segunda-feira, 23 de dezembro de 2013

Guiné 63/74 - P12492: Notas de leitura (546): "O Conhecimento Etnológico da Guiné-Bissau. Uma Perspectiva de Género", de Manuela Borges e "Perspectivas para o Estado da Evolução das Representações dos Africanos nas Escritas Portuguesas de Viagem: O Caso da Guiné e Cabo Verde - Séculos XV a XVII", por José da Silva Horta (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 24 de Julho de 2013:

Queridos amigos,
Continua a ser moeda corrente apreciar a investigação científica no período colonial como se fosse possível isolar a experiência colonial portuguesa das demais, no seu tempo.
A investigação científica deu um grande salto no período em que Sarmento Rodrigues foi governador da Guiné, ocorreram missões, estudos e criaram-se infraestruturas que marcaram indelevelmente o saber e os conhecimentos nas terras da Guiné.
Pôr em causa inquéritos etnográficos e trabalhos de etnólogos só porque não tiveram em conta a mulher e as representações do género parece-me pura insensatez ou uma outra forma de fundamentalismo. Foi por isso que vim a terreiro, em função de um caso preciso.

Um abraço do
Mário


Acerca da crítica à antropologia colonial da Guiné

Beja Santos

O Centro de História de Além-Mar, onde estão envolvidas a Universidade dos Açores e Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, publicou em 2011 um importante número dedicado às representações de África e dos africanos. No conjunto dos documentos ali inseridos, cumpre destacar os artigos de que são autores Manuela Borges com o intitulado “O Conhecimento Etnológico da Guiné-Bissau. Uma Perspetiva de Género” e o de José da Silva Horta intitulado “Perspetivas para o Estudo da Evolução das Representações dos Africanos nas Escritas Portuguesas de Viagem: O Caso da ‘Guiné do Cabo Verde’ Séculos XV-XVII”.
Vejamos os termos como a investigadora Manuela Borges trata a antropologia colonial.

Refere que o conhecimento etnológico da mulher e das relações de género estiveram presentes na última era do colonialismo, desde o fim da II Grande Guerra até à independência, mas em termos manifestamente residuais. Vejamos o pano de fundo. O governador Sarmento Rodrigues lançou as bases da Guiné como uma colónia-modelo. No âmbito das suas iniciativas culturais, é de realçar o Boletim Cultural da Guiné Portuguesa (BCGP), 110 números normais e 1 número especial, além de 24 monografias, bem como trabalhos inéditos, entre 1946 e 1973. Para a autora, chegara agora o momento de equacionar a antropologia e a etnografia como grandes vetores da política colonial, tratava-se de uma nova conquista da Guiné em que os guineenses iriam ser estimulados para a civilização e para a ciência. Para dar suporte, foi criado assim o Centro de Estudos da Guiné Portuguesa, que se propunha promover a cultura, organizar uma biblioteca e um museu, o que veio a acontecer. Assim se procurava criar uma instância intelectual constituída por funcionários da administração colonial e oficiais das instituições militares.

Os investigadores lançaram-se ao estudo, deram testemunho das etnias que melhor conheciam, procuraram um discurso moderno. Diga-se lateralmente que é uma época em que vários cientistas, geógrafos, antropólogos, sociólogos, acorrem à Guiné para a estudar e inventariar conhecimentos, basta recordar Orlando Ribeiro e Mendes Corrêa. Por exemplo, Mendes Corrêa, à luz dos conhecimentos do seu tempo, andou a medir crânios e as alturas das diferentes etnias guineenses, segundo as escolas antropológicas do seu tempo tratava-se de um procedimento correto, hoje está banido todo e qualquer estudo que procure catalogar raças segundo padrões de inteligência.

A investigadora Manuela Borges procurou conhecer a representação da mulher nos textos publicados no BCGP, refere que esta representação foi construída por agentes da administração colonial, que era constituída exclusivamente por homens. O conhecimento etnológico colonial, observa a autora, era dominado por homens que ouviam, em primeira instância, nativos e nunca as nativas. Assim irá acontecer nos múltiplos estudos e inquéritos, estes eram encarados como pontos de partida para novas investigações. Por exemplo, na resposta aos inquéritos não se regista qualquer informação sobre as mulheres, nas poucas respostas em que as mulheres são referidas verifica-se que as informações são erráticas. São raríssimas as considerações em que a mulher foi ouvida e posta em primeiro plano. No entanto, sabe-se que nos Bijagós há a liderança religiosa das mulheres, cabe a estas as escolhas dos parceiros masculinos, e o que acontece é que o estudioso trata estes dados como “curiosidades”. Para a investigadora, andava-se à procura de um “indígena autêntico” e da identidade essencial às diversas tribos ou etnias. A autora considera que esta perspetiva antropológica era justificada pelo olhar do colonizado como “selvagem”, “primitivo”, “atrasado” e “exótico”. Acontece que a própria investigadora reconhece que os informantes eram masculinos, como hoje continuam a ser masculinos, ninguém pode ter a veleidade de estudar um comunidade e querer começar por inquirir mulheres, a estrutura social repudia ainda hoje tal atitude, ninguém pode entrar numa comunidade sem falar previamente com as autoridades. A antropóloga Tina Kramer contou-me que percorreu toda a Guiné falando sempre em primeiro lugar com os régulos, chefes de tabanca, conselhos de anciãos, estes depois é que autorizavam entrevistas com os antigos militares e as suas famílias. A mulher-objeto não foi só uma realidade de colonialismo, não é por acaso que ainda hoje prosseguem interminavelmente as discussões sobre a amputação genital das mulheres, com resultados por ora ínfimos.

A autora diz acertadamente que “Os agentes coloniais projetaram as suas perspetivas androcêntricas das representações das relações de género da sua própria sociedade, na perceção das relações de género africanas, o que teve significantes repercussões na produção etnológica colonial”, resta saber se à luz dos conhecimentos da época teria sido possível agir de outra maneira, negligenciando-se a realidade e vivências femininas. Noutro patamar, na literatura, é bom não esquecer “Auá”, de Fausto Duarte, obra premiada da literatura colonial, Auá é uma jovem que irá pôr termo à vida devido ao pai a querer casar com um velho régulo, ela amava um jovem e tornou-se intolerável, a seus olhos, manter a ditadura do direito consuetudinário.

Os estudos destes administradores-etnólogos foram e são tão importantes que ainda hoje se mantêm como bibliografia de referência, praticamente todos eles.

Não chega dizer que “a antropologia colonial foi produzida num contexto assimétrico de relações de dominação entre os colonizadores e os colonizados, sendo as representações reproduzidas pelos primeiros de forma hegemónica e etnocêntrica”, o investigador tem que demonstrar se se trata de uma aberração no contexto das ciências sociais e humanas do tempo. Nenhum antropólogo, sob pena de risota, iria hoje medir cabeças e alturas, para identificar raças, são procedimentos banidos. Os inquéritos do tempo, por toda a África, andaram relativamente próximos dos praticados pelos outros países colonialistas. Todos eles tiveram um discurso próprio de europeus, possuíam um sentido de missão, era preciso rastrear as diferentes raças até para politicamente saber lidar com elas.

É evidente que a nova República da Guiné-Bissau trazia um elevado repúdio face aos trabalhos dos colonialistas. No campo da agronomia ou da zoologia ou no estudo das doenças do sono, por exemplo, esses estudos impuseram-se, eram irrefutáveis, a investigação fora fundamental para a cultura do arroz, para intervir nas doenças tropicais, para mapear as diferentes culturas agrícolas possíveis. Extinguiram-se o museu, a biblioteca e o Centro de Estudos da Guiné Portuguesa. A Guiné-Bissau não tem nenhum museu digno desse nome, não há bibliotecas e o seu arquivo histórico, no INEP, foi praticamente destruído na guerra civil de 1998-1999. Quando a autora diz que a investigação científica na Guiné-Bissau, em 1984, entrou numa fase inteiramente nova, é de lamentar que não pese as consequências desta afirmação. A investigação científica anda ao sabor de projetos subsidiados, quando não há projetos não há investigação. Grande parte do património salvou-se graças a instituições como a Fundação Mário Soares. E os investigadores da era pós-colonial pegam nos trabalhos dos administradores-etnólogos como bússola, usando, claro está, das mais elementares cautelas. Acresce que há estudos publicados no tempo colonial que ainda hoje são referências obrigatórias. A título de exemplo, “Direitos Civil e Penal dos Mandingas e dos Felupes da Guiné-Bissau”, de Artur Augusto da Silva.
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Nota do editor

Último poste da série de 20 de Dezembro de 2013 > Guiné 63/74 - P12479: Notas de leitura (545): "Guiné - Guerra e Poesia - Canjadude e Bolama", de José Martins Gago (3) (Mário Beja Santos)

3 comentários:

Luís Graça disse...

Mário, obrigado pela tua intervenção. Pessoalmente estou de acordo contigo quando denuncias os riscos do "bota-abaixismno" de certos discursos dos nossos investigadores que têm dificuldade em fazer a ponte com o passado, tendo tendência para fazet tábua rasa dos contributos de outros autores de outras escolas e de outras gerações...

Portugueses e guineenses, só temos a ganhar com a avaliação, critica mas construtiva, da política do Sarmento Rodrigues enquanto governador da Guiné, política essa que, para ser analisada e entendida, só pode ser contextualizada... O mundo, em África, não começa com o pós-colonialismo...

Da leitura do CV, verifico que a Manuela Borges é: (i) doutorada pela NOVA (a minha Universidade) em antropologia social e cultural (2011); (ii) e atualmente é investigadora auxiliar no Centro de Estudos Africanos e Asiáticos do Instituto de Investigação Científica Tropical


http://www2.iict.pt/archive/doc/CV_Manuela_Borges.pdf

Luís Graça disse...

Já agora acrescenta aos trabalhos, citados por ti, do Artur Augusto da Silva, pai do nosso amigo Pepito e marido da nossa decana Clara Schwarz (, que não era antropólogo, de formação académica, mas sim jurista com grande sensibilidade sociocultural), um outro título (cuja leitura me surpreendeu agradavelmente): "Usos e costumes jurídicos dos fulas da Guiné Portuguesa", editado pelo
Centro de Estudos da Guiné Portuguesa (1958 - 139 pp.).


Antº Rosinha disse...

Mais uma trabalheira de Beja Santos.

Mas penso que sem terem estudos publicados, os nossos africanos estudaram-nos melhor a nós tugas, portugas, que nós a eles.

Aliás, nem entre eles se conhecem tão bem como a nós.