sexta-feira, 21 de março de 2014

Guiné 63/74 - P12874: Memórias da CCAÇ 2616 (Buba, 1970/71) (Francisco Baptista) (4): O respeito pela morte

1. Mensagem do nosso camarada Francisco Baptista, ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 2616/BCAÇ 2892 (Buba, 1970/71) e CART 2732 (Mansabá, 1971/72), com data de 13 de Março de 2014:


Memórias da CCAÇ 2616

4 - O RESPEITO PELA MORTE

O último semestre da CCaç 2616, em Buba, foi um tempo malfadado. Todos os tipos de azares e desgraças, aconteceram. Além dos habituais ataques de armas pesadas ao aquartelamento, que dado os abrigos e valas existentes, não representavam grande perigo, houve toda a sorte de acontecimentos funestos. A Companhia sofreu com tudo isso quatro mortos e cerca de 20 feridos, alguns graves.

Em abono da verdade um morto e muitos feridos pertenciam a um Pelotão doutra Companhia do Comando de Aldeia Formosa que estava a reforçar a nossa. Este acidente foi provocado por uma granada de lança-granadas-foguete que depois de se lhe retirar a segurança para a introduzir na arma, com alguma inclinação a um metro e pouco do chão podia explodir. Foi isso que aconteceu junto à arrecadação do material provocando a morte imediata dum soldado e ferimentos, alguns muito graves, em cerca de quinze outros camaradas. Essa granada, penso que fabricada no Braço de Prata, teve poucos meses de utilização pois terá provocado outros acidentes noutros quartéis.

Houve de tudo, desde minas anti-pessoais e anti-carro a reencontros com a guerrilha no mato a três acidentes graves com diferentes tipos de granadas.
Este rol de desgraças penso que começou quando o Albano morreu e dois amigos dele ficaram gravemente feridos com a explosão de uma granada de mão.
Deste acidente penso que terá havido duas versões pelo que me abstenho de contar qualquer delas. Foi um acidente infeliz como houve tantos na Guiné.

Muitas armas e material explosivo, por vezes pouco seguro, deficiente instrução militar. Meses de relativo relaxe em que parecia que a guerra já tinha acabado, alternados com dias agitados por disparos e rebentamentos. Meses dum sol tropical escaldante alternados com meses de aguaceiros sem fim. A maior parte dos camaradas confinados durante quase dois anos a viver no aquartelamento, sem possibilidade de poderem gozar férias. Tudo isto criava condições propícias a todo o tipo de acidentes.

O Albano era pescador de Setúbal tal como os outros dois camaradas. Era discreto, diligente, trabalhador, popular entre todos os militares do quartel. Era um tipo de homem capaz de se relacionar com todos os outros, acima ou abaixo da sua escala hierárquica ou social, sem fazer concessões a ninguém. Só homens superiores conseguem ter este comportamento, porque para lá dos seus conhecimentos literários, técnicos ou artísticos, conseguem ter a visão correta da miséria e da grandeza dos seus semelhantes.

Tendo a idade da maioria de todos nós revelava já ser um homem mais maduro. A isso não seria alheio o facto de já ser casado e ter duas filhas e como tal ter tido cedo responsabilidades que obrigam um homem a crescer.

Lembro-me do seu corpo estar depositado na pequena capela do quartel a aguardar transporte para Bissau. Penso nisso, no choque que a sua morte provocou em todos e apesar disso na solidão de morte do seu corpo, sozinho na capela, abandonado por todos. Olho para o monitor do computador e parece que me revejo a passar próximo da capela, que ficava ao lado da estrada que levava ao cais, em frente à messe de oficiais, a pensar que o meu comportamento e o dos outros não estava a ser correcto em relação o Albano.

Vinha-me à memória a morte dos meus avós e do meu padrinho, velados em casa sempre com tanta gente à sua volta, toda a aldeia, parentes e amigos das terras próximas a entrar e a sair para nos cumprimentar e rezar pelos morto. Lembrava-me principalmente do meu avô materno Francisco, um homem calmo, meigo, amigo de tratar da horta, e de ir à "venda" beber um copo com os amigos. Para mim foi o melhor homem que alguma vez conheci e sempre ouvi os maiores elogios acerca dele, bom homem e um lavrador dos melhores.

Assisti à sua morte, recordo tudo, desde o quarto em que estava deitado, às rezas antigas, que não conhecia, que a minha avó paterna fez. Recordo também que quando expirou, a minha avó mandou vir um pão (dos grandes pães que a minha mãe cozia) e foi partido em duas partes para dar a dois pobres. Depois do funeral a minha mãe mandou dar um quartilho de azeite a todas pessoas da aldeia que dele precisassem. Não sei ou já esqueci qual o significado daquele pão.

Lembro-me dessas noites longas de velório com a minha mãe, tias, primas e outras mulheres sentadas em redor da urna sempre a rezar terços. Os homens demoravam-se pouco, saiam e depois ficavam na rua a falar das colheitas, dos animais, enfim das vidas em geral.

Na morte do camarada Albano, em Buba, faltou o amor e compaixão das mulheres para dar sentido e dignidade à despedida.
Éramos homens e jovens, não dávamos valor às cerimonias e rituais que existem e sempre existiram em todos os tipos de sociedades e têm um papel importante para repor a paz e a harmonia entre os vivos e os mortos.

As mulheres conhecem todos esses mistérios, sabem falar com os mortos e não têm pudor em chorar e em manifestar as suas crenças e a sua fé. Como dizia o poeta Louis Aragon, a mulher é o futuro homem. Eu diria que ela é o princípio e o fim do homem pois é ela que lhe dá a vida e que no final o entrega e recomenda aos deuses.

Em Buba não tínhamos padre e não me recordo de alguém que o substituísse com uma mensagem de despedida que reunisse todos os militares do quartel ou pelo menos a Companhia. Sei lá, esse ou outro gesto, como toda a Companhia formada em silêncio em frente à capela onde estava o corpo.

Do que recordo, e aceito o contraditório de alguém que tenha memórias diferentes, os corpos dos outros camaradas tiveram o mesmo triste acompanhamento.

Um abraço a todos os camaradas
Francisco Baptista
____________

Nota do editor

Último poste da série de 27 DE DEZEMBRO DE 2013 > Guiné 63/74 - P12513: Memórias da CCAÇ 2616 (Buba, 1970/71) (Francisco Baptista) (3): Ataques com armas pesadas ao quartel

3 comentários:

Joaquim Luís Fernandes disse...


Amigo e Camarada Francisco

É significativo o teu depoimento,a tua abordagem de um assunto que não é fácil, que por vezes vemos tratado como assunto "tabu", de que não se fala, porque incomóda, ou então, é ironizado para o anedótico ou o absurdo.

No entanto, como referes, perante a morte, é comum entre as sociedades humanas de todos os tempos e lugares, as manifestações de amor e compaixão. E que faltaram em Buba, na morte do teu camarada Albano.

Foi a falta de mulheres ou a ausência do amor? Os presentes estavam empedernidos e embrutecidos pela guerra.

Nós homens, por vezes somos coagidos socialmente, a mostrar que temos um coração de pedra, insencível, que não ama. Como se o amor e a sua manifestação, nos diminuisse.

As mulheres (ainda) são mais autênticas no amor. Como tu dizes "não têm pudor em chorar e manifestar as suas crenças e a sua fé". Amam e não têm medo de manifestar o seu amor, digo eu.

Espero pois, que os homens se convertam a possuir um coração de carne, humano e sensível.Que homens e mulheres se unam no amor, que nos redima de tantos erros do passado e do presente, construindo um futuro melhor.

Joaquim Luís Fernandes disse...


Amigo e Camarada Francisco

É significativo o teu depoimento,a tua abordagem de um assunto que não é fácil, que por vezes vemos tratado como assunto "tabu", de que não se fala, porque incomóda, ou então, é ironizado para o anedótico ou o absurdo.

No entanto, como referes, perante a morte, é comum entre as sociedades humanas de todos os tempos e lugares, as manifestações de amor e compaixão. E que faltaram em Buba, na morte do teu camarada Albano.

Foi a falta de mulheres ou a ausência do amor? Os presentes estavam empedernidos e embrutecidos pela guerra.

Nós homens, por vezes somos coagidos socialmente, a mostrar que temos um coração de pedra, insencível, que não ama. Como se o amor e a sua manifestação, nos diminuisse.

As mulheres (ainda) são mais autênticas no amor. Como tu dizes "não têm pudor em chorar e manifestar as suas crenças e a sua fé". Amam e não têm medo de manifestar o seu amor, digo eu.

Espero pois, que os homens se convertam a possuir um coração de carne, humano e sensível.Que homens e mulheres se unam no amor, que nos redima de tantos erros do passado e do presente, construindo um futuro melhor.

Fernando Oliveira disse...

Um Grande Bem Haja a todos os que participam neste Blogue, principalmente ao seu Fundador "Luis Graça".
Não sou homem de Polémicas (?), fujo delas o quanto posso, até não poder mais. Como já diz um ditado mais antigo do que eu : Quem conta um Conto, aumenta (ou diminui)um Ponto, mas isso é normal. Portanto, julgo que tenho o direito de contestar ou tentar esclarecer alguns pontos obscuros no que diz respeito a Buba, no período que vai de 25/08/1969 a Junho 1971. O Camarada Francisco Baptista, peca por omissão ou desconhecimento ou, quem sabe, por insuficiência de dados. O episódio do acidente com o lança granadas que praticamente dizimou o Pelotão que se preparava para sair em missão de patrulhamento, não pode ter acontecido no último semestre da comissão da Companhia Caçadores 2616, dado que o Pelotão de Morteiros 2138 ao qual eu pertenci, já se encontrava no terreno há 3 meses aquando da chegada da CC.2616, por conseguinte, como o citado acidente aconteceu muito antes da nossa saída de Buba , jamais poderia ter acontecido no ultimo semestre da comissão da CC.2616. Quanto ao Acidente que vitimou um militar cujo o nome não me ocorre no momento, mas digamos que tenha sido Albano e, que estejamos a falar do mesmo acidente (não o da Granada RPG), com uma granada defensiva que estava a ser utilizada por um grupo de três militares da citada Companhia, num bote de fibra de vidro pertencente aos Fuzileiros, para pesca no Rio Grande de Buba. Essa pescaria destrutiva, foi autorizada pelo Capitão de Companhia, cujo o nome nunca soube, porque nunca me interessou, dada a sua antipatia e personalidade pouco ortodoxa. Pois bem, dessa pescaria cujo produto seria apresentado como refeição para a Maralha, resultou pelo menos um morto cujo nome não posso afirmar, dois feridos, entre os quais um que era conhecido pela alcunha de "Setubal" e que até há bem pouco tempo era vivo, embora bastante diminuído fisicamente. Bom... voltando á Vaca Fria, não quero celeuma com o Ex-Camarada Francisco Baptista, mas não posso deixar de dizer que as datas não batem certo. Estaria o Ex-Camarada em Bissau e, agora reporta algo do qual não participou?
Até ao fim da minha Comissão, conheci episódios passados na CC. 2616 onde houveram vitimas mortais e, neles consta, o Furriel Sapador "Ferreira" ao desmontar uma mina anti-carro, o acidente junto á arrecadação de material de guerra e a última que acabei de expor, na pescaria destrutiva que favorecia os responsáveis pelo Rancho.