sexta-feira, 4 de julho de 2014

Guiné 63/74 - P13364: Notas de leitura (608): "África" - Literatura-Arte e Cultura - Os Djumbai (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 30 de Dezembro de 2013:

Queridos amigos,
De há muito que a cultura oral fascina os estudiosos guineenses. Logo Marcelino Marques de Barros, um pároco guineense, de elevadíssima cultura, que chegou a ser vigário-geral da Guiné e sócio correspondente da Sociedade de Geografia de Lisboa, deixou o primeiro acervo de lendas e adivinhas, mais tarde Benjamim Pinto Bull, na sua tese de doutoramento na Sorbonne debruçou-se sobre a filosofia do crioulo na Guiné-Bissau e procedeu a um importante levantamento das adivinhas e a sua estrutura, evidenciando o papel que é a oralidade e o crioulo têm na cultura popular. Estas adivinhas são um dos esteios que marcam a diferença da cultura guineense face aos países limítrofes, é uma das marcas de água da sua identidade.

Um abraço do
Mário


Os “Djumbai”

Beja Santos

Na segunda metade dos anos 70, o escritor Manuel Ferreira dirigiu a revista África, de saudosa memória. No seu número 6, correspondente ao último trimestre de 1979, foi publicado um ensaio assinado por Teresa Montenegro/Carlos de Morais que questiona o vigor da cultural popular oral na Guiné-Bissau. De forma preambular, os autores recordam a importância das narrativas comunitárias e o desempenho que cabe nessa oralidade aos “homens grandes”; ainda sob essa forma preambular, é também observada a importância da floresta imensa e ancestral e o papel que ocupa na cultural oral, pois é nesse espaço temeroso que se desenvolvem vários deuses que falam com as serpentes, por ali vagueiam espíritos errantes, é na floresta que decorre o fanado, o que significa que ali os jovens se transformam em adultos, à volta da floresta decorre o centro nevrálgico da economia guineense. É dentro deste enquadramento que os autores põem em cena os “djumbai”, reuniões informais de convívio onde estão presentes homens, mulheres e crianças de todas as idades, atravessadas por uma dinâmica da comunicação onde têm lugar os relatos, canções, adivinhas, comentários, etc., e que é sustentada e dirigida por intervenções de gente de todas as idades.

Os “djumbai” acontecem ao crepúsculo, trata-se de contar, cantar e ouvir histórias, tudo na noite fechada ou na noite estrelada, é aqui que o convívio noturno eclode com toda a sua magia. É nestas reuniões informais que vão surgir as adivinhas, uma síntese que encerra o enigma e propõe um jogo: a descoberta desse enigma.

Os autores escrevem textualmente: “Dos elementos propostos parte-se para a descoberta e chega-se à chave do enigma através de um exercício de reflexão e imaginação que assenta nos dados da adivinha, que contêm e transmitem o essencial da situação proposta. A síntese apresentada à assistência pode assumir a forma do absurdo, do insólito ou invocar sons conhecidos. Uma mesma adivinha pode também admitir mais do que uma resposta e a uma mesma resposta pode chegar-se através de formulações diferentes (…) Sendo a descoberta a sua finalidade, as adivinhas estão permanentemente a veicular conhecimentos, conhecimentos úteis que correspondem às necessidades do meio em que circulam e que são apreendidos em completa participação e liberdade”.

Os autores escreveram um livro sobre as adivinhas que se intitula «‘N sta li, ‘n sta lá» (estou cá e estou lá). Estar simultaneamente em mais de um sítio, viajando no tempo e no espaço sem deixar de estar de algum modo.

Aportam igualmente dois elementos explicativos para a força deste jogo em que as adivinhas desempenham um papel primordial na vida comunitária: o crioulo e a oralidade. Obviamente que a comunicação dentro da tabanca é para ser apreendida por uma ou mais etnias, daí o uso da língua veicular, o crioulo que ainda não é um sistema de escrita. Escrito este ensaio em finais da década de 1970, era já candente a argumentação utilizada para a análise destas adivinhas:
“Numa sociedade onde apenas agora se começam a distribuir livros e cadernos às crianças e a prática escrita se encontra quase ausente mas, em contrapartida, se encontra há muito tempo perfeitamente generalizado o estatuto de produtor cultural a todos os seus elementos e existem, instituídas, estruturas de transmissão e troca, a oralidade ocupa uma dimensão cultural central.
É neste lugar que surge a adivinha como uma síntese capaz de reter e transmitir sem esforço a experiência útil, propor uma onomatopeia breve para o lugar de uma longa descrição ou sondar uma dimensão que está para lá das aparências.
Afirmando de forma mais aberta (interrogando) e arriscando-se a terminar o seu ciclo no próprio instante em que se conta (ou canta), já que a imaginação, a liberdade e o prazer de algumas pessoas em diálogo destroem adivinhas, partem histórias ao meio e acrescentam ditos com toda a naturalidade quando se reúnem para criar e transmitir a própria cultura”.

A título de esclarecimento, publica-se uma página com adivinhas em crioulo e em português.

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Nota do editor

Último poste da série de 1 DE JULHO DE 2014 Guiné 63/74 - P13352: Notas de leitura (607): Livro de memórias de guerra, de António Ramalho de Almeida, médico pneumologista, do Porto, ex-alf mil, GG, Bissau, 1964/66

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