segunda-feira, 9 de dezembro de 2013

Guiné 63/74 - P12417: Notas de leitura (542): "Na Nha Manera Di Odja", de Fernando Antunes (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 11 de Julho de 2013:

Queridos amigos,
Preparem-se para uma surpresa, temos aqui um poeta de primeira água e um doce cantar sobre as gentes, as rias, as fainas e os grandes valores guineenses. É bom ser surpreendido por um livro ignoto, um saber poético de grande calibre, capaz de nos perturbar com tanto amor, tanto intimismo, com tais e tantos estados de alma ligados a essa devoção guineense.
Pergunto-me como é que é possível escrever-se tão bem e ficar-se praticamente ignorado. E não têm razão em não conhecer este poeta Fernando Antunes, ele está disponível e a preço muito acessível.

Um abraço do
Mário


Na nha manera di odja (na minha maneira de ver)

Beja Santos

A literatura luso-guineense passou a ser uma realidade incontornável, é constituída por escritores guineenses que se debruçam sobre a realidade do seu país, em todos os géneros da ficção, editam ou não em Portugal, recorrem amiudadas vezes ao crioulo, a amargura e o desencanto são manifestos, em verso ou conto; e também por escritores portugueses, quase sempre rendidos à terra guineense e suas gentes, cantando, louvando, esperançando. É o caso de Fernando Antunes, cronista e poeta dotado de um fortíssimo afeto pela Guiné onde trabalhou e continua a visitar. Atento ao bulício, embasbacado pelas maravilhas da natureza, a observar a chuva, a ouvir os sons da tabanca e assim resumindo o que faz e porque escreve:
“Espanto-me ainda e sempre, com os cajueiros, papaeiras e tantas outras árvores de fruto, até ontem desconhecidas, com os palmeirais ou com os estranhos seculares e sagrados poilões.
É a fome na busca do silêncio e da intensidade do mundo que me rodeia, que observo e oiço, deixando que o pensamento mastigue e absorva todas as suas realidades.
Escuto a alma da Guiné como um branco que nada sabe, mas sente”.

E este livro de poesia “Na Nha Manera Di Odja”, Chiado Editora, 2011, é um assunto muito sério nos negócios do feitiço africano, um espantoso acasalamento de palavras e fotos, como alguém escreveu, “Um compêndio de geografia, gastronomia e antropologia, com valências de almanaque de artes e dicionário”. Um guia turístico que dá para ver (melhor, sentir) quanto a Guiné traz enamoramento a este branco que canta a bolanha, o baga-baga, as catervas de meninos, o trabalho, o Bissau Velho, os guineenses em Lisboa, o poilão sagrado, as marcas da presença portuguesa, os ofícios, até as conversas ao entardecer.

Provavelmente a pensar em Amílcar Cabral, assim arranca o poema “Uma notícia importante corre como o vento”:
Esta é a terra que um dia ouviu a palavra
Palavra prenhe, nascida em Bafatá
gestação de uma vida ansiosa de liberdade no seu chão
E correu nesta terra de diversas etnias, no povo de muitas ilhas
Calada, dita pelos olhos e atos, gritada lá fora para se fazer ouvir.

No termo do poema, a esperança ou vaticínio salta como uma mola:
A palavra procura a terra humana que lhe dará força
onde se há de fundir em dias límpidos de cristal
espalhar a sua verdade
Então far-se-á linguagem na universalidade das etnias
será pão e vinho, livro aberto na página da liberdade.

Fernando Antunes explora sensorialmente a previsão dessa esperança onde ele investe a luta da palavra, para ela concorrem palavras luminosas, uma escrita sossegada, de alguém que domestica o tempo, a saudade, a habitação dos lugares e a promessa dos devires. Aí representam-se, esses devires, por belezas do presente, são os meninos a quem ele designa por “semente na demanda da doçura do orvalho/ da fertilidade do solo, para germinar em sã árvore de fruto”. A força desta poesia serena é nada ali aparecer rebuscado ou com trabalho de dicionário para substituir o talento, a imanência criativa. As crianças são faladas e enquadradas pela pobreza que as espera mas o voto é pujante, a exultação absoluta: “cresçam na alegria de um tempo seguro/ caminhem em frente pois deixou de ser tempo/ de olhar para trás, e um dia, talvez, descubram a utopia”. A Guiné é medida com os filhos da terra, o tchon, e o poeta enfeitiça-se de prodígios: uma imensa mancha verde, terra suculenta, mãe extremosa, terra de veredas, densas florestas, terra de sol intenso e de chuvas copiosas, e poeta acentua que se está a falar da Guiné: “Terra onde acarinha mininu e se ouve respeitosamente/ conselho de omi garandi, se venera todas as coisas vivas/ onde a vida é curta e o sonho arde nas veias”.

Poesia dos elementos, das cores, dos aromas e do peso do tempo, como ele escreve no poema “Desde que o mundo é mundo” e por ordem arbitrária: vento húmido viscoso, rios em ziguezague que procuram o oceano, no silêncio ouve-se a brisa, o balancear da vegetação… e como a sua poesia é costurada com paciência e tenacidade, assim se exalta o trabalho, que tanto o comove: “Os homens são gigantes pacientes, lançando as redes nos rios/ vergando as costas nos arrozais, ouvindo os ancestrais/ este é o seu reino, o pano que lhes cobre corpo e alma”. Mas é também um português magoado, há para ali um amargor ou ressaibo de indignação quando percorre o Bissau Velho, então salta-lhe o pensamento, vem-lhe à memória outros lugares: “Habito Bissau pelo equívoco dalgumas atitudes/ entregue ao acaso, sem vontade de rumo traçado/ no esquecimento doutros amores, doutras latitudes”. E que belo poema sobre esses guineenses que se espalham ali para a sombra da Igreja de S. Domingos, onde turistas curiosos e gentes da Guiné se misturam no Rossio, estão para ali os homens da diáspora, as conversas correm, há notícias da distante pátria que aquecem os corações, aterraram nesse canto de Lisboa como num mar de lembranças, estão ruídos de saudades, procura uma realidade que por vezes já não é a sua, são acima de tudo filhos de uma pátria madrasta, enredados na teia dos seus sonhos mais íntimos.

Enfim, o poeta compraz-se com a picada, o encantamento arquitetónico das moranças, o movimento da mulher que caminha na bolanha, questiona o santuário nos animistas, ali reina o poilão sagrado, ali Deus está em toda a parte, ali se entregam segredos e se regressa mais leve e tranquilo. Fernando Antunes trava confronto com as situações simples de onde extrai uma lírica grave: a condição da mulher velha, a presença portuguesa na ponte do Saltinho, uma canoa escavada que segue no Geba, questiona um homem sentado à porta de casa, enaltece o costureiro, detém-se diante de uma escola guineense numa remota aldeia e por vezes a sua lira extrai acordes por pequenas cidades, a Bafatá quase mourisca, Cacheu depósito de estátuas de ilustres do passado, mas também Bolama, a esquecida, Catió tão longe, Mansoa tão perto. Não esquece a estação das chuvas, onde o céu se abra em grossas e abundantes lágrimas, há para ali relâmpagos que parecem espadas de fogo a que se sucedem sons roucos dos trovões. E o caju? Vejamos o seu poder inebriante em Fernando Antunes: “Na densa floresta dos cajueiros me perdi/ sentindo seu perturbante cheiro vagabundo/ em sua sombra descansei, alguns frutos colhi/ Sequioso, os frutos mordi/ avultou o cheiro húmido e doce da terra/ Um soluço de ser feliz, senti”. E também inebriado com a beleza da mulher, não se deixa tolher pela sensualidade, uma lascívia no olhar: “Pernas esguias, negras, coxas suculentas/ promontórios siameses, de mão cheia, doces, eretos/ em teus olhos a confissão de entregas totais, lentas/ sorriso de satisfazer os desejos mais secretos/ Corpo de mulher/ ondulando em modo de rendição/ herdeira genuína das tardes preguiçosas, fim de entardecer/ meu caminho indeciso, minha sede, minha perdição/ minha ânsia sem limite, meu desejo de me perder”.

Comove-me este poder elegíaco, este poder intimista, este gosto de passear os olhos pela crosta da terra, pela fileira das árvores, ouvir as águas a correr e até apreciar a comida, é uma gastronomia que lhe está tão entranhada que ele canta o óleo de palma, a siga de carne com mariscos, a galinha à cafreal, a sopa de cacre, o chabéu. Mas o prazer de exaltar artistas plásticos guineenses que sempre o surpreendem, como o Diamantino, o Carlos Barros, Luís Lacerda e os irmãos Júlio.

“Na nha manera di odja” é um belíssimo livro, garanto-vos eu, há humores de poeta que cintilam por aquela gente, por aqueles veios líquidos e por aquelas lalas e bolanhas que nos fazem suster a respiração, tal a sinceridade, o ímpeto neste doce canto que se evola da Guiné-Bissau.
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Nota do editor

Último poste da série de 6 DE DEZEMBRO DE 2013 > Guiné 63/74 - P12399: Notas de leitura (541): "Contos de Guerra", de Guilherme Alpoim Calvão e Sérgio A. Pereira (2) (Mário Beja Santos)

1 comentário:

Luís Graça disse...

Mário, és incrível...Não te escapa nada. A Tabnaca Grande agradece esta prendinha de Natal!...Vou te propor para o Guiness World Records!... Boas festas, bons livros, boas leituras!... Luis