quarta-feira, 16 de julho de 2014

Guiné 63/74 - P13405: Tantas vidas (Gil da Silva Duarte / Virgínio Briote) (2): As nossas mulheres: carta de uma mãe a Sua Excelência o Minstro do Exército, datada de 4 de fevereiro de 1963, intercedendo por um filho que acabava de ser mobilizado para o CTIG, depois de um outro ter sido morto em Angola, em 23 de abril de 1963...



Portugal > Finais dos anos 50 >  "Fotografia de mães e filhos, em finais dos anos 50, com a guerra já no horizonte. Todos esses rapazes foram para África: um para a Guiné, e dois para Moçambique, regressando um destes paraplégico".

Foto (e legenda): © Virgínio Briote  (2014). Todos os direitos reservados [Edição: L.G.]


1. Mensagem do nosso editor (jubilado) Virgínio Briote, e referência incontornável do nosso blogue, para o qual entrou na data já distante de 23/10/2005 (*):

Data: 16 de Julho de 2014 às 14:43

Assunto: As nossas Mulheres

 Caros Luís e Carlos,

Dei agora com uma carta que, naqueles tempos, me foi entregue em Brá. É evidente que os nomes estão omitidos, mas a carta é verdadeira. Devolvi-a ao filho da Senhora que a escreveu há pouco mais de meia dúzia de anos, estava a Mãe ainda viva! 

Anexo uma fotografia de mães e filhos, em finais dos anos 50, com a guerra já no horizonte. Todos esses rapazes foram para África. Um para a Guiné, e dois para Moçambique, regressando um destes paraplégico.

Um abraço do VB

[, Virgínio Briote, ex-alf il cmd, cmtd Gr Diabólicos, CCmds, CTIG, Brá, 1965/67: , foto à esquerda, c. 1965]


2. Carta ao Ministro do Exército

Exmo Senhor Ministro de Exército

Excelência,

Venho respeitosamente dirigir-me a Vossa Excelência expondo-lhe o seguinte.

Sou mãe do 2º Sargento Mil ..., morto em Angola, no Quitexe, em 23 de Abril de 1963. Após 22 meses (?) ao serviço da Pátria, o meu filho, que era a luz dos meus olhos lá se ficou.

Hoje tive conhecimento que outro meu filho, o 1º Cabo Mil ..., acaba de ser mobilizado para a Guiné, para onde parte no dia 9 deste mês.

Sou pobre, se não ia pessoalmente, de joelhos, pedir a Vossa Excelência que tenha pena de mim. Com a morte do meu ... nunca mais fui a mesma. Se há pessoas desamparadas da sorte, uma delas sou eu, perdi completamente o gosto por viver.

Não choro os meus filhos à Pátria, choro sim a sua morte quando vejo companheiros deles, depois de apurados, descerem aos hospitais militares e ficarem livres. Não ensino procedimentos destes aos meus filhos, custar-me-ia muito vê-los tomar atitudes idênticas.

Mas apelo ao coração, que presumo ser bom, de Vossa Excelência, que certamente também é Pai. A metrópole é também a nossa Pátria e o meu filho ficaria aqui a cumprir o tempo necessário e não mo mandaria para longe entrar em combates.

Há seis anos, o meu marido teve uma trombose. Vive, mas é um doente, e com tudo isto vejo agravar o seu sofrimento.

Não me convenço que meu filho…vá para tão longe. E pelos seus filhos, peço-lhe que mo deixe ficar. Vossa Excelência terá a certeza que eu terei mais meia dúzia de anos de vida, nunca mais de alegria, mas para melhor poder amparar o meu marido e meus filhos, para os quais sempre tenho vivido.

Julgo bater à porta de Deus e a Ele fico a pedir para que Vossa Excelência e Família tenham uma vida cheia de saúde e felicidade.

Respeitosamente de Vossa Excelência

Maria……

4 de Fevereiro de 1965.

3. Comentário de L.G.:

No passado dia 10, mandei ao VB a seguinte mensagem:

(...) Em boa forma ? È só para te recordar o desafio que te lancei há tempos, e reiterei em Monte Real, no IX Encontro Nacional da Tabanca Grande... Não nos sacas aí, do teu baú, uns tantos textos (meia dúzia...) para dar continuidade a esta série, "Tantas Vidas" ? !...

Estamos com 200 mil visualizações por mês... Vem o verão, e é preciso alimentar o blogue... sobretudo em agosto... Há muitos camaradas, "periquitos", que nunca tiveram oportunidade de ler o teu blogue Tantas Vidas (**), há muito desativado,,, Pensa também nesta malta,que está a chegar ao nosso blogue... Quando cá chegaste éramos meia dúzia de "tertulianos", hoje somos 662" (...).


A resposta não tardou, comunicando-me que o assunto não estava esquecido, e mandando-me duas colaborações, a começar por este texto que acima publicamos, o que vem reforçar a minha esperanção, e mais do que isso, convição de que os nossos leitores vão poder ter o privilégio de ler ou reler alguns dos melhores textos da série "Tantas Vidas" do Gil Duarte & Companhia... (Gil Duarte é uma espécie de "alter ego" do VB)...

(...) Os textos do Tantas Vidas? Nunca mais peguei neles, tenho-os arquivado no portátil, julgo que fiz a cópia total do blogue mas nem tenho a certeza de que o tenha copiado todo. No PC fiquei com alguns textos que copiei e antes de os publicarmos tenho que os voltar a ler, corrigir, ordenar e completar, uma vez que fechei o blogue em princípios de 2005! Mas podemos voltar a pegar no assunto. (...).

Por estes dias, o VB e a Irene estarão  de visita à "família americana" (filha, genro e netos), em Seatle... Desejo-lhes calorosos  encontros e que bons ventos os tragam de novo à doce casa e à querida pátria, como diria o grande Ulisses, o homérico  guerreiro que levou 10 anos da sua vida a regressar à sua amada Ítaca, depois da guerra de Troia.

4. Adenda posterior, do VB,  ao poste (com referência à carta e à foto):


Não fosse a pressa, a história para ficar completa devia tê-la contado assim: a carta foi certamente enviada para o ME que a deve ter remetido para o QG/CTIG. Aqui deve ter estado parada uns tempos até ter sido enviada para Brá, uma vez que era lá que se encontrava o filho (elemento do meu grupo) da Senhora que escreveu a carta. 

O então Cmdt da CCmds do CTIG entregou-ma em mão com a indicação "desenrasque-se" e que agisse em conformidade com o estado anímico e físico do referido militar. Muitos anos depois, 2002/03, quando estava em casa dos meus Pais a ver e limpar os papeis e fotos que tinha trazido de lá, dei com essa carta. 

Depois entrei em contacto com o meu antigo Camarada e combinei encontrar-me com ele e passei-lhe para as mãos a carta que a Mãe tinha escrito em 1965. Foi com as lágrimas nos olhos que reconheceu a letra da Mãe e me disse que ainda era viva.

Era assim que eu devia ter relatado este facto.
O meu irmão Rui é o pequeno da ponta esquerda da foto, de boné. Foi atingido por estilhaços de uma granada de morteiro que rebentou no parapeito do telhado sobre o qual se encontrava, no Chai, Macomia, em Junho de 1973, salvo erro.
______________

8 comentários:

Luís Graça disse...

Digam lá se o do meio não é o VB ?

Sim, tenho uma vaga ideia de o VB um dia me ter dito que tinha um mano que foi gravemente ferido em Moçambique, na guerra colonial...

Espero não estar a trocar as "cassetes"... São as marcas, físicas e outras, que ficam am grande parte das famílias da nossa geração...

Obrigado, VB, por partilhares esta foto de família... Boa viagem até Seatle, para ti, o Gil Duarte e a Irene... Que te tenhas muitas alegrias ao reencontrar a tua/vossa família americana... LG

Anónimo disse...

Não fosse a pressa, a história para ficar completa devia tê-la contado assim: a carta foi certamente enviada para o ME que a deve ter remetido para o QG/CTIG. Aqui deve ter estado parada uns tempos até ter sido enviada para Brá, uma vez que era lá que se encontrava o filho (elemento do meu grupo) da Senhora que escreveu a carta. O então Cmdt da CCmds do CTIG entregou-ma em mão com a indicação "desenrasque-se" e que agisse em conformidade com o estado anímico e físico do referido militar. Muitos anos depois, 2002/03, quando estava em casa dos meus Pais a ver e limpar os papeis e fotos que tinha trazido de lá, dei com essa carta. Depois entrei em contacto com o meu antigo Camarada e combinei encontrar-me com ele e passei-lhe para as mãos a carta que a Mãe tinha escrito em 1965. Foi com as lágrimas nos olhos que reconheceu a letra da Mãe e me disse que ainda era viva.
Era assim que eu devia ter relatado este facto.
O meu irmão Rui é o pequeno da ponta esquerda da foto, de boné. Foi atingido por estilhaços de uma granada de morteiro que rebentou no parapeito do telhado sobre o qual se encontrava, no Chai, Macomia, em Junho de 1973, salvo erro.
Abraço
VB

JD disse...

Caro Virginio,
Belíssima carta de desespero e de esperança. Houve mães de portugueses que passaram semelhantes sofrimentos. No meu pelotão tive um camarada com um irmão embarcado na mesma data com destino para Cabuca, era gémeo, e outro, mais velho, que já contava alguns meses em Angola.
Quantas angústias as daquela senhora? e as de todas as mães com filhos mobilizados para o desconhecido?
Como perguntava o poeta ao mar, quanto do teu sal são lágrimas de Portugal?
Desejo-te boas viagens nesse novo mundo, e fica atento, podes encontrar o Zé Câmara ou o Tony.
Um abraço
JD

Anónimo disse...

Meus amigos,

Podeis ter a certeza que nada me daria maior alegria que vos encontrar por aí.

A partir de amanhã andarei a vadiar por terras de Alentejo, Algarve e paragem obrigatória em Fátima. Ortigosa, Quinta do Paúl, 26 de Julho, será o meu destino final.

Sobre a carta referida no artigo, de realçar a angústia de uma mãe que perdeu um filho na guerra e via outro a caminho da Guiné.

Conheci três irmãos,os Serpas naturais da Ponte da Fajã, Ilha das Flores, a cumprirem a sua comissão ao mesmo tempo: dois na Guiné e um em Timor.

Felizmente regressaram todos e emigraram para os EUA. Dois deles já regressaram à sua ilha.

José Câmara

Joaquim Luís Fernandes disse...

Caros amigos e camaradas

Esta carta esquecida, que agora se publica, será decerto uma entre as milhares, que mães, esposas, noivas... desesperadas e no auge do seu sofrimento, terão escrito ou desejado escrever. É mais uma amostra de um relato dessa época, de há 50 anos, mas que ainda tenho bem presente: Um país a braços com uma guerra sem fim à vista, para onde muitos de nós eramos atirados, irremediavelmente, mesmo sabendo-se da sua impossibilidade de ser ganha militarmente, disso tendo consciência, e com o poder político a revelar total incapacidade de a ultrapassar.

Também testemunhei o sofrimento de uma família de meus conterrâneos e amigos que perderam um filho em Moçambique e com outro na Guiné:
Em Moçambique estava o meu amigo Zé Manel, Alf. Mil. morto em Abril de 74, numa armadilha seguida de emboscada. Na Guiné, em Bula, estava o seu irmão Virgílio Ferreira, Alf. Mil.
Eu estava em Bissau, e recebi-o na minha casa. Era o rosto do sofrimento. Ele que na correspondência que trocávamos, sempre se manifestava tão revoltado com a guerra, vivia agora de modo mais cruel, no espírito e na carne, a consequência dessa guerra estúpida. Deixou comigo, à minha guarda, alguns dos seus haveres e veio ao funeral do irmão.
Já não voltou à Guiné.

Estes fatos relembrados não devem ser esquecidos. No julgamento da História desse tempo de servidão, deve somar-se, do lado do passivo, aos mortos, estropiados e incapacitados por doença adquirida, também os seus familiares que foram atingidos profundamente.

Obrigado ao camarada Virgínio Briote, pela partilha. Votos de boa viagem de ida e volta aos USA e que tudo vos corra de feição e com saúde.

Abraços
JLFernandes

Antº Rosinha, retornado disse...

Morreu em 1961 a golpes de catana, o homem que me tinha enviado a carta de chamada para eu ir para Angola em 1957.

Essas catanas foram financiadas pelo governo americano de Kennedy ao pastor evangelista Holden Roberto da UPA.

Quando em Dallas Kennedy foi desta para melhor, não sabia se devia rir ou chorar, em memória do homem da minha carta de chamada.

Luís Graça disse...

São memórias doridas, meus amigos e camaradas, Briote, Fernandes, Dinis, Rosinha...

Estamos longe de imaginar os dramas, pessoais, familiares e comunitáios, que se esocndem, ainda hoje, por detrás do rosto de cada um de nós e das pessoas que nos são próximas, relacioanados com a última guerra que travámos...há meio século atrás.

Essas são das feridas que nuncam cicatrizam... Mas façamos como os leões, que lambem as suas próprias feridas... "Coping", dizem os psicólogos... Como lidar com esta parte do nosso passado ?

As vítimas, todas as vítimas de todas as guerras, devem merecer o nosso maior respeito, onde quer que tenham tombado, e independentemente da(s) causa(s) por que morreram... Da(s) causa(s) ou da ausência dela(s)...

Luís Graça disse...

E as vítimas, não são só os mortos que contabilizamos, listamos, lembramos, homenageamos, recordamos...