domingo, 15 de dezembro de 2013

Guiné 63/74 - P12453: Fragmentos de Memórias (Veríssimo Ferreira) (6): O Higino Arrozeiro e as lições de francês

1. Em mensagem de 10 de Dezembro de 2013, o nosso camarada Veríssimo Ferreira (ex-Fur Mil, CCAÇ 1422 / BCAÇ 1858, Farim, Mansabá, K3, 1965/67) enviou-nos mais um episódio da sua série Fragmentos de Memórias.


FRAGMENTOS DE MEMÓRIAS

6 - O Higino Arrozeiro e as lições de francês

Confuso andei anos e anos, no que respeitava à data da minha chegada ao K3, confusão que hoje 8 de Dezembro de 2013 se foi, pois que em conversa com um camarada da CCAÇ 1422, de quem não mais soubera desde o regresso, fui informado que teríamos ido para lá em princípios de Novembro de 1965.

Passámos a tarde recordando os amigos mas lembrámos acima de tudo e com muita mágoa, aqueles que nos deixaram, vitimados que foram pela minas colocadas por mãos assassinas inimigas. O primeiro foi o Fur. Mil. Higino, em Maio/66, mais tarde o Capitão Corte Real, em Junho/66.

Tive conhecimento do primeiro caso, aquando de férias na Metrópole e no segundo, estive presente e mesmo ali ao lado.
Qualquer DELES foram pessoas que mereceram a nossa estima e que também no-la deram e de quem temos muitas saudades.
Quer um quer outro, fizeram amizades, eram excepcionais na maneira como lidavam com todos, mereciam ter tido melhor sorte... o que lá vai lá vai , mas na nossa memória continuam por cá.

O Higino havia-me pedido prái em Fev/66 mais ou menos, para lhe ministrar umas lições de francês, língua que ele percebera que eu sabia, dadas as cartas que me vira receber duma moça francesa que se prestou para ser minha "madrinha de guerra" coisa na altura muito em voga. (e que bem fazia à rapaziada ter alguém do lado de lá, dando carinho e atenção).
Ela era de Grenoble, que nem sei onde fica, nunca nos conhecemos pessoalmente e o facto de nos correspondermos deu-se devido a mensagem sua, incerta no Paris-Match".

Dentro daquele espírito saudável da época, partilhámos uma relação cheia de boas coisas e fiquei-lhe imensamente grato pelo que me ensinou e pela paciência com que me aturou.
Dez anos mais velha do que eu, tivera um irmão na guerra da Argélia e teria sido ele próprio a incentivá-la a "amadrinhar" um combatente Português.

Pois o Higino Arrozeiro, queria ir para França, logo após o cumprimento do dever na Guiné a fim de poder melhor ajudar a sua mãe viúva, com quem vivia e daí o estar a pedir-me uma ajudita.

- Vamos nessa pá... tenho nisso muito gosto, vou mandar vir um livro de leitura e a gramática mas entretanto podemos já a ver os primórdios.

Num dos dias seguintes começámos e mandei-lhe para a mão uma peça de teatro que por acaso não chegou a ser representada mas que ensaiei, cujo nome era "O Visconde de Pavia Ranso" e que tinha por lá umas palavras francesas, tais como "chateau du Caramulo", "rendez-vous" e mais umas outras, que seriam reproduzidas pelo galã da peça, o visconde.
Claro que estranhou (mas ia tomando notas) que o "au" se lesse "ô"...; o "du"= "diú" ..; o "en= â...e o "ou"=" ú ".

Chegaram entretanto da Metrópole os livros pedidos.

Quando me preparava para iniciar o "je suis/tu és/ e o "avoir", tivemos a sorte de aprisionar um individuo senegalês (ao que soubemos depois) e que falava fluentemente a língua francesa. Melhor oportunidade não podia haver para que o inquiridor fosse o meu estimado aluno, que cumpriu cabalmente e até se excedeu, não conseguindo todavia a confissão que se pretendia.

O prisioneiro, foi-se recusando a dar as notícias do que sabia até que lá acabou por abrir o jogo e até sem que exercêssemos qualquer pressão, a não ser quando... enfim.

Bom, as lições lá continuaram quando possível e por pouco tempo que os afazeres não o permitiam doutro jeito e quando estávamos já para passar a outros verbos e leituras no livro seguinte, por e devido ao facto de me ter sido dada a hipótese de ir passar umas férias à Metrópole, interrompemos mas deixei-lhe trabalho de casa para fazer.

Sei que os fez que bem os vi, quando regressei, mas ele já cá não estava. Partira depois de a viatura em que seguia a caminho de Mansabá e ali nos "carreiros" local que sabíamos ser sítio perigoso, ter pisado uma mina que o levou sabe-se lá para onde.

 Veríssimo Ferreira, à esquerda, em Bissau com o seu camarada Higino Arrozeiro

Na foto, da esquerda para a direita: Gualter, Higino, (?), Simões, Corte Real e Nuno

Entretanto quase logo a seguir (inícios de Julho) fui forçado a deixar a Companhia e parti para a Secção de Funerais e Registos de Sepulturas, 1.ª Rep do Quartel General em Bissau.

Ali voltei a encontrar o meu amigo, que jazia na capela do cemitério, a aguardar trasladação. Eu mesmo o meti no Niassa embrulhado que estava o caixão, em quatro tábuas, não sem que o tenha admoestado por ir daquela forma. Antes ainda ofereci-lhe com dedicatória... a gramática... o livro de leitura e os trabalhos de casa que ele fizera, e que não corrigi.
E ali no cais do Pigiguitti, cornetim amigo tocou o Toque de Silêncio.
E eu, em sentido, acompanhei-o assobiando e tremendo, até que o barco se diluiu no horizonte.

(continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 8 DE DEZEMBRO DE 2013 > Guiné 63/74 - P12413: Fragmentos de Memórias (Veríssimo Ferreira) (5): K3, Maio de 1966 - Operação Vaca

5 comentários:

Hélder Valério disse...

Caro amigo Veríssimo

Estes casos são sempre dolorosos.
E quando a lembrança chega, o coração aperta.
Mas o que tu tens feito é o que deve ser feito, ou seja, lembrar.
Com a lembrança o homem, o amigo, não morrem.
É o que é justo fazer.

Abraço
Hélder S.

Anónimo disse...

Camarigo Veríssimo

Não sei se é o primeiro comentário que faço aos teus escritos, que nunca deixo de ler e de que gosto. Não só pela forma bem disposta e brincalhona que usas, talvez para retirares o "fundo pesado" de muitas das situações daquela guerra ou talvez por feitio e artes próprias.

Hoje, como referes não te lembrares da "data" da tua chegada ao "excelente, deslumbrante e repousante Resort do K3", que o "Nosso Maior" tanto se admirou pelo seu tão brilhante nome próprio ser SALIQUINHÉDIM e espero que se admire mais se lhe disser que ficava a uns 2 ou 3 km de Bafatá !!! pois como ia dizendo, para te recordar, o que consta do resumo da Hu CCaç 1422 (BCaç 1858), é que "Em 12JAN66, seguiu para Saliquenhedim..." Nos princípios de NOV65 andavam por PELUNDO na protecção aos trabalhos da estrada.

Abraços, aproveitando para te desejar Boas Festas e Feliz 2014 e que continues a escrever sempre, de quem também conheceu o K3.

JPicado

José Botelho Colaço disse...

Amigo as tuas mensagens trazem sempre uma carga de humor isso é uma lufada momentânea de ar fresco, mas esta hoje ao contrário vem carregada de algo dramático, é a vida e por mais que nos provem que é assim mesmo, nunca conseguimos aceitar.

Um abraço amigo.
Colaço.

Tony Borie disse...

Olá Veríssimo.
Tal como o Hélder, o JPicado e o Colaço dizem, este texto é um pouco diferente das tuas quase sempre alegres, mensagens, mas foi a nossa realidade naquela guerra.
Paz eterna para aquele companheiro, que foi o Higino Arrozeiro.
Abraços, Tony Borie.

Antonio silva disse...

Ex.1º cabo enfermeiro camarada do ex.furriel miliciano pertencemos ao bat.1858 comp.caç.1422 de 65/67