sexta-feira, 14 de novembro de 2014

Guiné 63/74 - P13889: Notas de leitura (650): 1 de Novembro de 2014, na Feira da Ladra (2) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 3 de Novembro de 2014:

Queridos amigos,
Já houve referência à edição de 1944 desta adaptação do “Romance da Conquista da Guiné”, não foi muito feliz, estou crente que não mobilizou muitos jovens para ler mais Zurara, o percurso das viagens está muito sincopado, devia ter sido precedido de uma explicação das diferentes viagens, comportar um mapa das mesmas, etc.
Esta edição é mais cuidada que a primeira, com o benefício dos bons desenhos de Júlio Gil. E feita esta aquisição cheguei imprevistamente a outra, um livro de António Carreira que me pôs a refletir como foi possível vender como fidedigna a doutrina da unidade entre a Guiné e Cabo Verde.
Depois falamos.

Um abraço do
Mário


1 de Novembro de 2014, na Feira da Ladra (2)

Beja Santos

Ainda não refeito do achado da fotografia em que o padre Afonso parte mantenha com o Cardeal Patriarca e da curiosa revista A Terra, número associado à 1.ª Exposição Colonial Portuguesa, que se realizou no Porto em 1934, encontrei noutra banca o Romance da Conquista da Guiné, adaptação, para rapazes da “Crónica do Descobrimento e Conquista da Guiné” por Gomes Eanes da Zurara, trabalho de Frederico Alves, ilustrações de Júlio Gil. Aqui há uns meses atrás encontrei num alfarrabista na Avenida do Uruguai, em Lisboa, a primeira edição, de 1944, editada pela Agência-Geral do Ultramar, agora esta nova edição, de 1965, foi publicada pelas Edições Panorama, do SNI. O livro terá pertencido à biblioteca de Guedes de Amorim, conforme dedicatória que aqui se mostra.



Não há muito a dizer sobre um trabalho a que se fez larga referência. É uma adaptação para um público jovem de um dos clássicos da historiografia portuguesa e um dos pilares da história luso-guineense. Limito-me a um conjunto de referências até chegarmos à Guiné, ou seja a Grande Senegâmbia, para o saber do tempo era tudo a Guiné, ou a Etiópia Menor, tais ainda as imprecisões cartográficas, e mais tarde a Senegâmbia, convém recordar que Honório Pereira Barreto, um dos cabouqueiros da Guiné atual, envia às autoridades de Lisboa uma memória da Senegâmbia.

É muito bonito o retrato que Zurara dá do Infante Dom Henrique, convém não esquecer que a crónica é o seu panegírico:  
“A sua estatura era de bom tamanho, a sua carnadura grossa, os membros largos e fortes e a cabeleira levantada. A pele foi branca, primeiro; porém o sol do Algarve acabou por queimá-la. A sua presença, à primeira vista, amedrontava os tímidos. Rara lucidez de espírito e teimosia incomparável”.

Mais adiante, Zurara vai enumerado as razões pelas quais o Infante se afoitou à empreitada dos Descobrimentos: querer devassar o mistério oceânico; podia bem ser que, entre terras e povos desconhecidos, os mareantes achassem bons portos e excelentes mercadorias ignoradas dos navegadores e comerciantes do tempo; impunha-se conhecer até onde chegaria a força dos infiéis; pretendia saber se em África existiriam países cristãos dispostos a arriscar a vida pela Fé; era seu desejo chamar a Jesus todas as almas que se quisessem salvar; e cumprir o seu destino realizando altas conquistas, tudo cumprindo a prazer do seu rei.

E assim se aparelhavam as caravelas e foram contornando a costa africana, passaram pelas Canárias. Estes empreendimentos conheceram uma pausa quando houve discórdias entre os que tomaram partido pelo Infante Dom Pedro e os que se puseram ao lado de D. Afonso V. Sossegados os negócios do reino, foram retomadas as viagens, Zurara descreve como Nuno Tristão armou Antão Gonçalves cavaleiro num local que se ficou a chamar por Porto do Cavaleiro. Em 1443, Nuno Tristão chegou ao Cabo Branco, descobriu a Ilha das Garças, estava-se no bom caminho. Em dado passo, regressando as caravelas a Lagos, expuseram os prisioneiros trazidos, é um dos textos mais espantosos de Zurara e da historiografia portuguesa:
“Os outros juntaram-se no campo, coisa maravilhosa de ver, pois eram uns de alvura sem mácula e formosos, outros de cor parda, e outros ainda, negros como a noite, feios e mal-ajeitados de corpo. Meu Deus! E qual coração, por mais empedernido, se não comover diante daquele triste rebanho?
Uns, de rostos baixos, lavavam as faces com pranto, outros trocavam olhares angustiados; gemiam alguns, dolorosamente, fitando as alturas do Céu, gritando de rijo, como se rogassem ajuda ao Pai da Natureza; outros rasgavam com as unhas a pele da cara e arremessavam-se ao chão; outros, ainda, soltavam do peito um coro de lamentações à maneira dos cânticos da sua terra distante.
E como se não bastasse a condição de escravos, aproximaram-se, então, os da partilha que, para ajustarem os quinhões, muitas vezes tiveram de separar os filhos dos pais, e as mulheres dos maridos, e os irmãos entre si. O coração não mandava, mandava a sorte”.

Dinis Dias demandou a terra daqueles negros conhecidos por guinéus, estas terras na linha da costa ocidental de África eram conhecidas por Guiné. Sucedem-se as façanhas, as viagens tormentosas, em dada viagem julgou-se ter chegado ao rio Nilo e Zurara escreve:
“O Nilo é o rio das maravilhas, o rio mais nobre do mundo, e a sua grandeza foi cantada pelos sábios da Antiguidade.
Dizem alguns que ele nasce ao pé do Mar Vermelho e dali corre, para o ocidente, através de muitos acidentes. Nesta ilha, do senhorio da Etiópia, há uma cidade outrora chamada Sabá, ao tempo que o faraó do Egito lá enviou Moisés”.

Há pelejas com os mouros, morrem companheiros, morre Nuno Tristão na sua glória de bem servir. Prossegue o panegírico de Zurara:
“Aventuraram-se longe, muito longe, as caravelas do Senhor Infante. E o eco das navegações que fizeram soou até nas cortes da Noruega, Suécia e Dinamarca, onde nobres varões se deixaram tentar pelas vozes correntes e, descendo a Europa, vieram à beira do Tejo para haver em prova de que a verdade era tão grande como a fama”.

A crónica avança para o seu termo. Em 1448, D. Afonso V é rei na plenitude, aqui se põe fim à crónica, com seguintes dizeres: “e por isso que vós, mui alto e muito excelente Príncipe Dom Henrique, segundo creio o mais virtuoso entre os mortais, mandastes a mim, Gomes Eanes de Zurara, vosso criado, e por vossa mercê cavaleiro e comendador na Ordem de Cristo, que pusesse esses feitos em história, com grande razão me apraz terminar em agradecimento a vós”.



As pechinchas ainda não acabaram; ainda não refeito deste Zurara adaptado a jovens com ilustrações de Júlio Gil e dou comigo a manusear uma preciosidade de António Carreira, um conjunto de enseios editados em 1984, pela Ulmeiro, ali se fala da geografia e da demografia de Cabo Verde, as várias secas e fomes do século XX, como se organiza a sociedade cabo-verdiana, as migrações internas, a emigração e a imigração, é a primeira vez que leio algo de substancial sobre estas fomes e secas e sua interpretação: o deserto do Sara tem as suas culpas e aqueles ventos que afugentam as chuvas, a derruba e a queima de tudo quanto é mato e arvoredo; as pragas de gafanhotos que devoram e danificam culturas e pastos, a acentuada diminuição das águas subterrâneas; o crescimento explosivo da população que tudo agravou e face à qual a emigração foi útil mas insuficiente. Uma leitura atrativa, esclarecedora, Carreira, nascido na Ilha do Fogo, em 1905, e que trabalhou como administrador na Guiné, foi um dos seus historiadores mais prolíficos e probos. Daí valer a pena dedicar-lhe espaço em próximo apontamento.

(Continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 10 de Novembro de 2014 > Guiné 63/74 - P13870: Notas de leitura (649): 1 de Novembro de 2014, na Feira da Ladra (1) (Mário Beja Santos)

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