quinta-feira, 3 de julho de 2014

Guiné 63/74 - P13361: A cidade ou vila que eu mais amei ou odiei, no meu tempo de tropa, antes de ser mobilizado para o CTIG (30); Mafra, a EPI, 1967: "Aquele Convento de Mafra era sem dúvida uma fábrica de oficiais"...(Paulo Raposo, ex-alf mil inf, CCAÇ 2405 / BCAÇ 2852, Mansoa e Dulombi, 1968/70)


Mafra > EPI (Escola Prática de Infantaria) > 2º incorporação de 1967 > Cerimónia do Juramento de Bandeira > Desfile dos novos militares onde se integrava o Paulo Raposo, frente ao Convento de Mafra, "a garande fábrica de oficiais"
Foto ( e legenda) : © Paulo Raposo (2006). Todos os direitos reservados [Edição:_ LG]


1. O meu testemunho (Paulo Raposo, CCAÇ 2405, 
1968/70) - I Parte: Mafra (*)



[ Foto à direita: Paulo Enes Lage Raposo, Alferes Miliciano de Infantaria, com a especialidade de Minas e Armadilhas, CCAÇ 2405, pertencente ao BCAÇ 2852 (Guiné, Zona Leste, Setor L1, Bambadinca, 1968/70); a CCAÇ 2405 passou por Mansoa, sendo depois colocada em  Galomaro e Dulombi; perdeu 17 militares na travessia do Rio Corubal, na sequência da retirada de Madina do Boé, Op Mabecos Bravios, 6 de fevereiro de 1969; o Paulo Raposo foi o organizador do nosso  I Encontro Nacional, em 15 de outubro de 2006, na Quinta da Ameira, Ameira, Montemor-O-Novo.]



Entrei para a E.P.I, no Convento de Mafra,  como soldado cadete, na 2ª incorporação do ano de 1967, mais precisamente no dia 10 de Abril. Escolhi esta incorporação para não apanhar os rigores do inverno dentro daquele grande Convento.

O choque da entrada foi grande, passar de civil a militar não é fácil. Após a entrada, só podiamos sair depois de saber marchar, conhecer as patentes e saber fazer a continência.

Aquela primeira semana parecia que nunca mais acabava.

Na parte de trás do Convento, na grande parada, formava-se o Batalhão de Instrução. O seu comandante era o major Rocha, que passava o tempo a dizer:
– Comigo não há figos.

 Devia estar apanhado pelo clima de África nalguma Comissão de serviço que lá devia ter feito. Encontrei-o mais tarde na Messe de Bissau e logo Ihe perguntei:
–  Então, meu major, não há figos?
–  Comigo não há – respondeu ele de seguida.

O comandante da companhia era o capitão Ferro, com quem nunca mais me cruzei. O adjunto do comandante era o irrequieto  ten Garcia Lopes, a quemn voltei a encontrar na Guiné a comandar uma companhia de Comandos. O nosso instrutor era um rapaz da nossa idade, o alferes Leonel de Carvalho, sempre muito aprumado. Vi-o na televisão já como coronel, a comandar as forças militares que estavam na ponte 25 de Abril, aquando do grande bloqueio de 1994. Coitado, deve ter passado por situações muito desagradáveis.

Uma vez passada a primeira impressão entramos na rotina de um quartel. Há horas para tudo, no fundo também nos educa e auto-disciplina.

Recordo aqui alguns momentos que me custaram bastante.

O primeiro foi a dor que me causou, nos tímpanos, o estampido que a G3 dava quando fazia fogo. Até nos habituarmos, aqueles primeiros momentos passados na carreira de tiro eram dolorosos.

O segundo foi o lançamento de uma granada de mão, também na carreira de tiro. Só olhar para a granada me metia medo, quanto mais agarrá-la, tirar-lhe a cavilha e lancá-la.

Foi o ten Garcia Lopes que me acompanhou. Disse-me:
– Agarra a granada com a mão direita, tira a cavilha de segurança com a esquerda e lança-a; vê onde a granada cai e depois é que te metes no buraco.

Assim foi, mas não foi fácil.

O terceiro foi o campo de obstáculos que havia na Tapada Real, a que chamávamos a Aldeia dos Macacos. Havia dois obstáculos que eram difíceis de vencer. No fundo, o propósito era o de nos libertar dos medos e de nos vencermos a nós próprios.

Um deles era o salto ao galho. Este obstáculo era constituído por uma plataforma que ficava elevada a uns três metres do chão. À frente da plataforma, a uma distância de um ou dois metros, estava um poste que tinha no topo um galho. Tínhamos, portanto, de nos lançarmos para o galho. Se falhássemos, caíamos, agarrados ou não, ao poste.

O outro obstáculo era o pórtico. Era constituído por uma vigas que faziam um quadrado, que tinha uma largura de 40 cm e estava a uma altura do chão de 6 metros. Tínhamos de subir por uma corda, trepar para a viga, fazer o perímetro e descer pela mesma e única via.

Outro era o trabalho de estrada. Uma vez por semana fazíamos este exercício: íamos a correr de Mafra ao João Franco, no Sobreiro, e regressávamos. As subidas eram feitas em passo rápido, o resto do percurso a correr, com as belas botas que nos enchiam os pés de bolhas, mais os 3,9 kg da G3 que levávamos às costas.

O dia da Infantaria é o dia 15 de Agosto. Este dia representa a vitória da Infantaria (rainha de todas as batalhas) no célebre quadrado da Batalha de Aljubarrota, em 1385, realizado por D. Nuno Alvares Pereira. Naquele momento, D. Nuno implorou a protecção de Nossa Senhora. Em seu louvor foi construído o Mosteiro da Batalha.

Durante a batalha, D. Nuno e os soldados passaram tanta sede naqueles dias de Agosto, que, simbolicamente, D. Nuno mandou lá colocar uma bilha com água que está junto a uma pequena capela, para mais ninguém ter sede naquele local.

Esta vitória representa também e acima de tudo a força de vontade popular (Infantaria) contra a aristocracia espanhola (Cavalaria) e, de um certo modo, também contra a aristocracia portuguesa vendida aos espanhóis.

Foi feito um convite aos cadetes para irem até Fátima pelo dia 13 de Agosto. Fomos alguns. Fardados como cadetes, acompanhámos o andor de Nossa Senhora. Terminada a cerimónia fomos todos dormir para casa de um rapaz, nosso colega, que tinha a sua quinta perto de Ourém. Uns dormiram em camas e outros no chão.

Foi uma noite passada cheia de alegria, com o José Megre a animar o serão, a contar as suas histórias das corridas de automóvel, por que tinha passado em Inglaterra. É um excelente contador de histórias.

Tudo se passou. Aquele Convento de Mafra era sem dúvida uma fábrica de Oficiais. (**)

Paulo Raposo
______________

Notas do editor:

(*) Extratos de: Raposo, P. E. L. (1997) - O meu testemunho e visão da guerra de África.[Montemor-o-Novo, Herdade da Ameira]. Documento policopiado. Dezembro de 1997. pp. 4-7. Reproduzido na I Série do blogue, em poste de 12 de abril de 2006.

3 comentários:

Anónimo disse...



Meu camarada Paulo Raposo!

Também eu passei pelo convento de Mafra em Janeiro de 69. Longos corredores, escadas de granito, que subiam nas alturas, grandes refeitórios, camaratas enormes nos últimos pisos. A grande parada atrás do convento, onde todo o batalhão se perfilava, logo pela manhã, antes de começar a instrução na tapada de Mafra.
Os exercícios e obstáculos tal como os descreves. O tiro de G3
na carreira de tiro que nos incomodava. No meu tempo, um camarada que chorava sempre na carreira de tiro, penso que foi dispensado, ou chumbou no curso, porque dizia ele que quando fazia mira parecia-lhe ver um homem no alvo.
Dias frios e húmidos na tapada de Mafra e o sádico do tenente Freixo sempre a massacrar-nos e a obrigar-nos a rebolar pela lama, pelo lodo.
Eu como a maioria dos transmontanos e filhos de lavradores de outras terras distantes, habituados a muita frugalidade e privações, tivemos que suportar esses três longos meses,sempre no convento, entre meditativos, resignados e revoltados, conforme os dias.

Um grande abraço

Francisco Baptista

Fernando Gouveia disse...

Paulo:
Pelos vistos pertencemos ao mesmo pelotão da recruta. Julgo reconhecer-me na foto que juntas. Se assim for, o nosso instrutor era o Alf. Augusto. (confirma, ou não)

Abraço.
Fernando Gouveia

edmaipaul2010 disse...

Caro Paulo
Também entrei em Mafra no 10 de Abril de 1967, já se passaram 47 anos.
O meu pelotão foi o 1, do Alferes Terraquente, mas também recebi instrução do Garcia Lopes e do Leonel Carvalho, e do Cap. Ferro.
Andei por Angola, S. Tome e Príncipe e Moçambique...
Um grande abraço
Eduardo Paulino
(tenho Facebook)