terça-feira, 18 de fevereiro de 2014

Guiné 63/74 - P12735: Manuscrito(s) (Luís Graça) (21): Que fazes aqui, Amílcar, / que já te mataram, Cabral ? / E de que traições podias falar, / se fosses vivo, tu, Osvaldo ? / E tu, Vieira ?





Guiné > Bissau > Quartel-General > O velho forte da Amura > Entrada principal > Foto nº 17/199 do álbum Guiné, disponível na página do Facebook, do João Martins.


Foto (e legenda): © João José Alves Martins (2012) / Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné. Todos os direitos reservados. (Edição: L.G.) 



A velha Amura dos tugas
por Luís Graça


A velha Amura dos tugas,
agora cercada de guinéus
por todos os lados.
Ilha de areias movediças
num mar de belugas,
foi rampa de lançamento de lançados.
Dizem que aqui nasceu a Bissau colonial.
De linhas tortas,
as ruas direitas da capital.

Saúdo os ilhéus,
figuras de museu de cera,
de faces mortiças:
à frente, o capitão-diabo,
o bigode farfalhudo,
espadeirando a torto e a eito,
de peito feito
ao fogo do canhangulo.
Mais os seus soldadinhos de chumbo,
que eram uma ternura:
em linha, 

em formatura,
nas suas fardas multicolores, coloniais,
do tempo dos Cabrais.
Davam vivas à Pátria e à Rainha.
Aqui como em toda a parte,
onde o Império tinha engenho e arte.

Ah!, a velha Amura, 

inútil baluarte,
com os seus canhões
de bronze, incandescente...
Casamata, prisão,
dormitório, agora panteão,
nacional,
coberto de poilões.

Eram onze os soldadinhos,
como no jogo de matraquilhos.
E combatentes da liberdade da Pátria,
contei-os pelos dedos da mão.

Que fazes aqui, Amílcar,
que já te mataram, Cabral ?
E de que traições podias falar,
se fosses vivo, tu, Osvaldo ?
E tu, Vieira ?

E quanto a ti, Titina,
que incendiavas paixões
pelo Óio ?
Que fazes também aqui,
jazida entre os poilões,
debruados a branco,
da triste Amura ?
Cuidado, Silá,
que os tugas montaram-te cilada
na cambança do Rio Farim.

Vejo mais à frente o Domingos,
o valente Ramos,
herói de banda desenhada,
que irá morrer de morte matada,
em Madina do Boé.

E tu, Rui, e tu Demba, e tu  Djassi,
de quem eu não sei nada,
a não ser que morreste em 1964,
depois do tenebroso Congresso de Cassacá ?
Sei ainda que tens nome de rua,
Rua Djassi,
suja e esburacada,
na capital da tua terra,

ao pé do estádio Lino Correia,
outrora Sarmento Rodrigues,
transmontano de Freixo Espada à Cinta...

E tu, camponês, balanta, 
Pansau Na Isna,
herói do Como,
guerrilheiro-cowboy,
enfrentando as naves loucas dos tugas
com a tua Kalash de contrafacção ?

Na Amura fez-se história,
diz-me o guia.
Ou a história dos vencedores
que contam a história dos vencidos.

PS – Cuidado João, 

cuidado, Bernardo,
cuidado Vieira. 
Há quem te espere, 'Nino',
no Panteão Nacional.

Bissau, 7/3/2008.


____________

Nota do editor:


Último poste de 14 de fevereiro de  2014 > Guiné 63/74 - P12716: Manuscrito(s) (Luís Graça) (20): Gostei de voltar a Tavira (Parte IV): E de ter tempo para (re)descobrir a beleza e o brilho fascinantes do seu património edificado...

3 comentários:

Hélder Valério disse...

Camaradas

Presumo que esta evocação vem a propósito do assassinato de Amílcar Cabral, que fez anos ocorreu no passado dia 20 de Janeiro.

Um assassinato é sempre um acto condenável. As suas consequências vão, quase sempre, muito para além do momento do acto em si. Ainda hoje se especula muito sobre como poderiam ter sido as coisas se tal não tivesse acontecido. Igualmente se especula sobre quem mandou cometer o assassinato e porquê e para quê.

O interessante deste poema, datado de 2008, é a sua 'premonição' relativamente a outros personagens, designadamente a 'Nino' Vieira.

Abraços
Hélder S.

Anónimo disse...

Olá Camaradas
Faço minhas as palavras do "escritor" anterior.
Celebrar a morte do Amílcar parece-me desajustado. Passados estes anos. é difícil ter uma opinião e uma opinião clara mais ainda.
Sendo um "inimigo" ou, no mínimo, um adversário parece-me desajustado um artigo laudatório.

Um Ab.
António J. P. Costa

Luís Graça disse...

Tó Zé:

Laudatório, o poema ? Que eu saiba, a ironia nunca teve essa função... No dia 7/3/2008, eu entrei pela primeira vez na Amura, agora tranformada em Panteão Nacional... Estranhei (e ironizei sobre) a promiscuidade entre heróis e vilões...

Mas não é a um estrangeiro que cabe fazer esssa distinção sobre "quem é quem"... Temos o mesmo problema na nossa história e no nosso panetão...

Osvaldo Vieira, por exemplo, não está isento de suspeitas de ter estado, tal como esteve o Mamadu Indjai (fuzilado) e outros, implicado no assassinato de Amílcar Cabral... Para além do 'Nino' Vieira, claro... (que eu também conheci pessoalmente nessa semana)...

Mas o poema é um puzzle, um jogo de palavras, carregadas de ironia... Os ossos (?) de Amílcar Cabral estão misturados com os de outros "combatentes da liberdade da Pátria"... E outros ainda, muito provavelmente nenm sequer lá estão....A Titina, por exemplo... Enquanto o Domingos Ramos, esse, podia ter morrido, do lado outro da barricada, se não tivesse sido vítima, ao que parece, de um insulto racista de um oficial do exército português quando era 1º cabo miliciano, do mesmo turno do nosso camarada Mário Dias (hoje sargento comando reformado, maestro e compositor musical)...

Quer o poeta dizer, com os seus trocadilhos, que a história não é linear, nem se pinta a preto e branco... Mas os poetas não têm que ter razão, devem é suscitar emoção...

Um alfabravo. Luis