sexta-feira, 9 de maio de 2014

Guiné 63/74 - P13120: Notas de leitura (588): "Julinha", um excerto do próximo livro de Lucinda Aranha dedicado a seu pai Manuel Joaquim, empresário e caçador em Cabo Verde e Guiné (Lucinda Aranha)

1. Mensagem da nossa amiga tertuliana Lucinda Aranha, com data de 22 de Abril de 2014:

Caros «camaradas»,
Agradeço a simpatia com que me receberam. Creio, no entanto, que têm uma espectativa demasiado alta da minha hipotética contribuição.
O meu pai teve 7 filhos, todos eles nascidos na Praia, excepto a sexta nascida em Bolama e eu que vim a nascer em Portugal. Viveu na Praia entre 1929 e 43 e desde essa data até 1972 na Guiné portuguesa, vindo à metrópole para junto da família, que residia em Portugal desde 1946, na época das chuvas.
Assim, nem eu nem os meus irmãos estudámos em África.

Como o Carlos calculou, fui professora, leccionando História no ensino secundário.
As estórias sobre África que conto no Reino das Orelhas não foram vivenciadas por mim mas são recordações dos meus pais, da minha ama Sampadjuda e dos amigos cabo-verdianos e guineenses que enxameavam a nossa casa de Lisboa.
O meu pai praticava uma política de casa aberta aos amigos. Por lá passavam administradores, chefes de posto, comerciantes e as suas famílias, alguns deles chegaram mesmo a ser residentes temporários. 

Envio-lhes um excerto do livro que estou a escrever sobre Manuel Joaquim onde a sua mulher discreteia sobre essas «invasões» e que, penso, lhes permitirá perceberem melhor as minhas relações com a Guiné.

O Carlos pediu-me fotografias. Já lhe enviei 4 no anexo do mail Apelo.
Agradecia, pela importância de que se revestem para mim, que as publicasse.

Os meus agradecimentos,
Lucinda Aranha

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Manuel Joaquim dos Prazeres, empresário e caçador, que conhecia a Guiné como poucos

Foto: © Lucinda Aranha (2014). Todos os direitos reservados.


"JULINHA"

A Guiné era outra loiça. A sua casa estava sempre cheia, de estadia ou simples visita, dessa gente mas a maior parte dela não lhe deixava saudades. Uns atrevidos, abusadores que chegavam a telefonar-lhe, perguntando: É da Pensão da avenida de Roma? Havia excepções. A Chica, da idade da sua mais nova, que durante anos foi ficando lá por casa, criada como filha, vinda para se tratar de uma poliomielite e que parecia ter bicho carapinteiro não parando descansada, acrescentando à doença uma perna partida que teve artes de se atirar de uma varanda. Uma preocupação com os pais ausentes na Guiné e ela a entrar e a sair a toda a hora do Hospital do Ultramar. A Maria Domingas e os pequenos, a Maria Garcia com a Luisita costumavam passar pequenas temporadas em sua casa. Todos amigos ligados ao funcionalismo da Guiné. O compadre Esteves que adorava a cachupa e o pudim de pão da Maria, de estalo, trazendo a reboque a Constança, o Fialho, procurador dos dois compadres, o filho com a mulher dada à poesia e muito da intimidade da Tina e as filhas, todas impecáveis, e os respectivos maridos eram visitas muito do seu agrado.

Não lhe falassem daqueles dois horríveis casais, os Pascoais e o Urso Pardo e a Bela Adormecida, alcunhas dadas pelas filhas. Os dois últimos de arcaboiços de mais de cem quilos, ela com uma cabeleira negra de azeviche e escorrida, a bater-lhe pelas ancas e que cofiava languidamente, uma Ursulina do Brejo como também diziam as miúdas, lidas no Pato Donald e no Mickey. Gente detestável e mal formada que o Nequinhas lhe enfiava pela casa dentro com o argumento de que lhes devia retribuição da hospitalidade recebida em terras africanas, tudo imaginações que todos sabiam que recusava dormir debaixo de tecto na Guiné, salvo quando em Bissau e aí só aceitava o abrigo do compadre. As visitas da Maria Virgínia e família faziam as delícias das filhas com as suas estórias picarescas. Era casada com um administrador, por sinal bastante mulherengo. Ela morria de ciúmes do marido. Na Guiné houvera aquela escandaleira de se vestir de homem para espiar os passos do marido. Toda a Bissau, maldosamente, a murmurar nos seus preparos. Cá para mim, pensava muitas vezes, nada como o calor para empolar os pequenos percalços de cada um. Agiganta tudo a uma escala que Deus me livre. As filhas adoravam ouvi-la, desbocada, xingando o marido que não se lhe dava nada de arriar a jiga onde quer que estivesse. Então não fora que em sua casa, onde tinham sido convidados para almoçar, a Maria Virgínia, desvairada de ciúmes, mal levantada da mesa, larga os amigos, o marido, os filhos, desconchava e desanda porta fora, atirando em resposta ao atónito marido que queria saber o motivo da saída intempestiva: Vou à baixa levar na caixa! Se havia boa mulher estava ali, mas os malditos ciúmes faziam-lhe perder a tramontana, esquecendo-se das conveniências. A pena que tinha de a ver em semelhantes destemperos. Virgínia, deixe-se dessas cenas que não a levam a lado nenhum. Só se arrelia inutilmente. Pense nos seus filhos. Olhe o exemplo que dá às crianças com estes destrambelhamentos e discussões constantes, e acrescentava penalizada, desculpe-me a sinceridade com que lhe falo. Bem lho dizia mas qual o quê que se havia mulher teimosa estava ali.

E a Pãozinho? Uma viúva de um funcionário ultramarino de Angola cuja filha, mulher apoderada, era casada com um funcionário da Casa Esteves, um lingrinhas que se escondia, à cautela, por detrás da mulher quando as coisas lhe pareciam negras. A Pãozinho assim chamada porque muito se temia de que o pãozinho que o marido lhe deixara, a sua pensão de viuvez lhe fosse roubada pelos terroristas, não percebendo ou não querendo perceber, na sua sanha antiterrorista que dependia do estado português. Mal sabia ela que tempos haviam de chegar em que os pensionistas e reformados portugueses seriam vistos pelo governo do seu país como uma excrescência, um cancro que convinha extirpar, fazendo-os morrer o mais rápido possível, e enquanto o genocídio não ocorria, convinha espoliá-los de parte substancial dos descontos obrigatórios de toda uma vida de trabalho em nome da austeridade. As suas estórias encantavam as miúdas, enfim não tanto miúdas, que algumas já andavam na faculdade. Todas se maravilhavam com a estória da mezinha feita por curandeiros angolanos, no maior secretismo, com o pó das unhas de crocodilo que a tornou resistente a um cancro, o que admirou os médicos do IPO, que espantados com a sua de todo inexpectável resistência, lhe pediam para revelar o segredo mas ela, temerosa e obstinada, nunca lhes explicou a alquimia. A Antónia, dada a elucubrações, perguntava-se então e tem-no feito pela vida fora, se não estaria ali a cura para uma doença tão mortífera com foros de uma peste da modernidade.

Calhava passar lá por casa um outro casal, dos conhecimentos anteriores aos tempos de África, cuja presença a Julinha detestava porque era sinónimo de arrelias. O Luís, magriço, empertigado com o rosto emoldurado por uma piaçaba branca no alto do toutiço e a Aida, envaidecida pela sua origem anglófona, uma cara de cavalo direita com se tivesse engolido um varapau. Chegavam e era vê-los, sem qualquer rebuço como se estivessem em casa própria, meterem-se em tudo, arrebanhando o Nequinhas para o escrutínio das despensas. E aí começava o sarilho. Ó Manuel, dizia o famigerado avarento, você é muito desprevenido. Não verifica os mantimentos? A mulher, feita sacristã, ajudava à missa: A Julinha dá muita liberdade à Maria. Tome cautela que ela deve encher a família de queijos, presuntos, paios, chouriços que aquilo é terra de fome, o Manuel bem sabe. O Manuel pouco se importava mas ia dizendo: Sim, sim, a Julinha sabe bem o que tem em casa. Só dislates, pensava a Julinha, gente pobre mas honrada, honesta, cheia de morabeza e a sua Maria uma empregada como não havia outra, de inteira confiança, mesmo um membro da família que tudo sacrificara por eles. Só que a Maria enchia-se, e com toda a razão, de brios. Els comê, els bébi e mí qui ê ladron, repetia furibunda. Bem tinha de a mandar calar mas custava-lhe que a razão estava do lado dela. Uma vida que a enfermidade do marido fizera terminar. Afinal eram poucos os amigos, o Esteves e família, os Vicentes, o Raul, o Zeca que os outros, os que a vida não fora afastando ou não matara entretanto, todos debandaram.

Lucinda Aranha
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Nota do editor

Vd. postes de:

15 DE ABRIL DE 2014 > Guiné 63/74 - P12991: Tabanca Grande (433): Lucinda Aranha, filha de Manuel Joaquim dos Prazeres que viveu em Cabo Verde e na Guiné entre os anos 30 e 1972, e que era empresário de cinema ambulante
e
23 DE ABRIL DE 2014 > Guiné 63/74 - P13022: Em busca de... (241): Fotos e histórias do cinema ao ar livre e do empresário Manuel Joaquim dos Prazeres, que deambulou pelo território entre 1943 e 1972 (Lucinda Aranha, filha e escritora)

Último poste da série de 9 DE MAIO DE 2014 > Guiné 63/74 - P13119: Notas de leitura (587): "Um Sorriso para a Democracia na Guiné-Bissau", por Onofre dos Santos (Mário Beja Santos)

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