terça-feira, 3 de junho de 2014

Guiné 63/74- P13230: Notas de leitura (597): Excerto do livro de Mário Gaspar, "O Corredor da Morte", cap 19: desmontando minas e armadilhas nos últimos dias de Gadamael, outubro de 1968

I. Reproduz-se aqui, por cortesia do autor, Mário Gaspar,  o capº 19. Os Últimos Dias da Companhia ZORBA, do livro "O Corredor da Morte" (Edição de autor, Lisboa, 2014) [Encomendas através do endereço: mariovitorinogaspar@gmail.com ].



19.  Os Últimos Dias da Companhia ZORBA


Preparei‑­me para tirar umas fotos, tendo sido acompanhado por alguns Furriéis Milicianos. Tirei uma foto a Gadamael Porto. Que diferença!

Quando estávamos prestes a partir para Bissau com a comissão cumprida, recebi ordens do Capitão (eram ordens superiores do setor) para desmontar todas as minas e armadilhas, colocadas pela nossa Companhia. O Alferes de Explosivos de Minas e Armadilhas estava dispensado, o Furriel Miliciano Pestana havia morrido devido ao rebentamento de um engenho explosivo, o que motivou a morte do Soldado Costa e o outro Furriel Miliciano de Explosivos de Minas e Armadilhas tinha sido ferido por uma armadilha. O Comandante da Companhia prometeu‑­me que eu podia dispor do tempo que fosse necessário, que asseguraria a minha viagem para Bissau em avioneta, paga pela CART 1659 visto ir falar sobre o assunto com o Comandante da Companhia que nos renderia se a nossa Companhia fosse a caminho ou já estivesse em Bissau.

Não aceitei, justificando‑­me que aquilo que mais desejava era ir com os meus camaradas, com aquela minha família. Para tal pedi que fossem colocadas à minha disposição militares da CART 1659, para levantar todos os engenhos explosivos, tendo o Comandante aceite este meu pedido.

Comecei por levantar todos os engenhos que estavam montados em zonas mais longínquas. Continuei com os que se encontravam nas redonde­zas de Ganturé, que não haviam sido montados por mim, contando sempre com a ajuda dos croquis e dos militares que haviam assistido à sua montagem no terreno. Lembro‑­me especialmente de umas minas “bailarinas”, colocadas num local que na altura estava coberto de água. Levantei depois algumas (granadas armadilhadas e “bailarinas”), que se encontravam no cruzamento de Ganturé/Gadamael Porto e no caminho para Sangonhá.

Ficaram para o fim 7 granadas armadilhadas que eu havia montado, quando fui colocado em Gadamael Porto, no princípio de julho de 1967, depois de ter sucedido o rebentamento que motivou a morte de 10 nativos (principalmente mulheres e crianças) e 20 feridos, quando foi o batuque em Ganturé. Acompanhou‑­me somente o meu amigo, que tinha medo de saltar o galho na Especialidade da nossa Companhia em Penafiel.

Tive dificuldades em encontrar as armadilhas, e ninguém
O autor, Mário Gaspar
dera que alguma tivesse rebentado. A vegetação
naquelas terras é estranha, e aquilo que é um simples arbusto, transforma‑­se rapidamente numa árvore.

Encontrei as ditas granadas armadilhadas, mas cobertas por calcário a grande parte delas. Pedi ao soldado que me acompanhava que fosse buscar detonadores pirotécnicos, cordão lento e adaptadores e que não se esque­cesse do alicate estrangulador. Tinha que ser tudo feito conforme mandam as normas, visto considerar que seria a minha derradeira missão antes de terminar a comissão.

Não demorou, e depois de encostar a G3 a uma árvore, relativamente longe da zona das armadilhas, aproximei‑­me do local onde estavam implan­tadas as mesmas. Já sabia qual a ordem de desmontagem.

Segurei entre os dedos um clips, talvez fosse necessária a sua utili­zação, embora pensasse ser pouco viável que necessitasse dele. Coloquei a primeira em segurança, a segunda e a terceira. Parei para descansar, depois de ir junto à minha arma, onde se encontrava também o Soldado, coloquei as granadas completamente inofensivas, juntamente com os fios de tropeçar.

Continuei depois, deixando para trás a mais calcificada.

Levantei a quarta, a quinta e a sexta, levando também os fios de tro­peçar de arame, colocando tudo junto das três primeiras. Só faltava uma.

Foi então que segurei num detonador e num pedaço grande de cordão lento (este arde a uma velocidade de um centímetro por segundo).

Fiz o estrangulamento, depois de colocada a ponta do cordão no ori­fício do detonador, apertei com o alicate, execução feita na cintura do lado direito do meu corpo, para evitar que se o detonador rebentasse não atingisse a cara, principalmente os olhos. Coloquei ambas as peças no buraco do adaptador, utilizando a rosca, para ficar bem preso. Ficou um único objeto. Preparei‑­me então para rebentar a última granada armadilhada.

Fiquei então preso pela minha pulseira de prata num arbusto, quando pretendia dirigir‑­me ao local ainda longe onde se encontrava a granada armadilhada.

Dei um esticão e continuava prisioneiro da pulseira que tinha o meu nome: Mário Gaspar e no lado oposto o grupo sanguíneo. Voltei a puxar, com mais força. Ouviu‑­se um rebentamento. Uma mão havia‑­me segurado.
– São eles! Estão a levantar as armadilhas e devem ter morrido! – Ouviu‑­se, quase nitidamente do interior do aquartelamento de Gadamael.

O Soldado olhava‑­me espantado, apanhando do chão tudo aquilo que lhe havia pedido para desmontar as armadilhas. Eu estava com o detonador estrangulado e com o alicate na mão, parece que sorrindo. Não era hábito meu, desde os rebentamentos dos bagabagas em Ganturé, fazer o estrangu­lamento senão com os dentes.

A pulseira, depois de ser procurada minuciosamente por todos, não chegou a aparecer. Comprei outra igual mais tarde em Lisboa na Ourivesaria Correia, na Rua do Ouro.

Dirigimo‑­nos para a porta de armas. Parece que todos os Zorbas vinham na nossa direção. Foi uma alegria. Perguntou um camarada de armas, depois de nos agarrarem e colocarem‑­nos às cavalitas:
– Onde querem que os deixe?
– No cais, dentro de água – disse depois de entregar o tabaco e o isqueiro a um deles. E fomos ao banho. Levaram‑­nos para o cais e lançaram‑­nos para o rio, todos vestidos (embora só de calções e chinelos). Que rico banho! E alegria estampada no rosto de todos!

Fui tomar banho – que duche! – e vesti‑­me, com divisas e tudo.

[Foto à esquerda: "Eu em Gadamael Porto nos últimos dias de mato]



Farda a rigor, e iniciei uma visita por Gadamael Porto. Já com melhorias signifi­cativas e um pouco dignas.

Passados dias embarcámos em Gadamael Porto, depois da Companhia que nos rendeu chegar, rumo a Bissau.

Eu afinal acabei por seguir com os meus camaradas. Pouco me lembro da viagem.
Parece mais que o regresso não existiu, e que eu fiquei lá nas matas e nas bolanhas da Guiné.

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Nota do editor:

Útimo poste da série > 2 de junho de 2014 > Guiné 63/74 - P13225: Notas de leitura (596): "História - A Guiné e as ilhas de Cabo Verde", edição do PAIGC com o patrocínio da UNESCO (Mário Beja Santos)

2 comentários:

Luís Graça disse...

Imagino, Mário, como esse banho te soube!... Se calhar foi o melhor banho da tua vida!...

Tenho um enorme respeito pelo trabalho dos especialistas em minas e armadilhas. Mais daqueles que as desmontam do que aqueles que as montam. Toda a guerra é "suja", mas as "minas", meu Deus!, são talvez a arma mais suja que se usa na guerra... Pelo menos, na guerra que conhecemos...

Percebo agora por que é que o Mário Gaspar foi também um dos melhores lapidadores de diamantes do mundo... E porque é que esteve na criação e na direção da associação Apoiar...

Até Monte Real, camarada!

Anónimo disse...

Amigo Gaspar:
Acabo de ler a descrição sobre as minas e armadilhas que desativaste e não resisto em deixar aqui uma réplica.
A minha Companhia também teve de desativar os engenhos que tinha montado. A certa altura os especialistas vieram dizer-me que já estava tudo resolvido, mas a montante do Aquartelamento, no primeiro sítio, onde era possível passar para a outra margem, não tinha sido possível detetar o que quer que fosse.
Lá fui eu e provoquei no interior do perímetro provável da instalação das minas A/P vários rebentamentos. Depois, utilizando as crateras para apoiar os pés, distribuí várias cargas que detonei. Utilizando o mesmo método repeti a cena.
No fim, os rebentamentos tinham removido terra e pedras do perímetro crítico. Só não tive direito a banho. Na altura não era permitido tomar banho no rio. Um abraço. - Manuel Vaz