segunda-feira, 8 de setembro de 2014

Guiné 63/74 - P13586: Manuscrito(s) (Luís Graça (42): Extremadura(s)...



Lourinhã > Praia do Caniçal > Finais de agosto de 2014 (1)


Lourinhã > Praia do Caniçal > Finais de agosto de 2014 (2)


Lourinhã > Praia de Paimogo > Finais de agosto de 2014


Lourinhã > Praia de Paimogo > Forte de Paimogo (séc. XVII) >Finais de agosto de 2014


Lourinhã > Vimeiro > Monumento comemorativo e centro de interpretação da Batalha do Vimeiro > Azulejo alusivo ao desembarque das tropas luso-britânicas, na Praia de Paimogo, em 19 de Junho de 1808, sob o comando do brigadeiro-general Robert Anstruther... A batalha do Vimeiro foi em 21 de Agosto de 1808. Azulejo desenhado e pintado à mão por Salvador (2000).



Torres Vedras > Maceira > Estrada (particular) das Termas do Vimeiro (Fonte dos Frades) até à Praia de Porto Novo (1)

Torres Vedras > Maceira > Estrada (particular) das Termas do Vimeiro (Fonte dos Frades) até à Praia de Porto Novo (2) >  Margem direita do Rio Alcabrichel



Torres Vedras > Maceira > Estrada (particular) das Termas do Vimeiro (Fonte dos Frades) até à Praia de Porto Novo (3) > Rio Alcabrichel (que nasce na Serra de Montejunto e desagua na Praia de Porto Novo)

Foto: © Luís Graça (2014). Todos os direitos reservados


Extremadura(s)


1. 
Casas caiadas, paradas,
O silêncio escorrendo pelas paredes;
Nas águas furtadas
Já não dormem as criadas
E na praça, ah!, da liberdade,
Já não se ouve o frufru das sedas
Roídas pelo bicho da traça.

2. 
“Esquecei o que vedes”,
Avisa o guia da cidade,
Poeta, cego, negro, escravo,
Enquanto os voyeuristas
Espreitam por ruelas e veredas.


3.
Há bonecas de porcelana,
Quiçá das Chinas,
Às janelas
E os dedos delas
Confundem-se com as rendas de bilros,
As teias de aranha,
As cortinas,
Os brocados de cetim,
Os deveres e os lavores femininos,
As máscaras de Arlequim,
As fantasias de antigos carnavais.

4. 
Dedos que teceram intrigas e redes,
Redes de pescadores
Há muito perdidos nas colinas
Do alto mar.
Ou dedos que fiaram outras redes
Clientelares, sociais, clandestinas,
Sob os portais,
Os corredores e as esquinas
Dos paços,
Dos passais,
Dos passos perdidos,
Das antecâmeras reais.

5. 
O silêncio não pára
Ou só vai parar
A um metro do chão,
Na barra azul
Dos moinhos de vento
Mais a sul,
Entre pomares e vinhedos.
À entrada.
Fora das muralhas,
O cemitério,
Cofre forte de segredos.
Aqui acabam-se todos os medos.

6. 
Valha-me a brisa do mar
Que me faz algum refrigério
Na canícula do fim de estação
Da minha civilização.

7. 
Casas paradas, caiadas
Com a mesma cal viva
Das valas comuns.
Pelos claustros do convento,
Entre suspiros, sussurros e zunzuns,
Esquivam-se furtivos noctívagos
Trânsfugas,
Infiéis,
Pecadores,
Hereges,
Proscritos,
Desertores,
Penitentes,
Almas penadas,
Poetas malditos,
Quiçá bruxas e duendes.

8. 
A calçada outrora portuguesa,
Gasta pelos cascos dos cavalos
Dos invasores,
Picam-se os brasões dos solares
Da mui antiga nobreza,
Corta-se rente
A árvore genealógica
Dos velhos senhores
E arrasados e salgados são, até às fundações,
Os seus doces lares.

9. 
Um estranho cheiro
A incenso, mirra, algas e maresia
Sobe pelos ares.
Violadas as filhas,
Raptadas as servas,
Passados a fio de espada
Os primogénitos,
Fundido o ouro e a prata,
Postos os novos deuses nos altares,
Pergunta o guia
O que é pior
Se a triste e vil desonra do presente
Ou o silêncio premonitório do futuro.

10. 
Por mim, nada de bom auguro.
Não sei que lugar é este
Sem memória
Nem glória,
À beira da estrada
Do Atlântico
Da minha infância revisitada.

11. 
Não há mais quem cante o cante
Dos poetas,
A doce cantilena das Naus Catrinetas,
O fero cântico dos últimos guerreiros
Do Império,
Ou até a última oração,
De lamento e impropério,
Em canto chão,
Que é devida
Aos bravos
Que pela Pátria deram a vida.

12. 
Fora de portas,
Num atalho ou trilho
Que leva ao monte das forcas,
Compro o último pão de centeio
E a última boroa de milho
À última padeira de Aljubarrota
Que ainda estava viva,
À hora do pôr do sol.
Padeira, viandeira, mãe coragem, altiva,
Que nem sempre o que parece é,
A vitória ou a derrota,
Medindo forças no tribunal da história.

13. 
Águas paradas do Rio Alcabrichel,
Tingidas de verdete e de sangue,
No fim de tarde de todas as batalhas.
“Pour Monsieur Junot,
C’était encore trop tôt!”.
Saqueada a  cidade,
Enchem-se as tulhas e as talhas,
Ainda a guerra é uma criança.

14. 
O último terno de cornetins
Da fanfarra do exército dizimado
Toca a silêncio,
Enquanto me despeço
Na parada, em ruínas, do quartel.

15. 
Em boa verdade, o silêncio
É a única linguagem universal
Que eu conheço
Na Torre de Babel.



Périplo pelas terras da Lourinhã, em 15 passos, entre a Praia de Paimogo e a Praia de Porto Novo, fim de verão, 2014. Aqui desembarcaram tropas luso-inglesas que derrotaram Junot na batalha do Vimeiro. Há 206 anos. 
_______________

Nota do editor:

Último poste da série > 30 de agosto de 2014 > Guiné 63/74 - P13547: Manuscrito(s) (Luís Graça (41): Roleta russa

3 comentários:

Anónimo disse...



Deixei-me embalar na leitura do teu poema, não sei se voei, se naveguei mas sei que pairei pelos ares ou naveguei pelos mares.
Obrigado Luís, depois do jantar bebi um vinho fino que comprei ao Josema e li o teu poema. Um bom vinho,néctar dos deuses combina com boa poesia, a linguagem dos deuses.
Parabens! À tua saúde!
Um grande abraço.

Francisco Baptista

Luís Graça disse...

Obrigado, camarada. Antes de mais folgo em saber que estás de voltar a casa, depois de um pequena intervenção cirúrgica, do foro oftalmógico (, espero não estar a cometer nenhuma inconfidência)... Tudo indica que correu bem, a avaliar pela tua evidente boa disposição...

E reforçando o teu comentário sobre o teu texto poético (que levou vários a dias a "tocar e retocar"...), direi que a poesia é para se ler, em voz alta, sozinho ou acompanhado, e com uma boa pinga do teu Alto Douro Vinhateiro...

Concordo inteiramente: a poesia é para se comer e beber, e eu fico contente por um dos meus "leitores", crítico atento mas empático, dizer-me que esteve a ler o poema, com um vinho fino do nosso camarada e poeta Josema (O Zé Manel da Régua)...

Bebo também à tua!

Luís Graça disse...

Como nasce um poema ? Aqui vaio o "making of" deste texto, poético, se quiserem...

Na Loruinhã, terra da minha infância, costumo passar das minhas férias de verão, em agosto. Tenho lá casa, amigos, conhecidos, recordações... E belas praias, e grandes festa como a da Atalaia (com o monumental e já afamado festival de marisco, a não perder toda esta semana!)...

Vivo na parte antiga da Lourinhã, na Rua da Misericórida (rua do séc. XVI) e tenho tudo (opu quase tudo) ali à volta num raio de 100 metros... Vou buscar o pão, ao fim da tarde, à padeira, que anda a fazer a venda, ambulante, om uma carrinha... É do Nadrupe, terra da minha mãe, a 3 km da vila... Pára em determindas horas e sítios da vila... Um, deles a 100 metros da minha casa, às 20h30, "em ponto"...

Há uns oito/dez dias atrás lá fui eu buscar o pão de centeio, para o jantar... Mas devido talvez às festas de verão, que se realizam no concelho por esta altura, a padeira atrasou-se... Eram 21h00 e eu, com fome, e nada de padeira nem de pão... Era já lusco-fusco, e como muitas vezes faço (quando tenho que esperar, num hospital, num consultório médico, por exemplo) pus-me a "poetar" para passar o tempo...

E assim nasceram as primeiras linhas do peoma "Extremadura(s)":

Casas caiadas paradas.
O silência escorrendo pelas paredes;
Nas águas furtadas já não dormem as criadas,
E na praça, ah!, da liberdade
Já não se ouve o frufru das sedas...

Àquela hora o centro (parte antiga) desta vila estremenha já é um deserto... Comecei, pois, a falar com as "pedras" e às tantas estava a revisitar o passado (, o meu, a história da minmha terra, da minha região, do meu país, da nossa humanidade)...

Depois trata-se de passar a ideia ao papel (e ao computador) e desenvolvê-la...

A versão que aqui publiquei tem muitas horas de trabalho, à tarde, na oraia, à noite, em casa, no manhã, noa café... É a versão 10, ou mais... E não fica por aqui...

Et voilá!