sexta-feira, 10 de janeiro de 2014

Guiné 63/74 - P12566: História da CCAÇ 2679 (66): Amizade que ficou (Cândido Morais)

1. Mais um episódio para a série da História da CCAÇ 2679, desta vez a cargo do nosso camarada Cândido Morais (ex-Fur Mil da CCAÇ 2679, Bajocunda, 1970/71) que nos fala de amizade, aquela que nos marca indelevelmente:


HISTÓRIA DA CCAÇ 2679

66 - Amizade que ficou 
(a veracidade dos factos aqui relatados, não implica realidade nos nomes dos intervenientes…)

Nos quintais da minha aldeia há sempre alguma coisa para fazer, e o meu não escapa a essa certeza. Se quisermos, podemos dispor de permanente entretenimento, que vai das tarefas mais rotineiras às mais pesadas ou mais complexas. Mas há também aqueles momentos em que decidimos intimamente ultrapassar as preocupações pelos trabalhos que nunca encontrarão o seu termo, aproveitando as condições de que dispomos, para usufruirmos alguns momentos de repouso e de libertação, apreciando as dádivas de Deus que tantas vezes nos passam despercebidas e temos ali sempre à mão.

Foi num desses momentos, numa amena tarde primaveril, que - estendido ao sol de um leve calor reflectido pelo empedrado do chão - espraiei o pensamento pelos anos vividos na Guiné-Bissau ao tempo da guerra colonial, dando comigo a reflectir sobre amizades firmes e indestrutíveis que lá consolidei. Na verdade, essas amizades foram de tal modo fortalecidas pelo tempo e pelas adversidades, que ainda hoje, passados tantos anos, estão declaradamente presentes nas palavras e na emoção dos nossos encontros, como se fosse ontem que nos despedimos no cais da cidade do Funchal.

Nessas cogitações, lembrei-me dum facto passado em pleno destacamento de Copá, que foi o local mais isolado que conheci na ex-colónia - na sua ponta leste -, e que quase penetrava o solo hostil dum dos países vizinhos que davam guarida ao IN.
A quietude do dia, a sensação agradável que sentia sob o sol ameno que me visitava no quintal, deram-me tempo para sentir saudade daqueles tempos difíceis, que não me inibo de abordar em conversas com os amigos, embora com muito pouca frequência. Intimamente, instalou-se em mim a convicção de que não albergo problemas de consciência relativamente à guerra, na qual compareci por imposição da pátria que todos tínhamos na altura, e durante a qual nunca me desviei dos caminhos que tiveram o seu inicio na minha terra natal, bem como das minhas mais profundas convicções sobre a convivência entre os homens, mesmo que sejam elementos activos e contrários duma dura guerra, e senhores de diferentes convicções.

Por vezes, passam-nos ao lado alguns factos da vida real em que fomos intervenientes ou que sucederam próximos. Por isso, penso que é bom que os rememoremos, para melhor entendermos a sua dimensão e os seus possíveis efeitos sobre a nossa própria vida: Os Silvestres do meu pelotão nada tinham a ver um com o outro. Nem parentesco, nem proximidade que se enxergasse nas suas características pessoais. Sempre distingui um do outro, conhecedor que era de cada uma das personalidades, que eles também não disfarçavam. Os únicos pontos que detinham em comum eram o facto de ambos usarem o apelido Silvestre, ambos serem casados (na Madeira, muitas vezes os casamentos ocorriam muito cedo…) e se não incorro em erro, ambos terem já deixado alguma descendência na pérola do Atlântico.

Um dia, descansava eu na espécie de palhota que utilizava para me proteger do sol abrasador em pleno dia - localizada no centro do destacamento -, dedicando quase exclusivamente o pensamento às questões do dia a dia do aquartelamento, por vezes também desviado para o Minho distante onde pairava a minha saudade, ou para problemas menores que se me apresentavam para resolver naquele inóspito local. De dia, raramente éramos atacados no aquartelamento, pois dispúnhamos de boa visibilidade para o exterior e o IN não conseguiria aproximar-se muito sem ser detectado pelos homens destacados nos abrigos e valas exteriores que cercavam completamente a tabanca e as instalações militares que com ela se misturavam. Seriam, por isso mesmo, um alvo fácil, e por isso também preferiam mover-nos ataques nocturnos, durante os quais conseguiam aproximar-se mais do arame farpado que era a nossa primeira resistência no terreno, imediatamente antes das valas que interligavam os vários abrigos entre si, em círculo de razoável dimensão. Na altura, a guarnição do aquartelamento era composta por dois pelotões, sendo um nativo – de homens recrutados no próprio território e que podiam ser de diversas etnias – e, o outro, um dos quatro pelotões da Companhia de Caçadores madeirenses (CCAÇ 2679), neste caso o 1.º pelotão, no qual me encontrava integrado.
O sossego que reinava naquele momento, acabou por ser bruscamente interrompido pelo José António, Cabo do meu pelotão a quem fora confiada a HK, que era natural da ilha de Porto Santo, onde ainda há pouco tempo detinha funções de funcionário camarário. Vinha ofegante, e transmitiu-me apressadamente:
- Meu furriel, venha ali a baixo, que os Silvestres estão engalfinhados! E parece-me que isto não vai acabar bem…

Levantei-me de imediato e parti em direcção ao local onde se desenrolava a contenda, tendo de imediato verificado que já havia bastante população local a assistir, de semblante carregado e aparentando reprovação. Dei imediatamente ordem, em voz alta, para que parassem com a briga, mas verifiquei, um pouco surpreso, que não me prestaram a mínima atenção. E por isso concluí que a coisa estava mesmo azeda e seria necessário tomar uma medida drástica, tanto no sentido de que se apercebessem da minha presença e acabassem com a contenda, como também para que a população se compenetrasse que a tropa tinha uma disciplina a cumprir, mesmo que fosse preciso que alguém de tal se encarregasse. Por isso, avancei sobre ambos – que se encontravam aos tombos pelo chão, agredindo-se mutuamente – e peguei o que na altura estava por cima, segurando-o firmemente pelos sovacos e atirando-o de imediato contra a parede de uma cubata próxima. O segundo levantou-se então e, sem ver sequer quem o separara do seu opositor, correu novamente sobre ele, recomeçando a luta, agora em pé. E foi esse momento que me deu azo a que, dispondo de ambos em posição normal e erecta, os agredisse uma ou duas vezes – não me lembro bem -, “fazendo-lhes ver” que era eu que estava presente e que era necessário que a briga acabasse ali mesmo.

Na verdade, sucedeu aquilo que lhes era exigido. Ambos pararam de se agredir e ambos se quedaram numa posição submissa, que muito me consternou na altura, de tal modo os vi abatidos e conscientes de que tinham participado numa grande asneirada. Não me detive muito tempo por ali e, vendo os ânimos serenados definitivamente, afastei-me aparentando calma e serenidade, mas intimamente envolvido num turbilhão de pensamentos e de interrogações sobre se eu próprio teria procedido da melhor maneira.

Para mim, as decisões que normalmente se seguem a grandes e inesperados acontecimentos, nunca devem ser tomadas a quente. E por isso me dirigi para a palhota, onde voltei a estender-me sobre a esteira de verga, reflectindo agora no incidente em que acabara de participar. “Que diabo, homens casados e com filhos na Madeira, a portarem-se assim”! E eu? Não acabara também por fazer o mesmo? Bem… não foi exactamente a mesma coisa, eu fiz isso apenas para separá-los e para impor a necessária disciplina, coisa que a mim competia nessa altura! Mas não haveria outro modo, sem ser a bater? Talvez houvesse, mas eles não obedeceram doutra forma…”

Foi longa a minha meditação sobre o assunto, que continuei a amadurecer durante a noite, julgando-me apto a reagir na manhã seguinte. E a primeira coisa que fiz foi mandar chamar os soldados Silvestre, a quem fiz questão de receber juntos. Quando os vi entrar – ambos de rosto alterado e demonstrando preocupação -, concluí de imediato que também eles não tinham passado bem a noite. Era sabido que atitudes como aquela, se participadas, poderiam ser alvo de duro castigo, e isso eles não queriam, a poucos meses do final da comissão de serviço. Por isso optei por falar com eles utilizando firmeza na voz mas alguma compreensão no semblante.

- Dá licença, meu furriel?
- Entrem, se fazem favor e fechem a porta.
- O “nosso” furriel mandou chamar?
- Mandei, mandei. Que é que vos parece?
- Pois…

E foi então que eu, com alguma verborreia para não correr o risco de eles me interromperem, lhes fiz ver a gravidade do que tinham feito. Falei-lhes no único inimigo que tínhamos de enfrentar e que se encontrava lá fora, na defesa da imagem da guarnição perante as populações nativas, na necessidade de preservação da harmonia no interior do pelotão, no perigo de um deles se magoar seriamente, nas “notícias” que poderiam ser enviadas para a Madeira pelos seus próprios colegas, nas questões disciplinares ligadas a factos como aquele, mas também no problema que me tinham criado quando me vi obrigado a agredi-los para manter a ordem e a disciplina, a eles, homens casados e já com filhos a crescer…

Conforme ia falando, também os fixava intensamente. E comecei a aperceber-me que os rostos crispados que detinham até ao início da conversa, se iam distendendo quase imperceptivelmente, e o olhar tenso se ia transformando, parecendo dar a entender algum alívio e compreensão pelo que eu ia dizendo, e que eles escutavam atentamente.
Quando acabei de falar, gerou-se um silêncio pesado dentro daquele exíguo espaço fechado, tardando a ser quebrado por um deles, que entendeu dizer-me:
- Meu furriel! É só isso que tem para nos dizer?
- É, Silvestre. É só isso que tenho para vos dizer…
- Pois, meu furriel, nós pensávamos que vínhamos cá para ouvir qual era a “porrada” que íamos apanhar…
- Não Silvestre, não há “porrada” nenhuma. Eu queria é que vocês tivessem mais juízo e não me obrigassem nunca mais a fazer uma figura daquelas!
- Mas, meu furriel, nós os dois já fizemos as pazes ontem, e até viemos juntos para cá. Aquilo foi um bocado de cerveja a mais, e passou logo…
- Pois passou – acrescentei eu – mas o espectáculo toda a gente o viu ou soube dele, e eu não escapei a isso tudo que vocês criaram. E isso não tinha que acontecer!
- O meu furriel dá licença que lhe diga? Pois bateu e bateu muito bem! Nós até vínhamos para cá a dizer que ainda tínhamos levado poucas, depois do sarilho que armamos. E até vamos ser muito mais francos, pois vínhamos também a conversar que, se apanhássemos uma “porrada”, ela seria muito bem merecida! O “nosso” furriel que nos desculpe, mas isto também nunca mais torna a acontecer.

Fiquei sentado por uns instantes, que julgo que foram breves. E avaliei a simplicidade daqueles homens endurecidos por uma vida adversa na Madeira, e depois por longos meses de isolamento no mato da Guiné, por noites sem dormir, e por tantas, tantas saudades que mal caberiam na pequena ilha onde os tínhamos ido buscar, e que não podiam visitar, mesmo no gozo das férias a que tinham direito, pois não dispunham de dinheiro suficiente para a viagem de avião. Intimamente, senti-me ainda pior do que quando decidi chamá-los, e experimentei um estranho aperto na garganta face àquela demonstração de genuína humildade, contendo a possibilidade de qualquer outra palavra que pudesse indiciar um pedido de desculpas que decerto eles não compreenderiam mas eu achava muito natural nesse momento.
Depois, em comedido impulso, dei eu próprio dois passos em frente, torneando a mesa que tinha entre mim e eles, e abracei ambos sem levar em conta a eventual existência de alguma regra militar que me impedisse de o fazer. Foi apenas um curto momento, resultante dum gesto espontâneo e imediatamente correspondido, qual bálsamo salutar e mitigador das asperezas duma guerra crua.

No calor ameno de um sol primaveril que me visitava no quintal, eu trouxe à memória o rosto dos Silvestres do meu pelotão, emergentes daquele grupo de homens rudes e humildes, que nos olhavam directamente nos olhos, e que eram solidariamente firmes como as rochas são dos montes, quando as incidências da guerra aconteciam. Os Silvestres nada tinham a ver um com o outro, a não ser o facto de terem nascido na mesma ilha, e de serem tão bravios quanto ela era há mais de 40 anos. Mas eram os homens do meu pelotão, em quem confiava cegamente e que me alegraram sempre com a sua amizade, presente ainda nestas cogitações - que por vezes alimento - sobre a crueza duma guerra que alguns querem fazer esquecer, mas que foi apenas mais uma, entre tantas que o mundo alimentou.

Nestes curtos momentos em que lhes dedico o meu pensamento, eu sinto por eles a mesma gratidão e a mesma amizade.

(Com esta história verídica, pretendo apenas prestar homenagem aos madeirenses de quem guardo grata memória)

Cândido Morais
____________

Nota do editor

Último poste da série de 14 DE DEZEMBRO DE 2013 > Guiné 63/74 - P12448: História da CCAÇ 2679 (65): Dia da Raça (José Manuel Matos Dinis)

6 comentários:

José Botelho Colaço disse...

O Cândido na sua atitude lembra-me um oficial do quadro permanente que conheci e quando era forçado a usar a disciplina militar para ele primeiro a parte humana o RDM ficava sempre em último lugar e quando era forçado a usar o RDM a seguir usava estratagemas de louvores para anular o castigo. Em conversa pessoal disse a minha vocação não dava para ser tropa, eu errei a minha vocação.
Para o Cândido que não conheço pessoalmente um abraço amigo Colaço.

JD disse...

Pois é Colaço, a maioria de nós éramos militares à força, sugeitos a todas as nimplicações e circunstâncias.
Não me canso de mandar abraços a este amigo, que se desempenhou com garbo, valentia, e muita amizade.
Abraços fraternos
JD

José Botelho Colaço disse...

Zé Dinis uma coisa é: independente da situação a nossa parte interior humana embora oculta está sempre visível.
Veja-se por exemplo o desempenho a atitude tomada a titulo pessoal de Pedro Lauret em Gadamael.

Joaquim Luís Fernandes disse...

Camarada Cândido Morais

Não te conhecia (sou ainda pira) e foi para mim muito gratificante ler este belo texto, que bem diz da nossa língua-pátria, mas acima de tudo, evidência a nobreza do teu carácter, que terás bebido no leite materno ou recebido de herança paterna e que tanto enaltece a lusa-gente.

Parabéns pela tua conduta exemplar. muito obrigado!

- Mas o que mais me tocou,sensibilizou e comoveu,foi o desfeixo deste episódio;
Reavivou os meus sentimentos de dor e compaixão pelos sofrimentos infligidos a tantos jovens durante esses treze anos de guerra, dos quais, os mais sacrificados, foram os da classe das praças.

- Quantos Silvestres, Silvas, Silvérios, Silveiras e de todos os outros apelidos, de Antunes a Vieiras, sofreram no corpo e no espírito, as consequências dessa guerra, continuando a carregar esse peso, ao longo da vida que tiveram ou ainda tenham, sendo os mais sacrificados e menos compensados?!

- Quando é que a Pátria reconhece e assune a dívida que tem para com essa geração(em que nos incluimos) e se propôe honrar e pagar essa dívida?
- Quando deixa de continuar a castigar essa geração? Que mal fizemos?

-Será necessário que uma qualquer troika - de Infantes, Cavaleiros e Artilheiros, ou então, do Exército, da Marinha e da Força Aérea, imponha a Honra como valor da Pátria, faça assumir e pagar essa dívida de gratidão?

Pela Justiça, não nos podemos calar!
Organizados podemos ter força para fazer mudar, o estado de castigo injusto, infligido sobre a nossa generosa geração, que tudo deu e fez para melhorar o nosso País.

Um forte abraço
JLFernandes

Joaquim Luís Fernandes disse...

Camarada Cândido Morais

Não te conhecia (sou ainda pira) e foi para mim muito gratificante ler este belo texto, que bem diz da nossa língua-pátria, mas acima de tudo, evidencia a nobreza do teu carácter, que terás bebido no leite materno ou recebido de herança paterna e que tanto enaltece a lusa-gente.

Parabéns pela tua conduta exemplar. muito obrigado!

- Mas o que mais me tocou,sensibilizou e comoveu,foi o desfecho deste episódio;
Reavivou os meus sentimentos de dor e compaixão pelos sofrimentos infligidos a tantos jovens durante esses treze anos de guerra, dos quais, os mais sacrificados, foram os da classe das praças.

- Quantos Silvestres, Silvas, Silvérios, Silveiras e de todos os outros apelidos, de Antunes a Vieiras, sofreram no corpo e no espírito, as consequências dessa guerra, continuando a carregar esse peso, ao longo da vida que tiveram ou ainda tenham, sendo os mais sacrificados e menos compensados?!

- Quando é que a Pátria reconhece e assume a dívida que tem para com essa geração(em que nos incluimos) e se propôe honrar e pagar essa dívida?
- Quando deixa de continuar a castigar essa geração? Que mal fizemos?

-Será necessário que uma qualquer troika - de Infantes, Cavaleiros e Artilheiros, ou então, do Exército, da Marinha e da Força Aérea, imponha a Honra como valor da Pátria, faça assumir e pagar essa dívida de gratidão?

Pela Justiça, não nos podemos calar!
Organizados podemos ter força para fazer mudar, o estado de castigo injusto, infligido sobre a nossa generosa geração, que tudo deu e fez para melhorar o nosso País.

Um forte abraço
JLFernandes

Hélder Valério disse...

Caro camarada Cândido Morais

Belo naco de prosa.
Fez-te bem esse repouso e esses raios de sol, aí, no teu quintal...

Transportaste os teus pensamentos para "lá longe, onde o Sol castiga mais", como dizia a canção, e o recordaste e nos transmitiste é um tratado.
Nele pode-se ver como na nossa geração as responsabilidades começavam cedo. O sentido delas, dessas responsabilidades, que te pesavam sobre os ombros, tu que tinhas e sentias o dever de cuidar 'dos teus homens', que idade tinhas? 23, 24, 25 anos? Sentes hoje o mesmo sentido de responsabilidade em jovens de 30, 35 anos?

Caro amigo, mesmo levando em conta que, como era uso dizer-se em televisão, "isso agora não interessa nada", sempre te dou a minha opinião que fizeste muito bem, valha isso o que valer.

Abraço
Hélder S.