O Avô Porraditas"

2 comentários:

Hélder Valério disse...

Caros camaradas

Li, ao correr dos olhos, esta apresentação e impressionou-me o quanto pouco se evoluiu desde os tempos 'retratados' pelo Honório.

A caracterização da sociedade e as razões do seu (não) progresso, ainda para mais lançadas assim como um grito, um aviso sério, deviam ter levado a uma maior e melhor acção.

Talvez as sucessivas convulsões e a época histórica possam explicar essa inércia em tomar medidas apropriadas.

Concordo que podia ter sido útil o conhecimento desta situação, antes de para lá termos ido, mas também sinto que poderia não ter qualquer efeito. De que adiantava alguns de nós (sim, alguns, porque o esforço do conhecimento é sempre de muito poucos) compreendermos a situação? Na prática, nada mudaria.

Hélder S.

Antº Rosinha disse...

Helder Valério, Honório P. Barreto foi a imagem daquela "acusação" depreciativa que os ingleses e os franceses faziam da colonização e expansão portuguesa.

Que era à base do uso de mestiços que nós nos impunhamos aos indígenas.

E se a estátua de Honório se encontra arrumada no forte de Cacheu, a de Amílcar também não ficou dentro de Bissau, foi para Bissalanca.

A falta de outros importantes nacionalistas guineenses, estes gostam pouco de Honório, e não morrem de amores por Amílcar.

A principal razão é por serem mestiços.

A praça onde se encontrava a estátua de Honório Barreto hoje é a praça Ché Guevara.

Penso que há muitos guineenses e moçambicanos (e até alguns angolanos) que não gostam muito do pais que têm porque fizeram pouco para salvar esses países da absorção pelos vizinhos que até tocam piano e falam francês.

É que o grande esforço da obrevivência desses países foi do tuga e da tal mestiçagem onde se inclui Honório Barreto.

Já os holandeses foram corridos de Luanda e do Nordeste do Brasil com o esforço tuga e da mestiçagem.

No brasil é despeito das diversas colónias, holandesas, alemãs, italianas, etc. ao criarem aquelas anedotas depreciativas do portuga. ao ponto de criarem aquele dito que o portuga gosta de uma «nega», em tom depreciativo, tanto da «nega como do portuga».

Para sobressair a importância dessas mesmas colónias na construção do maior país do mundo de raiz colonial.

Ao ponto de a própria maioria mestiça brasileira ter ficado enrolada num complexo estúpido de inferioridade que não conseguem desvencilhar-se dele.

Antigamente o presidente brasileiro quando era eleito havia sempre uma referência a Portugal e uma das primeiras visitas era cá ao velho «paisinho»

A Presidenta Roussef é de ascendência romena já tem um comportamento diferente de um Kubisck onde constava Oliveira.

Heleder e BS, bom ano, e continuem que eu não falho uma, vejam só que ir de Honório a Roussef não é brincadeira.