terça-feira, 15 de julho de 2014

Guiné 63/74 - P13403: Dossiê Os Libaneses, de ontem (e de hoje), na Guiné-Bissau (2): O meu Natal de 1965 em Bissorã, na casa do sr. Michel, bebendo whisky do bom... (Manuel Joaquim, ex-fur mil armas pesadas, CCAÇ 1419, Bissau, Bissorã e Mansabá, 1965/67)


Aerograma enviado pelo Manuel Joaquim à sua namorada: "Bissorã, 25 dez65" e onde fala sua festa de natal, oferecida à tropa,  pelo decano dos comerciante libaneses de Bissorã...

Foto: © Manuel Joaquim  (2012). Todos os direitos reservados. (Edição: L.G.)

1. Excerto de um poste do Manuel Joaquim (ex-Fur Mil de Armas Pesadas da CCAÇ 1419, Bissau,Bissorã e Mansabá, 1965/67)(*)

Na noite de Natal de 65, o decano dos comerciantes libaneses, sr. Michel (**), acho que era este o seu nome, preparou uma recepção na sua casa, para a qual convidou os comandantes das companhias alocadas em Bissorã, CART  643 e CCAÇ  1419, seus oficiais e 1.ºs sargentos e sendo o restante pessoal militar representado por um furriel e por um praça de cada uma das companhias. Posso estar enganado,  mas é a ideia que tenho.

Da CCAÇ 1419 fui eu o furriel escolhido. Não sei se “de motu proprio” ou cumprindo decisão superior, o 1º sargewnto  da companhia fez-me o convite que eu aceitei, algo contrariado, após alguma insistência.

Para a ocasião vesti o meu fato “de ir à missa” comprado na  então famosa casa de moda da baixa lisboeta, a Casa Africana, uns dias antes de embarcar. “Ótimo para usar em África”, disse-me o vendedor em resposta à minha inicial informação de que estava prestes a embarcar para a Guiné e precisava de um fato para levar.

[Imagem à direita: Cartaz publicitário da eitinta Casa Africana, uma loja emblemática da Rua Augusta, em Lisboa]

E lá fui de fatinho azul-ténue, muito leve, com risquinhas verticais pretas e muito finas. A confraternização correu bem. Houve “comes e bebes” e muita conversa, geral e particular, entre os convidados e o dono da casa.

Recordo bem a qualidade do uísque, uma maravilha, do resto tenho noção vaga duma conversa do anfitrião discorrendo sobre as suas relações com personagens conhecidas na política e na sociedade empresarial, tanto na Guiné como em Portugal (no Continente, como então se dizia).

Não sei que idade teria o sr. Michel mas para mim era um homem já idoso, um senhor culto, bem viajado, bom conversador e de óptimo trato. Penso que teria sido, antes da guerra, um grande comerciante. Em 1965 a sua actividade comercial já estava muito reduzida.

Havia música mas não havia “garotas”! A animação não foi muita mas deve ter havido alguma já que o evento durou umas boas horas. O certo é que não me lembro dela. Talvez por causa do meu estado de espírito naquela altura como se pode adivinhar pela breve referência que fiz ao assunto num aerograma enviado à namorada:

(…) “Há por aqui umas famílias de emigrantes libaneses que nos proporcionaram umas festazinhas agradáveis na quadra que passou há pouco. Mas o sofrimento cá anda roendo a alma. E para muitos de nós a bebedeira foi a fuga. O whisky aqui é barato. Assim a bebedeira fica barata também.” (…)

Uma nota final: Interessante o lembrar-me ainda hoje da qualidade do uísque do sr. Michel e não me lembrar de muitas outras coisas mais importantes. Pensando bem, compreendo. Pois para quem andava afogando mágoas, eu por exemplo, curtindo alegrias e lavando o estômago com VAT69, J. Walker red label e outros deste género, encontrar e saborear o uísque do velho libanês foi um momento inolvidável. Aquilo não era uísque, aquilo é que era whisky!

Manuel Joaquim


Ferreira do Alentejo > Figueira de Cavaleiros > 25 de Setembro de 2010 > Jantar em casa do Jacinto Cristina   > Até à última gota de... uísque. Buchanan's, from Scotland, for the Portuguese Armed Forces... with love... Esta foi comprada em Bissau, em Junho de 1974, e aberta no nosso primeiro encontro, na festa de anos da filha do Jacinto, em Março passado. Na Guiné, aprendemos  a distinguir o bom "scotch whisky" do "uísque marado de Sacavém" que se bebia nas noites de Lisboa e arredores, nos anos 60/70,nos primeiros bares de alterne que apareceram...

Foto: © Luís Graça (2010) / Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné. Todos os direitos reservados.
_____________

Notas do editor:

(*) Vd. poste de 21 de dezembro de 2012 > Guiné 63/74 - P10839: Conto de Natal (9): O meu Natal de 1965 em Bissorã (Manuel Joaquim)

(**)  Vd. poste de 15 de julho de  2014 > Guiné 63/74 - P13400: Dossiê Os Libaneses, de ontem (e de hoje), na Guiné-Bissau (1): Quem eram, onde viviam e trabalhavam, quando chegaram, etc. Propostas de TPC estival: factos, gentes, histórias, fotos...

4 comentários:

Luís Graça disse...

Manel, periquito de dois meses, lá foste "dar de beber à dor", na casa de um comerciante libanês que mal conhecias, no teu primeiro natal da geuura...

Michel parece ser nome francês, o dono da casa deveria ser cristão, maronita (un dos grupo etnopreligiosos do Líban0)... Os cristãos maronitas (cerac de 3 milhões em todo o mundo) obedecem à Santa e ao Papa da Igreja Católica, mas têm uma lçiurgia própria...

Se o Michel fosse muçulmano xiita, não beberia uísque, em princípio...

Por outro lado, tratava-se de celebrar o natal cristão com outros cristãos, embora militares, de Portugal...

Mas agora diz-me uma coisa; foi um gesto altruísta ? Uma cortesia de um comerciante (que podia ser português...) para com a tropa que lhe defendia as costas ? Ou havias "negócios com a tropa" ?...

Não quero fazer juízos de intenção, em todas as guerras os comerciantes são peritos em tirar partido da situação, procurando estar bem com os "dois lados"...

De resto, os economistas dizem-nos, com cinismo ou realismo, que "não há almoços grátis"... E a gente tem a prova disso todos os dias... Provalmente esses senhores (e essas senhoras) que aconselham os ricos deste mundo, nunca entenderão coisas tão elementares entre os primatss, incluindo os seres humanos, como é o altruísmo, por exemplo).

Bispo1419 disse...

Caro Luís:
Michel Ajouz era, em 1966, o mais idoso dos comerciantes de Bissorã. No P10966 deste blogue, o Pepito dá-o como um dos pequenos comerciantes libaneses localizados no chamado "Bissau Velho" em 1952, aquando do regresso de Amílcar Cabral à Guiné.
Pelo que me lembro de lhe ter ouvido, os seus negócios devem ter crescido muito nos anos seguintes. As referências que fazia à sua facilidade nos contactos com certas personagens "graúdas", do regime e de certos meios económicos, e a ambientes luxuosos que teria frequentado em Portugal seriam só "garganta"? Acho que não.
Em 1966, a sua actividade comercial em Bissorã era reduzida mas percebia-se que o não teria sido antes.
Se era cristão, M. Ajouz? Creio que sim. Até por eu saber que era e continuou a ser seu costume comemorar o Natal.
Teria "segundas intenções", com o advento da guerra, ao receber os militares em sua casa para tal comemoração? Julgo que não e que, neste caso, era mesmo o chamado "espírito natalício" a marcar tal acto.

Do meu tempo em Bissorã, como ligação económica da tropa com a comunidade libanesa, só me lembro do fornecimento do pão. Não convivi com a comunidade libanesa de Bissorã, a não ser neste caso que referi no meu "Post". Melhor dizendo, não tive qualquer tipo de relação com a comunidade comerciante local, libanesa ou outra. Mas sei que outros meus camaradas mantinham contactos, alguns destes de carácter muito chegado.

Quanto ao juizo de "em todas as guerras os comerciantes são peritos em tirar partido da situação, procurando estar bem com os dois lados ..." não está longe do que eu penso mas creio não se aplicar a M. Ajouz. Curiosamente, fui eu quem, em 1966, prendeu um dos comerciantes locais, por sinal um dos que eu via todos os dias por seu meu vizinho e passar à sua porta quando me dirigia ao quartel. Ainda hoje estou para saber a razão de ter sido encarregado de tal acto. Experimentarem-me politicamente?

Um grande abraço
Manuel Joaquim

Anónimo disse...

Olá Camaradas
Só conheci um libanês na Guiné. Tinha uma loja daquelas que vende "tudo e um par de botas" e, vim a saber mais tarde trabalhava para o PAIGC. vivia só. Pelo menos não lhe conheci nenhuma mulher. E não tinha filhos. Era um homem reservado, como cabe a qualquer espião e tinha uma actividade que lhe dava dinheiro e cobria a sua acção. O nome dele, já me esqueci, mas quem por lá passou sabe de quem falo. Venham outras opiniões...
Um ab.
António J. P. Costa

armando pires disse...

Conheci o Michel Ajouz
(1969/1970)
As recordações com que ficámos um do outro não são famosas.
Mas é conversa que não é para aqui chamada.
Muitos anos depois, na Antena 1, à conversa com uma camarada técnico de som, naquelas conversas em que as cerejas vêm umas atrás das outras, ele ficou a saber que eu tinha estado na Guiné, eu fiquei a saber que ele era guineense, ele ficou a saber que eu estivera em Bissorã e eu fiquei a saber que ele era sobrinho do Michel Ajouz.
Ele só não ficou a saber porque eu e o tio andámos de candeias às avessas.
Porque a história ainda tinha(à época), e tudo indica que ainda, os protagonistas principais com vida.
armando pires