segunda-feira, 11 de agosto de 2014

Guiné 63/74 - P13484: Notas de leitura (621): “Direitos Civil e Penal dos Mandingas e dos Felupes da Guiné-Bissau”, por Artu Augusto da Silva (2) Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 6 de Fevereiro de 2014:

Queridos amigos,
Deplorando sempre não lhe terem dado condições para um trabalho de equipa, Artur Augusto da Silva, além de jurista emérito, por sua conta e risco procedeu a inúmeras deslocações para conhecer in loco o seu objeto de estudo, parece que tudo o interessava: os Balantas, os Sôssos, os Fulas, os Mandingas, os Felupes. Sente-se o grande prazer que ele teve neste trabalho pioneiro sobre o Felupes, trabalho que ele abre com um provérbio deste povo: “O burro e a lebre têm ambos orelhas grandes mas não são irmãos um do outro”. Trata-se de uma revelação surpreendente de um povo de que se fala com tanto preconceito e de que se desconhece quase tudo.

Um abraço do
Mário


Direitos civil e penal dos Mandingas e dos Felupes da Guiné-Bissau (2)

Beja Santos

Artur Augusto da Silva [foto à direita], não é de mais insistir, foi um investigador por conta própria, sempre apelou ao trabalho de equipa, que não veio, e deixou trabalhos jurídicos e um apreciável número de obras de imenso valor no campo da etnologia, da etnografia e do direito costumeiro. Se se pedisse uma prova eloquente das suas preocupações rigorosas como cientista social e investigador solitário, probo e meticuloso, não hesitaria em pôr à frente este trabalho sobre o direito dos Felupes (“Direitos Civil e Penal dos Mandingas e dos Felupes da Guiné-Bissau”, 4.ª edição, DEDILD, Bissau 1983). Em jeito introdutório, o autor recrimina aqueles que vêm apressadamente até África para produzir algo sem se preocupar em conhecer a essência do africano, assim: “Quem queira compreender a África Negra na sua verdadeira realidade, não pode fazer fé na maioria dos trabalhos publicados porque eles são o resultado de uma interpretação, de uma projeção da psicologia europeia sobre aquele continente, e não uma radiografia da alma africana.
Mesmo discutindo ou conversando com reputados etnólogos de diversos países, chegámos à conclusão que eles afloraram a realidade mas não conseguiram penetrar no âmago da psicologia do afro-negro que permanece, para eles, um ser estranho.
Duas razões justificam o facto: por um lado, sendo profissionais, precisam de publicar trabalhos e é vê-los, mal chegados ao campo de operações, indagando, medindo, pesando e analisando, sem que primeiro tenham procurado, através de um prolongado estágio, fazer esquecer o que sabiam para que pudessem captar a psicologia daqueles com quem estavam em contacto.
Por outro lado, não conseguindo pôr de parte dois mil anos de cultura que, embora não tragam nas malas, trazem no espírito, reduzem tudo ao padrão europeu e procuram encontrar a sua lógica por toda a parte, impõem-na aos outros e não concebem que possam existir outros modos de pensar e agir.
Daqui resulta que a maioria dos estudos sobre os negros são mais uma projeção da mentalidade europeia deformada do que uma análise objetiva desses povos".

Cético em considerar que os Felupes pertencem ao ramo sudanês, refere os escritores portugueses que desde o século XV mencionam os Felupes, localizando-os onde ainda hoje habitam. Por exemplo, Lemos Coelho (Duas Descrições Seiscentistas da Guiné, escritas em 1669 e 1684) refere-se detidamente a estes povos, como escreveu: “Saindo do rio da Gâmbia pela costa abaixo… está logo o rio S. João… a gente são falupos”. Acrescenta: “… da banda no norte do rio de Casamansa tudo são falupos”. Esclarece: “Passando o rio de Jame o que se segue é o de Cacheu. Toda a costa são falupos”. Os Felupes posicionavam-se desde o rio Gâmbia até ao sul do rio Cacheu, pouco penetrando para o interior. Viviam na costa, junto aos inúmeros esteiros, rios e riachos que cortam a Senegâmbia e a região Susana-Varela. Tiveram grandes hostilidades com os Mandingas, estes, em maior número e grandes guerreiros, queriam cativar os Felupes e vendê-los como escravos. Não se deixaram islamizar, coisa que aconteceu com o ramo Banhum. Mesmo antes da luta armada iniciou-se um processo lento de muçulmanização.

Em termos históricos, a palavra Felupe foi usada desde o século XV pelos portugueses generalizou-se a outras tribos: Buramos, Cassamgas, Banhuns, Arriatas, Jabundos e Baiotes, hoje estas etnias estão bem demarcadas.

Felupes a pescar, imagem retirada, com a devida vénia, do site: http://actd.iict.pt/view/actd:AHUD26211

Para os Felupes a vida é um todo, a unidade dos preceitos reguladores da atividade dos homens é completa. Todos os fenómenos da vida são determinados pela vontade das forças sobrenaturais, os homens são simples agentes passivos dessa vontade. O mundo dos Felupes é governado pelas “forças deuses”, cada uma dessas forças possui uma virtude própria e o seu contrário: os deuses que podem produzir a morte podem, também, curar os homens. Este mundo religioso está intimamente articulado com o quotidiano e a sua plenitude de atividades. Como o autor escreve: “Há uma refeição sagrada que os Felupes celebram familiarmente quando colhem o primeiro arroz, este arroz simboliza a palingenesia de tudo o que existe – tudo nasce, cresce, desaparece e torna a nascer – e simboliza a comunhão do povo do espírito dos primeiros Felupes que cultivaram arroz”. É um mundo religioso determinado por forças incorpóreas, onde há intermediários divinatórios e onde há o tchina grande, a autoridade suprema. O sentido coletivo pesa e a opinião do Conselho dos Anciãos é determinante.

Para surpresa do autor, encontrou palavras Felupes derivadas do português: carafa (garrafa), papé (papai), biber (bebida), cagana (caganeira). A família Felupe, em sentido restrito, é um conjunto de indivíduos ligados por laços de sangue e que vivem debaixo da autoridade de um chefe. Quando um Felupe fala na sua família, tem em mente só aqueles que vivem debaixo da autoridade do seu pai, avô, tio ou irmão, que habitam na mesma tabanca e descendem de um antepassado comum. Os Felupes desconhecem a instituição servil: nunca tiveram escravos e não os têm. Quando, nalguma guerra, faziam prisioneiros, ou os negociavam ou os comiam. A antropofagia praticada pelos Felupes desde tempos muito recuados está em vias de desaparecimento. O trabalho debruça-se sobre o casamento, a filiação, as cerimónias fúnebres. Passando para os direitos reais, o autor recorda que o Felupe vive em regime comunitário, não se concebe que alguém se intitule dono daquilo que não produziu. E escreve: “O gado e as bolanhas são a expressão mais acabada do orgulho de uma família Felupe. O número das cabeças de gado e a extensão e produtividade das bolanhas são o padrão demonstrativo do zelo e amor pelo trabalho, não só do chefe de família como de todos os seus membros. Além disso, põem-nos ao abrigo dos maus anos que falta arroz. Não há uma família Felupe que não tenha, no fim das colheitas, nos seus celeiros dentro de casa, uma suficiente reserva de arroz, bastando no geral, para alimentá-la durante dois anos”.

O autor analisa também os diferentes contratos da sociedade Felupe e o direito de sucessões dizendo: “O princípio dominante em todo o capítulo das sucessões é o de que sendo a família quem possui as casas e os terrenos de lavor, não lugar à transmissão dos bens mas unicamente a transferência de administrador desses bens”.

Quanto ao direito penal, o autor recorda que o social e religioso estão interligados. O crime, para os Felupes, não implica, em princípio, atos volitivos porque se refere aos resultados e não à intensão, os Felupes distinguem perfeitamente o homicídio voluntário do involuntário. Elenca as interdições e atos desaconselhados e um vasto leque de sansões na ordem familiar e na ordem coletiva. E no termo do seu ensaio, Artur Augusto da Silva deixa-nos uma curiosidade que seguramente surpreenderá o leitor: “Os Felupes usam a mesma palavra para designar paz, felicidade e liberdade, facto de uma importância transcendente para a compreensão da filosofia prática desta etnia. Os três conceitos são, na vida de um povo, inteiramente insolúveis e bom seria para a humanidade que, em todas as línguas, estas três palavras fossem rigorosamente sinónimas…”

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Nota do editor

Último poste da série de 8 de Agosto de 2014 > Guiné 63/74 - P13474: Notas de leitura (620): “Direitos Civil e Penal dos Mandingas e dos Felupes da Guiné-Bissau”, por Artur Augusto da Silva (1) (Mário Beja Santos)

5 comentários:

Antº Rosinha disse...

"...a maioria dos estudos sobre os negros são mais uma projeção da mentalidade europeia deformada do que uma análise objetiva desses povos".

Artur Augusto Silva tem toda a razão, mas nem em cem anos um europeu pode estudar qualquer etnia a fundo se não falar naturalmente a língua dessa etnia.

Se não forem os africanos a adotar voluntariamente, (e até ansiosamente)os usos e costumes europeus para depois eles explicarem os seus segredos, nunca haverá entendimento mais ou menos completo.

Quando se fala na interacção europeu/africano, também se pode falar o mesmo à relação a árabe/africano.

Só que aqui, parece que os árabes estão a "compreender" melhor os africanos, principalmente em certas regiões, atravez da religião.

Patricio Ribeiro disse...

Aqui está uma grande investigação … passados tantos anos tudo está igual, há povos que preservam a sua cultura.
Junto últimas notícias dos Felupes de Susana:
- Foi feita uma recolha fantástica sobre os Felupes na guerra colonial, (estiveram ao lado dos Portugueses) para a tese de Doutoramento do Antropólogo Luís Costa, que já passou muitos meses e por diversas épocas, em Susana, embora este não seja o tema do Doutoramento.
Há aproximadamente dois meses, que decorreu o XINABU, (entrada para circuncisão) em Suzana. Infelizmente por ter estado com malária, não pude assistir.
Sei que foi uma festa de arromba, durante uma semana em Susana e como sempre, vieram hóspedes de todo o mundo.
Uma pessoa amiga que assistiu, disse que ninguém dormiu nestes dias e que já não havia lugar para tanta gente…
Nesta festa, é normal dispararem todo o tipo de armas até RPG7, morteiros dos tempos das caravelas etc... À saída das “barracas” dos circuncidados, voltará a ter as mesmas cerimónias.
Patrício Ribeiro

Cherno Balde disse...

Caro Rosinha,

Passados os tempos historicos que conhecemos e com a globalizacao crescente no mundo, hoje pensa-se que o homem eh universal, com especificidades proprias de cada povo ou comunidade, dentro de um determinado contexto fisico, social, cultural, etc...etc.

No que aos estudos diz respeito, em muitas disciplinas de investigacao social, os trabalhos de pesquisa que um africano faz sobre a sua propria comunidade nao tem o mesmo valor cientifico daquele feito por um europeu ou Americano. Isto pela simples razao de que na investigacao eh necessaria a existencia de certos requisitos, como a objectividade e o distanciamento que, muitas vezes, condicionam os resultados finais dos estudos.

O texto apresentado nao eh de um estudioso da materia, mas de um chefe de posto baseado nas suas observacoes e vivencias junto dos Felupes. Nao me parece mau, como texto descritivo, mas tambem nao eh cientifico, porque nao valida nem invalida nenhuma hipotese inicial de pesquisa ou problematica de investigacao.

Veja, por exemplo, o caso de um colega Guineense que frequentou dois mestrados em Portugal, mas nao chegou a apresentar nenhuma tese porque nao lhe parecia etica e moralmente justo estar a desvendar a terceiros aspectos intimos do seu pais e do seu povo.

Com um abraco amigo,

Cherno Balde

Antº Rosinha disse...

Amigo Cherno, de facto os velhos chefes de posto até tivessem tido uma ideia bastante perfeita sobre o direito Civil e Penal das etnias onde trabalhavam.

Tens razão, ao falar nos chefes de posto, até porque os velhos régulos recorriam à palmatória e aos cipaios ao serviço dos Chefes de Posto, para lhe resolverem os problemas e as intrigas e conflitos de tabanca.

Talvez até os velhos comerciantes europeus entendessem um pouco sobre as leis étnicas.

Mas enquanto não entendessem razoavelmente a língua tribal, os chefes de posto estavam sujeitos a ser "enrolados" e fazer injustiças ao sabor dos cipaios e régulos, muitas vezes uns velhacos e intriguistas.

Eu como furriel em Angola em 1961 era comandante de secção numa terra onde eu era o "maior"

E uma mulher da sanzala veio ter com a tropa a denunciar a presença de um "telurista".

Se não fosse um cabo angolano a alertar tinhamos feito porcaria, pois era uma mulher ciumenta a querer vingar-se do homem dele por motivos passionais.

Cherno, até podia ser mesmo da UPA, que era a região desse movimento, mas falar bacongo não era com nenhum do meu grupo, mesmo o cabo angolano era do sul e não entendia nada, de maneira que pedimos desculpa ao homem e a mulher levou um atesto de porrada "por amor".

Se falasse a língua não ficava com tantas dúvidas.

Diz aquele ditado: Quem está no convento, e que sabe o que vai lá dentro.

Um abraço

Antº Rosinha disse...

Amigo Cherno, ainda sobre o atesto de porrada que a mulher levou do marido , este prometeu-me que não batia na mulher quando eu virasse costas.

Mentiu-me, pois a mulher apareceu a culpar-me da amchucadela que levou.

Não consegui entender nem resolver a contento por não conseguir dialogar.