segunda-feira, 15 de dezembro de 2014

Guiné 63/74 - P14033: Memórias da CCAÇ 1546 (Domingos Gonçalves) (7) - Reportagens da Época (1967): Guidaje - Assalto a Cumbamory - Operação Chibata

1. Mensagem do nosso camarada Domingos Gonçalves, (ex-Alf Mil da CCAÇ 1546/BCAÇ 1887, Nova Lamego, Fá Mandinga e Binta, 1966/68) com data de 9 de Dezembro de 2014:

Prezado Dr. Luís Graça:
Tomo a liberdade de remeter mais um pequeno contributo, que poderá publicar, se o entender conveniente.

Com um abraço amigo,
Domingos Gonçalves




MEMÓRIAS DA CCAÇ 1546 (1967)   
REPORTAGENS DA ÉPOCA

7 - GUIDAJE 1967

Mês de Dezembro
Dia 10

Assalto a Cumbamory - Operação Chibata

Picou-se a estrada até ao Cufeu para facilitar a passagem da coluna de abastecimento.

À tarde, pelas vinte horas, chegou uma coluna com cerca de 140 homens. Afinal, não vieram por causa do reabastecimento, mas com a finalidade de efectuar uma operação. O reabastecimento foi só uma consequência...
Comeram no destacamento.

Pouco antes da meia-noite, reforçada por uma secção do destacamento e pelos caçadores nativos, a força que chegou de Binta, comandada pelo capitão da Companhia 1546, partiu rumo à casa de mato de Cumbamory, atravessando a fronteira e fazendo a aproximação por território do Senegal. Aliás, há entre nós algumas dúvidas quanto à situação real dessa base terrorista, que estará situada mesmo sobre a linha de fronteira, ou mesmo em território senegalês.

É a operação “Chibata” que está a iniciar-se. Uma operação que envolve riscos consideráveis para as nossas tropas. Qualquer ataque a uma base dos turras envolve sempre riscos. O ataque a Cumbamory, dado tratar-se de uma base bastante grande, através da qual passa grande parte do pessoal e do equipamento que o PAIGC infiltra no território, é arriscado e perigoso. Amanhã saberemos mais alguma coisa sobre tudo isto. Mas não me parece que os altos comandos tenham medido e calculado todos os riscos que esta operação envolve. A única coisa que pode ser favorável aos nossos homens é o efeito surpresa, se for possível atingir o objectivo e atacá-lo sem que os gajos se apercebam da aproximação dos nossos soldados.

A força que partiu para a operação, cerca de 170 homens, é constituída por dois grupos de combate da minha Companhia, pelos Roncos de Farim, por um grupo de combate pertencente à Companhia de Intervenção estacionada em Farim, por uma Secção do Destacamento, e pelos Caçadores Nativos de Guidage. Aparentemente 170 homens poderá parecer uma força considerável, mas de facto não é. Todos os homens estão fisicamente debilitados, vão chegar à base do inimigo muito cansados, e apenas vão poder contar com eles próprios. Ao alvorecer, quando atacarem a base, não podem contar com apoio aéreo, por ser muito cedo e porque os aviões, mesmo sobre a linha de fronteira, não costumam actuar.
Ou se conseguem desenrascar sozinhos, com os próprios e escassos meios, ou então estará tudo perdido.


Dia 11

Levantei-me muito cedo e fui para o Posto de Transmissões à espera dos resultados da operação, mas aos operadores de rádio não tinha chegado, ainda, nenhuma notícia.

Pelas sete horas e meia as forças de Bigene, que também actuavam na zona, na área de Jambacunda, mas que não chegaram a ter contacto com os gajos, ligaram para Guidage e disseram que, pelas seis horas da manhã, e durante cerca de meia hora, escutaram muitos rebentamentos. Em Guidage, dada a distância, não se tinha escutado nada. Fiquei por isso a saber que tinha havido contacto com o inimigo, e que esse contacto apenas poderia ter acontecido com a Companhia 1546.

Da força que partira de Guidage, e que tinha por missão actuar sobre o objectivo, não havia notícias. Sabíamos, no entanto, que a fogachada que os de Bigene tinham escutado, apenas poderia ter acontecido durante o ataque das nossas tropas a Cumbamory, ou em resposta a alguma emboscada que os tipos lhes tivessem preparado.

Pelas oito horas chegou a avioneta, que fez em Guidage o lançamento do correio e se dirigiu para o local das operações.

Pelas oito horas e meia, as forças que partiram de Guidage, e que tinham atacado Cumbamory, entraram em contacto com a avioneta.
Disseram que estavam já a regressar, mas que se deslocavam com muita dificuldade, ainda em território do Senegal, e que transportavam bastantes feridos e muito material apreendido aos turras durante o assalto a Cumbamory.

A avioneta deslocou-se a Guidage e mandou que enviássemos viaturas à fronteira para recolher, logo que possível, homens e material, o que rapidamente se fez.

Fui com as viaturas até onde me foi possível e, depois, atravessei a fronteira com um pequeno grupo de soldados, e orientado pela avioneta progredi em território senegalês, ao encontro da nossa força, para a auxiliar na retirada.

Quando se chegou a Guidage já se encontravam lá estacionados dois helicópteros prontos a transportar os feridos para o hospital militar.
Logo após a chegada ao destacamento de Guidage os feridos foram devidamente tratados por duas enfermeiras pertencentes à tripulação dos helicópteros e seguiram para Bissau. Nenhum dos feridos se encontra em estado muito grave.

Durante o voo para Bissau, só a presença daquelas duas raparigas bonitas, deve ter sido suficiente para restituir aos feridos a saúde e a integridade psíquica, tão afectadas pelos ferimentos provocados pelos tiros e pelas granadas que tiveram que enfrentar.

A operação teve certo êxito mas não correu bem.

As nossas forças aprisionaram 5 turras, terão causado ao inimigo bastantes mortos e feridos. No relatório da operação mencionaram-se 34 mortos confirmados, para além de um número indeterminado de feridos. De qualquer modo talvez estejamos perante um número demasiado elavado. As nossas forças capturaram, para além dos prisioneiros, o seguinte material:

2 morteiros de 82mm,
12 granadas para esses morteiros,
1 pistola metralhadora,
1 espingarda semi-automática,
1 aparelho de pontaria de morteiro 82mm,
1 estojo de cirurgia,
3 cantis,
Material diverso para montagem de tendas,
2 bolsas de enfermagem,
1 granada de mão,
2 auscultadores de telefone,
2 pastas com documentos,
Diverso material de instrução,
Livros cubanos,
Cadernos e revistas,
Medicamentos.

Mas, para que tudo isso fosse possível, as nossas forças sofreram quatro mortos, ( 2 europeus e 2 africanos ) cujos cadáveres não puderam ser recuperados, um desaparecido e bastantes feridos com alguma gravidade. Foi um preço muito elevado, demasiado grande, mesmo tendo em vista os resultados conseguidos. A vida de um soldado, ou o sofrimento e as mutilações, têm um preço que não pode ser comparado com o valor de umas armas capturadas, por mais sofisticadas que elas sejam. Mas há por aqui quem pense o contrário... Quem olhe quase com adoração para as armas capturadas e se esqueça que foram pagas com muito sangue e com muita dor... Isto chama-se trocar o que não presta, o que não vale nada, por aquilo que não tem preço...

Estupidez humana! A loucura de tudo isto é cada vez mais evidente e já nem se lhe vislumbram os limites.

As nossas forças deixaram ainda no local as armas e outro equipamento militar pertencente aos soldados mortos.

Esta operação não falhou porque a tropa é decidida, é dura e sabe combater. Muitos destes homens, brancos e negros, têm um grande desprezo pela vida e são bravos a valer.

Se assim não fosse este assalto a Cumbamory poderia ter sido um desastre. Planeou-se a operação pensando encontrar no objectivo um inimigo composto por 20 ou 30 homens armados (ou então quem faz os planos engana deliberadamente quem os deve concretizar) talvez com um morteiro e algumas armas ligeiras, e Cumbamory é uma verdadeira cidadela militar do PAIGC.

Os nossos 170 homens encontraram pela frente perto de 300 (?) elementos, dispondo de armas ligeiras, várias bazookas, morteiros de 60mm, lança rokets, morteiros 82mm, e outro armamento diverso.

Os prisioneiros disseram que em Cumbamory havia também 4 canhões que não chegaram a fazer fogo.

Em face da força que encontraram pela frente os nossos homens portaram-se bem e foram corajosos para progredir até ao local onde se encontravam os morteiros, dos quais o inimigo ainda se terá servido.

Segundo os prisioneiros, encontrava-se em Cumbamory, no momento do assalto, Luís Cabral, que terá fugido imediatamente numa viatura para o interior do território do Senegal. Segundo o mesmo relato, ontem terá havido uma festa no acampamento, encontrando-se no mesmo um grupo de Comandos do PAIGC, deslocado da área de S. Domingos. Durante a noite de hoje para amanhã viriam atacar Guidage.

Se o relato for verdadeiro esta operação teve pelo menos o mérito de evitar um ataque a este meu reino. De qualquer modo, o melhor é a gente continuar à espera deles. Segundo dizem os prisioneiros, em Cumbamory o pessoal passa fome. Apenas os soldados comem alguma carne e batatas, e ganham algum dinheiro. Para os carregadores há apenas arroz que se esgota muitas vezes. O acampamento dispõe de uma escola onde se ensina a língua portuguesa, de uma enfermaria razoável, verificando-se de quando em quando a visita de um médico, que deve ser cubano. Os cubanos do acampamento deslocam-se muitas vezes para fora do mesmo, a fim de se encontrarem com Amilcar Cabral, que não lhes paga na presença dos africanos. Em Farim, ao que me parece, não se presta grande atenção às informações recolhidas em Guidage, o mesmo acontecendo em Bissau. Desde há muito que mandamos dizer que em Cumbamory existe muito pessoal armado e muitas armas pesadas, mas não acreditaram em nós. O resultado poderia ser um desastre para as nossas forças. As forças que participaram na operação seguiram para Binta pelas dezasseis horas, mas só lá conseguiram chegar perto das vinte e uma. Iam todos muito cansados, quer física, quer psiquicamente. Depois de uma viagem de cinco horas até Binta todos os soldados devem ter lá chegado cansadíssimos, autênticos farrapos humanos.

Afigura-se-me que este foi o último trabalho sério que os homens da Companhia de Caçadores n.º 1546 foram incumbidos de realizar. Foi uma despedida terrível, que teve tanto de doloroso como de heróico. Foi, de longe, a missão mais arriscada e perigosa que nos foi confiada ao longo de todos estes largos meses de Guiné, que já temos. Mas foi uma missão que se levou até ao fim com bastante êxito.
E agora, já é mais que tempo para nos deixarem descansar em definitivo.

Já todos temos mais do que direito ao repouso dos guerreiros... Que ele nos seja finalmente concedido.
____________

Nota do editor

Último poste da série de 2 de setembro de 2014 > Guiné 63/74 - P13560: Memórias da CCAÇ 1546 (1967) - Reportagens da Época (Domingos Gonçalves) (6): Guidaje 1967

6 comentários:

Unknown disse...

Camarada Domingos Gonçalves. A viagem do paquete Uíge que vos desestivou no Pidjiquiti, retornou com o nosso batalhão (705) e destivou-nos no Cais da Rocha.
No livro "Crónica da Libertação" Luís Cabral diz que ele e o Chico Mendes, a autoridade máxima na zona Norte, haviam chegado na noite da véspera a Cumban-Hory para a cerimónia de despedida de cooperantes cubanos e do final da formação do Corpo de Comando - uma força de elite de intervenção, réplica aos Comandos de Bissau. Aquela base estaria para o PAIGC como Bra estaria para o Comando-chefe. Diz também que o nosso grupo de assalto fez a aproximação pelo lado da enfermaria e os dois teriam sido apanhados de surpresa, se a sentinela não tivesse chegado a avisar o capitão cubano Pina, o instrutor de artilharia e chefe dos cooperantes cubanos, que lançou o alarme, o que não impediu dele e Chico terem de atravessar a bolanha em fuga, tocados à morteirada. Conta que deixamos quatro corpos, despedaçados pelas suas bazucadas T 21, perto da tenda onde os dois dormiam e sobre o depósito subterrâneo de material de guerra, que não descobrimos. E admite terem neutralizado as nossas transmissões, porque a aviação não apareceu. Tu dizes que o primeiro sinal rádio dos operacionais aconteceu pelas 08H30 e com o DO do correio.
O nosso grande Marcelino da Mata disse, reprodução do blogue "Rangers&coisasdomar", que o assalto foi feito por ele e o seu grupo "Roncos de Farim" e que os quatro mortos, dois europeus e dois africanos pertenciam-lhe. E disse que que a CCaç 1546 havia sido apanhada à mão numa operação junto à fronteira,em Agosto, e que foi ele e o seu grupo de Comandos que a foi libertar do cativeiro no Senegal, trazendo-os de regresso... em cuecas.
Como para nós a guerra nunca acaba,podes esclarecer?
Um Abraço
Manuel Luís Lomba

Rogério Silva disse...

Operação CHIBATA.

Caros camaradas.
Por acaso, mas apenas por acaso quem comandou as forças da CART 1745, sediada em Bigene, na operação CHIBATA, fui eu.
Como muito bem diz o camarada Domingos Gonçalves, as forças da CART 1745 não chegaram a entrar em combate, e as transmissões eram péssimas.
Das raras vezes que conseguimos rádio foi com o quartel de BIGENE a anunciar o enorme tiroteio e rebentamento que ouvíamos a norte.
A nossa missão era impedir que elementos do PAIGC de Kumbamory viessem para sul ou que elementos das bases de Sambuiá fossem acudir os seus camaradas de Kumbamory.
Saímos de Bigene por volta da meia noite e só saímos da zona cerca do meio dia pois deixamos de ter comunicação rádio com Bigene com o batalhão e com as forças em combate.
Por volta do meio dia um DO pilotado pelo Honório fez várias passagens sobre nós.
Até que, penso eu, já desesperado pela impossibilidade de contacto rádio, fez uma passagem baixa sobre a companhia e com a mão indicou que devíamos seguir para Bigene.
Passados muitos anos, já neste século, tive a honra e oportunidade de num almoço na Casa de Angola, ficar sentado ao lado do ex presidente Luís Cabral.
Ao fim de algum tempo essa operação veio à baila.
Segundo Luís Cabral me disse a base de Cumbamory (Mampatás) era constituída por 2 acampamentos distantes cerca de 300 a 400 metros entre eles, em território da Guiné, mas colados à fronteira.
Que de facto, quando se deu o ataque, se encontrava em Kumbamory com 4 instrutores cubanos.
Segundo ele as forças portuguesas conseguiram entrar numa das bases (ele e os cubanos estavam na outra).
Que os elementos do PAIGC desta segunda base , reagiram prontamente indo em auxílio dos camaradas da 1ª base obrigando as tropas portuguesas a retirar deixando 4 mortos no terreno e tendo sofrido bastantes feridos.
Que na altura retirou com os instrutores cubanos tendo-os levado para o Senegal e depois seguido para Ziguinchor (Norte de S. Domingos) em viatura do PAIGC.

Rogério Silva disse...

Quanto ao Marcelino da Mata afirmar que os dois europeus pertenciam aos "Roncos de Farim" é menos verdade pois os "Roncos de Farim" eram um grupo de milícia formado por população local.

Rogério Silva disse...

Comentário do Rui LaranJeira (Alferes miliciano da CART 1745) qd lhe enviei o "post"

Rui Laranjeira
11:35 (2 hours ago)
to me

Dessa operação tenho presente a terra a
estremecer a medida que mais nos aproximávamos. Lembrava os filmes da
da segunda guerra.
Cumprimentos,
Rui Laranjeira

Rogério Silva disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
horizontes disse...

TENDO CONHECIMENTO, DA OPERAÇÃO CHIBATA EM CUMBAMORY.
CREIO QUE A OPERAÇÃO SE REALIZOU EM 1967.
EM 1967 CHEGUEI HÁ GUINÉ, DONDE SAI EM DEZEMBRO DE 1971.
FIZ PARTE DE (2) DESTACAMENTOS DE FUZILEIROS ESPECIAIS.
EM ABRIL DE 1970 - FOI FEITO PELO MEU (DFETACAMENTO DE FUZILEIROS ESPECIAIS 12), A MAIOR APREENSÃO DE MATERIAL.
ESTA UNIDADE FEZ (3) OPERAÇÕES SEGUIDAS EM CUMBAMORY, SEM MORTOS.
SAMBUIÁ ERA UMA ZONA POR EXCELÊNCIA, DOS FUZILEIROS ESPECIAIS.
BASE DE CUMBAMORY, FICA LOCALIZADA, NA FRONTEIRA CO O SENEGAL - MARCOS 127/128.
ESSA BASE, SÓ NÃO FOI DESARTICULADA, E TOTALMENTE DESTRUIDA, PORQUE NÃO HOUVE VONTADE.
FAZ - ME DOER O CORAÇÃO QUANDO OS COMANDOS, DEIXAM LÁ OS CORPOS. - NÃO FORAM POUCOS.
MARINHEIRO FUZILEIRO ESPECIAL - 1965/1972 - COM OPERAÇÕES EM TODA A GUINÉ, DE NORTE A SUL. UM DOS PIONEIROS DA CONSTRUÇÃO DA // BASE DE GANTURÉ //. SÃO MEMÓRIAS. - VEIGA