segunda-feira, 14 de abril de 2014

Guiné 63/74 - P12985: 10º aniversário do nosso blogue (8): O porco, animal sagrado, para o povo mandinga... Uma conversa com o guia Malan, em 20/3/1967, em Santancoto (Domingos Gonçalves, ex-alf mil, CCAÇ 1546 / BCAÇ 1887, Nova Lamego, Fá Mandinga e Binta, 1966/68)

1. Mensagem de hoje do nosso camarada Domingos Gonçalves:

Data: 14 de Abril de 2014 às 09:45
Assunto: Feliz Páscoa

Braga, 14/04/2014

Com votos de Feliz e Alegre 
Páscoa, cheia, só, de coisas boas, em especial boa  recuperação da saúde, envio um pequeno texto, que poderá ser publicado.

Quanto à idade do Blog, está em plena infância, terá, por isso, ainda um longo caminho a percorrer, antes de atingir a velhice.

Feliz Páscoa.
Domingos Gonçalves



Guiné > Região de Tombali > Mampatá > CART 6250 (1972/74), "Os Unidos de Mamaptá" > "Depois da caçada há que preparar o bicho, tal qual uma matança de porco numa das nossas aldeias"....

Foto (e legenda): © José Manuel Lopes (Josema)  (2008). Todos os direitos reservados.  [Edição de L.G.]


 
2. Guiné, dia 20/03/1967 > O  porco, animal sagrado, para o povo mandinga

por Domingos Gonçalves [ex-Alf Mil da CCAÇ 1546/BCAÇ 1887, Nova Lamego, Fá Mandinga e Binta, 1966/68; foto atual à esquerda]

Às sete horas da manhã saí para Santancoto, onde fiquei emboscado todo o dia.

Preparei a emboscada a cerca de 300 metros do rio, tendo permanecido no local, à espera que o inimigo por lá passasse.

Mas não passou. Quando, a certa altura, saboreava a ração de combate, ofereci conservas de carne ao Malan,  (soube recentemente que já faleceu), um nativo pertencente à milícia, que, regra geral, nos acompanha a servir de guia.

Não aceitou, com receio de que fosse carne de porco.

Perguntei-lhe, então, por que razão os Mandingas não comem carne de porco.  Ele respondeu-me com a seguinte história:

Um dia, já lá vão muitíssimos anos, o povo Mandinga andava perdido no deserto, e morria de sede. O calor era muito, e todo o povo já perdia a esperança de encontrar água. A nação Mandinga ia desaparecer.

Então, o chefe do povo perguntou à galinha onde haveria água que pudesse beber, mas a galinha não o ajudou. Por isso é permitido ao povo comer carne de galinha.

Depois, perguntou a mesma coisa à cabra, mas esta também não lhe indicou onde havia água.

Sucessivamente, o chefe do povo Mandinga repetiu a pergunta à vaca, à ovelha, ao coelho e a muitos outros animais. Mas, nenhum lhe disse onde havia água.

Então, em último lugar, o chefe do povo, já desanimado e a pensar na sua morte, e na morte da sua nação, perguntou ao porco onde havia água. E o porco começou a caminhar... A caminhar... E conduziu o povo até à margem de um rio caudaloso, de aguas frescas e cristalinas.

O povo bebeu daquela água, e não morreu de sede.

É por isso 
 disse-me o Malan , que o povo Mandinga não come a carne de porco. Foi ele quem o salvou de morrer de sede. É por isso que o povo Mandinga ainda existe, e guarda muito respeito pelo porco, como se ele fosse um animal sagrado.

Durante aquela nossa caminhada difícil, de travessia do deserto, foi o porco o nosso maior amigo. Foi ele que salvou da morte pela sede o povo Mandinga. Por isso, nós não matamos o porco, nem comemos a sua carne.

Esta, a explicação que permanece na alma do povo.

Todavia, se fizer a mesma pergunta ao sacerdote muçulmano, cá da terra, ele apenas me dará a seguinte resposta:

– Está escrito. É uma determinação sagrada do nosso livro santo, o Alcorão.
_________________

Nota do editor:

Último poste da série > 14 de abril de  2014 > Guiné 63/74 - P12983: 10º aniversário do nosso blogue (7): "Não fui soldado raso"... Poema de J. L. Mendes Gomes, bravo "Palmeirim de Catió", 1964/66

8 comentários:

Luís Graça disse...


Domingos, é interessante essa explicação "mitológica" na tradição oral mandinga para a interdição da carne de porco... Também uma história semelhante aos meus soldados fulas, que eram islamizados... Mas o "mauro" dá outra explicação teológica...

Veja-se aqui um sítio brasileiro, islâmico:

http://hamzaabdullah357.blogspot.pt/2009/06/carne-de-porco.html

(Reproduzido com a devida vénia)

Junho 25, 2009 > A CARNE DE PORCO


Irmãos esse é um artigo que nós muçulmanos deveríamos e ler, decorar, praticar e ensinar a todos os povos. O sistema de perguntas e respostas facilitará ao leitor uma maior interação com o texto . Que Allah SW tenha piedade de nossas almas e nos conduz à vida eterna e possa oferecer a devida recompensa aos irmãos Sayd Saeed Aktar Rizvi pela confecção desse precioso artigo aos irmãos M. Yussuf M. Adamgy e Muhammad 'Ali pela tradução para o portugues, permitindo-nos um perfeito entendimento do conteúdo exposto.

Pergunta: O que ensina o Islam sobre a carne de porco?

Resposta: O porco é absolutamente impuro, e a sua carne, a gordura, etc., bem como o uso do seu couro ou de quaisquer outras partes, são estritamente proibidas: Allah disse em varias passagens do al-Qur´an sagrado: "São-vos proibido para alimentação: a carne putrefata, o sangue, a carne de porco..." (5ª: 3).

Pergunta: Eu, sendo um Cristão, não tenho dificuldade em comer carne de porco. Muitas vezes me pergunto por que é que ao meu irmão Muçulmano não foi permitido gozar desta saborosa comida, como a nós Cristãos?

Resposta: Esta Pergunta é um tanto espantosa porque, segundo as Escritura essa proibição também foi prescrita aos Cristãos e Judeus.

Pergunta: Onde podemos ler sobre isso ?

Resposta: Bem, vamos ver o que a Bíblia diz acerca da carne de porco:

"O porco que tem o pé córneo e até o casco bifurcado, mas que não rumina, será Impuro para Vós. Não comereis carne de nenhum deles nem tocareis nos seus cadáveres: são impuros para vós." (Levítico, 11: 7-

8). "Não comereis o porco porque tem a unha fendida, mas não rumina; considerá-lo-eis impuro. " (Deuteronômio, 14: 8). O Rev. W. K. Lawther Clarke diz no seu Conciso comentário Bíblico (pub. S.P.C.K.,1952) comentando aquelas passagens: "As leis foram inculcadas e obedecidas porque elas serão incorporadas pelo desejo de Deus" (p. 371) O Dr. E. A. Widmer cita no seu artigo "A carne de porco, o Homem e a Doença" (Good Health, vol. 89, nº1):

"A carne de porco embora seja um dos artigos comuns na dieta, é um dos mais nocivos. Deus não proibiu os Hebreus de comerem carne de porco meramente para mostrar a Sua autoridade, mas, por ser um artigo de comida impróprio para o Homem".

(...)

Henrique Cerqueira e Ni disse...

Eu respeito incondicionalmente qualquer "mitologia"relacionada com os praticantes ou seguidores de qualquer religião.E quanto a religiões fico por aqui.
Agora quanto ao consumo e malefícios ou benefícios das carnes eu por estes tempos ando mesmo confuso,senão vejamos.
Sempre aprendi e fui criado a consumir todo o tipo de carnes sejam elas de caprinos,bovinos galinácios,suínos e até em algumas regiões a carne cavalar.
Hoje em dia o meu médico diz: Evitar as carnes vermelhas,comer só carnes brancas e precisamente na listagem dos diabéticos é permitido comer carne de porco , embora sem gorduras.
Então em que é que ficamos ???
Eu sei que isto não terá muito a haver com os nossos temas da Guiné,mas como no final do comentário do Luís há um paragrafo que diz : "A carne de porco embora seja um dos artigos comuns na dieta, é um dos mais nocivos. Deus não proibiu os Hebreus de comerem carne de porco meramente para mostrar a Sua autoridade, mas, por ser um artigo de comida impróprio para o Homem".Eu achei por bem comentar até porque este paragrafo indicia que "Deus" está mais preocupado com a saúde das pessoas que propriamente com o aspecto religioso.
Malta o meu comentário é sério e respeitoso pois que advogo que : « Presunção e água benta cada qual toma a que quer».
Um abraço.
Henrique Cerqueira

Cherno Balde disse...

Caros amigos,

Como disse o Luis, que e sociologo, a descricao que o Domingos Goncalves reproduz a partir da descricao do seu companheiro de armas, Malam, nao passa de uma mitologia onde se misturam elementos criados ou adaptados de varias origens tambem elas mitologicas ou religiosas.

Atentem na frase final do texto:

"Está escrito. É uma determinação sagrada do nosso livro santo, o Alcorão".

Portanto tratar-se-a de uma proibicao de origem religiosa com raizes na tradicao hebraica, provavelmente do Tora (chamada lei de Moises) mas que, mais tarde, se fundamentaria nos perigos que a carne do porco, (quando mal cozido) representava para a saude humana e que estaria associado ao surgimento de epidemias).

Por norma e tendo em conta o nivel cultural dos povos aos quais se dirigia, o Profeta Mohamed (SAW), proibia de forma radical e sem complacencia o consumo dos produtos ou substancias como o vinho que, de antemao ele sabia ser dificil o auto-controlo ou a sua utilizacao racional por parte de pessoas simples do povo que, com o passar dos tempos se transforma num mito, numa pratica que todos obedecem mas que poucos conseguem explicar a verdadeira origem.

Os povos africanos ao se converteram ao islamismo, tambem adoptam, sem qualquer sentido critic, o mito arabe, transformando o porco num animal sagrado, o que nao corresponde a realidade dos factos.

Com um abraco amigo,

Cherno Balde

Anónimo disse...


Que fotografia! Gente da minha guerra. Não me lembro deste episódio raro. Estaria de férias? E as pessoas, como é bom recordar aqueles rapazes, a (tratar) do bicho como se estivessem em qualquer aldeia de Portugal.E todos com cara de quem está a pensar sobre o bocado que lhe vai calhar em sorte.O primeiro parece-me o Afonso ( o homem que levou com a picareta na cabeça) o segundo de cócoras é o Ramos condutor e o quarto parece-me o Nina. Os outros, recorde-lhes os rostos não os nomes.
Quem souber que diga aqui.
Um abração
carvalho de mampatá

Valdemar Silva disse...

Nunca percebi por que razão não estava vedado às crianças fulas, filhos de muçulmanos, o consumo da carne de porco. Bem nos recordamos todos das filas que a miudagem fazia, com a uma lata qualquer na mão, à espera das nossas sobras do rancho.
Um abraço
Valdemar Queiroz

Luís Graça disse...

Esta como outras questões têm de ser vistas à luz do relativismo cultural e não de uma perspetiva etnocêntrica (o que é bom para mim e para a minha família, tem de ser bom para os outros…).

De um modo geral, temos tendência (portugueses, chineses, fulas, felupes, cristãos, budistas, muçulmanos, animistas, etc.) a ver as coisas, os outros, o mundo, de acordo com o nosso sistema de valores, a nossa "grelha de leitura", a nossa “cultura”, as nossas experiências (limitadss)…

Claro que há valores universais: hoje, por exemplo, é inaceitável a antropofagia (um homem comer outro homem ou partes dele…) mas no nosso passado comum, longínquo, teremos sido canibais, mesmo que oportunisticamente ou por razões rituais (por ex., comer certas partes do corpo dos nossos inimigos para lhes ficar com o poder, as capacidades, a valentia, a força). Há registos antropológicos e arqueológicos da antropofagia, patológica ou ritual, nalgumas sociedades humanas ou grupos: quantos portugueses não terão ido parar ao “grelhador” dos Tupinambás da costa brasileira no séc. XVI ? (Sabe-se que os conquistadores do Novo Mundo, portugueses e espanhóis, através dos jesuítas reprimiram depois, fortemente, a prática do canibalismo de guerra…).
A quesão “por que é que uns comem carne de porco e outros não”, não tem uam fácil resposta… Os tabus alimentares têm de ser vistos de uma perspetiva cultural (mas também ecológica, económica, sanitária, epidemiológica, histórica…) e não apenas como uma simples “prescrição religiosa”, que vem Bíblia ou no Corão. Entre os povos semitas (judeus e árabes, justamente aqueles que deram origem ás 3 grandes religiões monoteístas, o judaísmo, o cristianismo e a o islamismo) este interdito está fortemente enraizado. O porco não é um animal de estimação como o cão ou o gato, está associado, na memória destes povos, a epidemias (tal como o rato que está associado á terrível peste negra, no ocidente,1348-1353, a maior catástrofe demográfica da nossa história).

A religião acaba por “legitimar” estes e outros interditos: o porco, como alimento, provoca provavelmente, num crente muçulmaio, a mesma repulsa física que nós temos, cristãos ou agnósticos, em relação ao cão e ao gato… Se nos disserem que no nosso restaurante favorito afinal “davam-nos gato por lebre”, somos capazes de “vomitar as tripas”… Eu adoro coelho, mas só em casa…No sul, gosta-se de coelho, mas no norte há repulsa em relação ao coelho (até por razões sanitárias: a mixomatose, a doença que ataca os coelhos é repugnante, e era relativamente frequente nas coelheiras; o mesmo se passava, ou passa, como coelho bravo…).
De um modo geral, gosto de (e como) quase tudo,. Desde a lampreia aos “tomates de carneiro” (!), da moreira aos frutos do mar, a começar pelas navalheiras (que, dizem, alimenta-se dos homens dos náufragos)…Como moreira frita (que é cobra do mar) mas já não como (ou ainda não experimentei) cobra nem jacaré…

Na Guiné não apreciva as partidas de mau gosto de alguns dos nossos soldados, metropolitanos, a tentar impingir, na brincadeiras, latas de conserva de carne porco aos seus camaradas fulas, islamizados…
Nisso, eles eram finos, não se deixavam levar. Só comiam as conservas de peixe (sardinha, cavala) das nossas rações, quando a gente no mato lhes oferecia… Como eles eram desarranchgadio, não tinham direito a ração de combate, de resto só pensada para ”tuga”…

Como não comiam a nossa comida; os soldados do recrutamento local que compunham a CCAÇ 12 (1969/71) eram, todos desarranchados, recebendo 24$50 para a sua alimentação… Já, as crianças coitadas, essas comam tudo o que eram as sobras do rancho, desde que os pais ou adultos não estivessem ali por perto para fiscalizar.

Anónimo disse...

Caro Valdemar Silva,

As crianças muçulmanas, fossem elas do grupo fula ou mandinga, eram interditas de frequentar o quartel e de se alimentar da comida preparada para a tropa, pois os mais velhos sabiam que, mesmo que nao fosse carne de porco, muitas vezes, utilizavam a gordura deste animal ou o vinho como ingredientes na sua preparação. Se isto não corresponde a verdade, vocês saberão dizer.

No decurso da guerra colonial e por regra, nenhuma criança estava autorizada a levar esta comida "suspeita" para casa, mas como sempre acontece, a curiosidade e a irreverência que carracterizam, normalmente, qualquer criança do mundo não compadece com tabus ou proibições formais de caris social ou religioso de que não percebe ou nao quer partilhar num dado momento.

E como se costuma dizer: “ a fruta proibida não é a mais saborosa?”.

Também, convém dizer que, como não há regra sem excepção, mesmo aos muçulmanos está aberta a possibilidade de comer a carne de porco, excepcionalmente, em situações de fome extremas que possam conduzir a morte.

Lembro-me que os mais velhos da minha aldeia só aceitavam a Coca-cola ou as latas de sardinha aos quais eles podiam identificar e ter a certeza de que não eram ilicitas face as normas da sua religião.

Dito isto, nao quero generalizar e afirmar que nao haveria desvios a esta regra nao escrita mas que, em principio, os muculmanos deveriam seguir e fazer respeitar.

Um abraco,

Cherno

Rogerio Cardoso disse...

Eu também ouvi da boca de um mandinga a mesma explicação, do porco indicando a água tão preciosa naquela altura.
Também me lembro de me terem dito, por outro mandinga, que o porco era precioso na tabanca, limpava tudo ou por outra comia tudo o que estava no chão, e de facto condizia com o que viamos. Seria verdade ?