quarta-feira, 27 de novembro de 2013

Guiné 63/74 - P12349: A guerra vista do outro lado... Explorando o Arquivo Amílcar Cabral / Casa Comum (9): Em setembro de 1964, a situação estava feia na antiga Zona 7 do PAIGC, segundo carta do 'Nino' Vieira [Marga]: (i) falta de homens, material, medicamentos e alimentos; (ii) 1 guerrilheiro deserta e apresenta-se em Bambadinca; (iii) as NT desembarcam no Rio Corubal, na Ponta Luís Dias, e avançam até ao Poindom e à Ponta do Inglês, provocando baixas entre a população e a guerrilha; (iv) 300 fulas da zona leste recebem instrução militar em Bissau, mas... (v) o moral da guerrilha parece ser... alto, estando disposta a ocupar militarmente o Saltinho e o Xitole (o que, como sabemos, nunca virá a acontecer até ao fim da guerra)



[Foto à esquerda: Amílcar Cabral, de costas, comn 'Nino' Vieira. Data: c. 1963/73.  Cortesia de Casa Comum / Arquivo Amílcar Cabral]


1. Transcrição de uma carta, assinada por Marga ['Nino' Vieira, comandante da Zona Sul], de 4 folhas, não numeradas, com data provável de setembro de 1964, e para destinatário desconhecido.

Sinopse: Em setembro de 1964, a situação estava feia na antiga Zona 7 do PAIGC: (i) falta de homens, material, medicamentos e alimentos;  (ii) 1 guerrilheiro deserta e apresenta-se em Bambadinca; (iii) as NT desembarcam no Rio Corubal, na Ponta Luís Dias e avançam até ao Poindom e à Ponta do Inglês, provocando 6 mortos, vários feridos e perda de material; (iv) há a notícia de que 300 fulas da zona leste recebem instrução militar em Bissau, (v) mas o moral da guerrilha é alto, sendo disposta a ocupar militarmente o Saltinho e o Xitolle (sic) - o que, como sabemos, nunca chegou a acontecer, "manu militari", antes de acabar a guerra... (LG)

Guiné > Zona Leste > Croquis do Sector L1 (Bambadinca),  que coincidia em parte com a antiga Zona 7 do PAIGC (margem direita do Rio Corubal) > 1969/71 (vd. Sinais e legendas).

Infografia: Blogue Luís Graça e Camaradas da Guiné (2013)


Acontecimentos na antiga Z[ona] 7.

O camarada Barry  [Bari] disse-me que não tem guerrilheiros suficiente[s]. A situação está sendo agravada cada vez mais não só por falta dos guerrilheiros como também pela fome. Todos os guerrilheiros que tinha,  estão espalhados, só pela [devido à] fome.

Disse ainda que há cerca de 300 fulas que [se] foram preparar militarmente em Bissau. Há algumas espingardas abandonadas. [H]ouve também [1] guerrilheiro que fugiu da base e foi apresentar-se em Bambadinca.

O Bary [Bari]  disse que todos os camaradas podiam seguir para os pontos indicados, mas estão com falta de homens e de alimentação. Garantiu que com alimentação e mais um pouco número [sic] [mais uns tantos] homens, eles podem ocupar todos os pontos indicados. Saltinho e Xitole vai [vão] ser ocupado[s] por nós, mas outros pontos é que achou ainda impossível.

No dia 3/9/64, as tropas desembarcaram em Gã Dias [Ponta Luís Dias] onde demoraram [permaneceram] 1 dia. Mataram 5 pessoas e [fizeram] 4 feridos. Em Gã Carnês [Garnes] [Ponta do Inglês], 1 guerrilheiro [foi] morto, de nome Mamadi [Mamadu] Sambú. Levaram desse 1 caixa de pistola, 1 carregador e uma granada. Em Poindó e Gã Carnês [Garnes] [Ponta do Inglês] encontraram [-se] com as n/ [nossas] forças e estes [estas] os fizeram voltar [recuar], depois de terem sofrido algumas baixas.

Esse grupo era chefiado por Felipe Nangassé que disse que perderam nesse ataque 1 gorionova [Metralhadora Pesada Goryounov 7,62 mm M-943], 1 metralhadora ligeira “Tcheca”, 1 carrebina [sic] [carabina], 1 mauser e 1 pistola automática.

As tropas, de pois de terem desembarcado em Gã Dia[s], conseguiram infiltra[-se] para Gã Carnês [Garnes] e Poindó [Poindom]. O grupo era composto somente por 7 homens, por isso não podiam aguentá-los.

Pediram também fardas e basookas [sic] [LGFog], se possível, que é para segurança dos rios. Estamos com falta de munições de P.M. [Pistola Metralhadora], ou seja, 7,62, granadas e todas as outras espécies de munições. E também minas anti-tanque [anti-carro] e anti-pessoais.

Espero que nos envie alguns botes de borracha, se possível.

Mais nada, Marga

[PS - ] Falta de medicamentos e enfermeiros. O povo morre por falta da alimentação. População inflamada. Falta de munições tais como granadas, balas de 7,.62 P. M. [Pistola Metralhadora], 7,92 Mauser, 7,62 carabina, minas e seus detonadores.

Transcrição, revisão, fixação de texto: L.G. (*)


Original: Para ampliar clicar aqui: Casa Comum

Fonte:

(s.d.), Sem Título, CasaComum.org, Disponível HTTP: http://hdl.handle.net/11002/fms_dc_39094 (2013-11-26)

Instituição:
Fundação Mário Soares
Pasta: 04613.065.046
Assunto: Relata os acontecimentos na antiga Zona 7, referindo nomeadamente a falta de guerrilheiros e a situação de fome.
Remetente: Marga (Nino Vieira)
Destinatário: Não identificado.
Data: s.d.
Observações: Doc. incluído no dossier intitulado Correspondência 1963-1964 (dos Responsáveis da Zona Sul)
Fundo: DAC - Documentos Amílcar Cabral
Tipo Documental: Correspondência

5 comentários:

Luís Graça disse...

É verdade que o PAIGC nunca conseguiu desalojar os tugas do Xitole e do Saltinho, mas também é verdade que os tugas nunca conseguiram desalojá-los, à população e á guerrilha, da margem direita do Rio Corubal. No meu tempo, nunca se realizou, que eu saiba, um desembarque anfífio na Ponta Luís Dias, como este aqui relatado em meados de 1964... Também é verdade que a população sob controlo do PAIGC sempre viveu aqui, "miseravelmente", ao longo de toda a guerra... LG

José Martins Rodrigues disse...

Estou de acordo com as ilações do Luis Graça.
Durante a permanência da CART 2716no Xitole(70/72)não recordo que o PAIGC tenho realizado ações de grande envergadura contra o Saltinho.
No que se refere ao Xitole, apesar da tentativa de assalto ao arame, das flagelações,emboscadas e minas, estiveram longe de conseguirem os seus objetivos.
As operações em participou a CART 2716 a Galo Corubal e Satecuta foram tentativas falhadas para desalojar o PAIGC dessas Zonas.
Também estou convencido de que as populações controladas pelo PAIGC nessa zona sofriam de carências de toda a ordem. Recordo o dia em que entregaram aos nossos cuidados duas senhoras e uma criança,que terão vindo de Galo Corubal à procura de tratamento para o deplorável estado de saúde em que se encontravam.
JMR

Henrique Cerqueira disse...

É bem verdade que as populações controladas pelo PAIGC passavam FOME.
« ONTEM COMO HOJE E AMANHÃ... ASSIM CONTINUARÁ ?
Pobre povo que em qualquer parte do mundo está sujeito aos interesses internacionais.Pior ainda quando esse mesmo POVO está subjugado a governantes déspotas e aventureiros.Isto para ser brando com os adjectivos destinados aos que têm o dever de defender os seus POVOS.
Não venham agora com a treta das ingerências nas políticas da Guiné,pois que nem sempre é fácil virar a cara para o lado e assobiar como nada se passasse.
Um abraço Henrique Cerqueira

Antº Rosinha disse...

A coisa está tão má para todos os guineenses hoje, que aqueles tempos da guerra de libertação estavam talvez mais previsíveis que hoje.

Aliás como também para Moçambique.

Ramos Horta devia ser e penso será objecto de um grande apoio de Portugal e do Brasil nas Nações Unidas para alcançar a paz naqueles territórios independentes...por enquanto.

"Paz à-la-tuga"

Claro que quem como eu foi Retornado sabíamos que ia ser muito mau, mas tão mau assim, jamais.

Gosto muito de ouvir, devido ao hábito , as músicas heróicas nacionalistas e revolucionários da luta, de Schwarz e outros guineenses.

São lindíssimas, pergunto-me como será que aquele povo reagirá hoje a ouvir aquelas músicas?

Luís Graça disse...

Repare-se que o 'Nino' não escondia perante os "senhores de Conacri" (Amílcar Cabral, Luís Cabral, Aristides Pereira..., todos "caboverdianos") as tremendas dificuldades por que passavam a população e a guerrilha no interior da Guiné... (Ainda não vi falar, nas saus cartas, em "zonas libertadas"...).

Não sei se o fazia com cinismo, ou com lealdade... Ele terá levado para a cova o segredo sobre "quem mandou matar Amílcar Cabral"...