quarta-feira, 20 de novembro de 2013

Guiné 63/74 - P12317: (In)citações (56): Meditação (Abel Santos)





1. Em mensagem do dia 13 de Novembro de 2013, o nosso camarada Abel Santos (ex-Soldado Atirador da CART 1742 - "Os Panteras" - Nova Lamego e Buruntuma, 1967/69), enviou-nos esta "meditação", escrita nos anos sessenta do século passado, algures nas matas da Guiné:





MEDITAÇÃO

Novo cigarro, mais um fósforo riscado na raspa da caixa, uma pequenina chama, umas baforadas de fumo que se perdem acima da cabeça, olhos fixos no além, pensamento veloz através da vidraça do tempo na procura da recordação do dia de ontem ou na meditação sobre como será o amanhã.

Tudo, sem esquecer o tempo de agora a que se convencionou chamar presente. Um bom par de minutos deixa que o cigarro se vá gastando até que, num gesto de rotina, seja jogado num cinzeiro, indo juntar-se a outros, que depois de consumidos ali aguardam o momento "solene" de se fazer limpeza.

Rápido como o vento, corre o pensamento em dia de cerração plúmbea, com o sol a aparecer timidamente por entre densas nuvens que cobrem o firmamento. Um leve mover de folhas lembra a aragem morna que corre e deixa que se respire melhor perante a intensa humidade que contempla o ar em circulação.

Um mundo de interrogações percorre a mente de encontro a valores esquecidos, a princípios quebrados, a objectivos pouco expectantes, a injustiças e a guerras indesejadas. O mundo surge incómodo, ornamentado de azedume e negritude que atemoriza as sociedades. Por sua vez, estas apresentam-se incapazes na procura e na oferta de soluções para crises intermináveis.

A massa humana é frágil e não suporta as adversidades que ela própria criou. Não é sem razão que se diz que o homem é um mistério profundo que nunca se chegará a compreender. Continuam hoje, os homens, a serem escravos da tirania, de honrarias e ambições, ansiando por atingir todas as posições e títulos, muitas vezes sem medirem os meios usados na prossecução daqueles objectivos. É a isto que vulgarmente se diz não olhar a meios para atingir os fins.

Apesar de tudo, os homens continuam a percorrer os caminhos da vida, nele encontrando vitórias e derrotas, mas em definitivo, ganhando poder sobre o universo e sobre a própria vida… Daí a tentação permanentemente renovada de se julgarem "auto-suficientes", capazes de se tornarem deuses sozinhos. E a estrada continua aberta, sem que o percurso tenha terminado. Nem o homem está acabado, ainda que se interrogue sobre onde o conduzirá o seu desenvolvimento.

De repente, pensa em humanizar-se mais, em personalizar-se sempre mais, tendo como força motivadora a vida que lhe foi dada e as próprias forças vitais que brotam das suas caminhadas. Mas… numa análise fria e desapaixonada, depressa se conclui que o que dá valor aos homens não são os títulos nem as honrarias e que muitos são aqueles que proclamam a sua ignorância e a sua incompetência quando chamados a lugares de responsabilidade. É aqui que se afirmam os interesses e as situações de favor.

Não é de hoje nem de ontem a afirmação de que só cumpre deveres quem tem ideias. Mas os tempos, todos os tempos, acabam sempre definir e mostrar que os ideais rareiam, que os carácteres se definham e que as vocações se burocratizam. Depois surge o rol infindável de interrogações sobre caracteres sólidos e firmes; sobre as existências de ideais. Quantas vezes se vende a Honra para afivelar uma máscara; quantas para usar um título, se conspurca a Dignidade; quantas, para ocupar um lugar se esfrangalha o Carácter; quantas, para se obter uma situação se atraiçoa a vocação.

Não raro se ouve e se diz do lodo que inunda os caminhos do mundo e da vida; não raro se evoca a dignidade, o amor e a justiça, para que o caminhar nas estradas da vida seja sereno em consciências rectas. Porém, as sociedades já não ouvem nem se ouvem. Constroem-se nesse acumular dúbio das negras nuvens da mentira, da intolerância, do facilitismo e do comodismo do ter, fazendo constante vista grossa ao ser e ao estar.

A esfera enorme consignada como planeta Terra, que dizem ser achatada nas extremidades do seu eixo imaginário, continua a girar e construir dois movimentos rotineiros que não deixam de nos mostrar essa realidade e, mais do que isso, a necessidade de uma luta sem tréguas a favor de personalidades capazes de formar e de manter sociedades sólidas, que saibam dizer sim e não quando as circunstâncias o exigirem. Contudo, nada pode resistir ao desenvolvimento e à expansão da vida em cada um, na medida em que a vida é o fruto perene do amor de Deus por si… Nada. Excepto a liberdade, que é a única fronteira que Deus não pode atravessar sem o nosso consentimento e a nossa participação.

Cada um é livre de receber e de desenvolver o melhor possível a vida que lhe foi dada e de a transmitir como muito bem entender. Como é livre de a desperdiçar afastando-a completamente do seu fim. A ninguém é exigido que seja cego ou ingénuo, mas sim que esteja plenamente consciente das suas carências e da sujidade repugnante da vida que gravita à volta do universo. Costuma dizer-se que se reforça a confiança na medida do crescimento da fé.

Foi-se o cigarro neste espaço de tempo. Subiu em novelos o fumo acinzentado espalhando no ar um doce cheiro a tabaco. Tal como a atmosfera, os pulmões acumularam um mais de pó de carvão e são agora, mais do que ontem, potenciais candidatos ao cancro que os atrofiará.

Neste viver e morrer, sucedem-se os dias e as noites e, com eles a vontade enorme para que o amanhã seja pleno de vitalidade para que a vida possa prosseguir na sua caminhada geradora de histórias e meditações.

P.S. - Texto escrito em 1968, aquando do cumprimento do serviço militar na Guiné-Bissau.
____________

Nota do editor

Último poste da série de 30 DE SETEMBRO DE 2013 > Guiné 63/74 - P12103: (In)citações (55): Eu desejo acreditar na Guiné-Bissau, nos seus jovens, mulheres e homens de boa vontade, que trabalham nas bolanhas, nas matas, nos rios e no mar... (Paulo Salgado, ex-alf mil, cav, op esp, CCAV 2721, Olossato e Nhacra, 1970/72; cooperante)

Sem comentários: