domingo, 17 de novembro de 2013

Guiné 63/74 - P12309: Fragmentos de Memórias (Veríssimo Ferreira) (2): O meu amigo felupe, o 44

1. Em mensagem do dia 11 de Novembro de 2013, o nosso camarada Veríssimo Ferreira (ex-Fur Mil, CCAÇ 1422 / BCAÇ 1858, Farim, Mansabá, K3, 1965/67) enviou-nos o segundo episódio da sua série Fragmentos de Memórias, dedicado ao seu amigo 44:


FRAGMENTOS DE MEMÓRIAS

2 - O meu amigo felupe, o 44

O meu amigo felupe, o 44, propôs-se a tirar-me a arreliadora matacanha.

Devidamente desinfectado tinha já um afiado alfinete de dama, sentou-se de frente a mim, pegou-me nos pézinhos tamanho do sapato 43, e olhou-os assim estilo quando miro aqueles de coentrada. Eu entretinha-me a tomar Cavalo Branco 12 anos, que era dia de festa. enquanto ele me olhava sequiosamente esperando também anestesiar-se.

Disse-lhe:
-Tira lá essa porra sem me magoares, que bebes a seguir...

Bebeu após me apresentar aquela bolha cheia de bichinhos lá dentro, fazendo lembrar os cachos de chocos a nascer, que se vêem nas praias.

Pé com matacanha* 
Fotos reproduzidas, com a devida vénia, de: (Parasitoses-astrópodes)

Este rapaz, de quem fui muito amigo e ele meu também, mereceu-me toda a atenção e dediquei-lhe algum do meu tempo disponível.

Fazia perguntas e queria saber mais... ele fosse sobre o nosso modo de viver em Portugal... os costumes, os usos... o significado de palavras e custava-lhe acreditar que o Mundo fosse da forma como eu lho descrevia.
No fundo, o meu também só era o Alentejo do Alto e foi presunção querer Alentejanizá-lo.

Divertia-se quando lhe expliquei que comíamos o porco de várias maneiras o que de todo ele repudiava com o "bé" que suponho ser assim uma espécie de "porra".

Ensinei-o a jogar dominó com umas peças com desenhos de posições sexuais e ria, ria muito, o que também ainda hoje faço quando se m'alembra a cena.

Perguntou-me também sobre os Deuses, sim que ele estranhava haver mais do que um.

Dentro do pouco que sabia sobre tal, lá lhe fui explicando o possível. Falei-lhe de quando menino de escola, ter quase obrigatoriamente que frequentar a igreja e saber até o Pai-Nosso, mas só até àquele certo dia em que descobri que as senhas que recebia por ir à catequese e com as quais me davam pelo Natal 125g de manteiga, ou mais, dependendo do número de presenças, eram a forma de me cativarem para a religião, o que me desgostou.

E mais ainda... ao saber que a manteiga vinha da América oferecida e para ser distribuída pelos mais pobres, revoltei-me.
O que se passava é que a coisa era pois para ser de borla para os necessitados, mas o senhor padre queria uma contrapartida e por isso abandonei a confissão da fé.

Mas mais lhe disse. Contudo, não deixei de lá ir, mas ficando cá fora, aquando da saída das missas e para ver as miúdas internas do colégio, que bem lindas eram e se apresentavam, com aquela farda própria... mostrando a perna até ao joelho, que na altura era só o que nos ofereciam de engodo.

Mais lhe contei sobre o dito que as mães e avós diziam às "piquenas":
- "Até ao joelho é para quem quiser ver, do joelho para cima só para quem merecer".

De qualquer forma, continuei. O teu a quem chamas Alá, gosta mesmo de mim, e tanto, tanto, qu'até te mandou criares porquinhos e não os comeres, qu'esse será crime a ser cometido por este teu amigo, já pecador confesso.

- Mas "nôsso furié"... o meu deixa as mulheres andarem nuas da cintura pra cima e o teu obriga-te a despir as da tua raça...

E enquanto assim falava, lá punha de novo a bocarra escancarada, com a dentuça branca toda à vista e batendo ruidosamente os pés no chão barrento.

- Ganhaste malandro, pensei... mas deixa que havemos de voltar ao assunto.

 Grande amizade ficou entre nós e para além disso foi óptimo colaborador militar da CCAÇ 1422, pois que sendo conhecedor do terreno que nos competia gerir ali no K3, foi um excelente guia para além de também e disfarçadamente houvesse sido meu segurança particular:
- "Não se cheguem ao "nôsso furié" que têm de se haver comigo" - parecia ele dizer olhando para a mata.

Aí aprendi com ele a disparar com arco e seta o que me fez sentir o Robin dos Bosques.
Muitos pombos verdes comemos assadinhos na brasa ou fritos e apanhados sem gastar balas e sem ruídos.

O sonho dele era poder vir a "conduzir" aviões e helicópteros e fez-me vários pedidos para que eu intercedesse nesse sentido. Na verdade e sem saber como lhe responder sem o magoar, adiei a questão até que um dia lá consegui dizer-lhe a verdade e em contrapartida convidei-o para ir aprender primeiro a "pilotar" a GMC que costumava ir à frente quando em coluna, íamos recolher os abastecimentos no caminho esburacado que nos ligava a Mansabá.
Para tal tive a permissão superior, embora um senhor alferes se tenha mostrado contra, argumentando que ele poderia desertar e levar-nos a viatura.

Por acaso até nem estava mal pensado, mas dada a conduta do rapaz e conhecendo as famílias, lá se procedeu conforme o meu pedido e era vê-lo todo vaidoso e já encartado, ao volante do Unimog da água.

Conheci-lhe a família toda na sua tabanca em Farim, partilhámos bianda e galinha de chabéu preparada pela sua mais bela mulher, a Fátima e não gostei mas tive de aceitar muito honrado, que pusesse o meu nome num dos filhos que houvera nascido.

E se há quem pense que não há estrelas cá em baixo na Terra, desiluda-se, porque já dizia o poeta: 
- NUM MONTE DE PEDRAS PODE NASCER UMA FLOR

(continuará ?)
____________

Notas do editor

(*) Vd. poste de 17 DE OUTUBRO DE 2010 > Guiné 63/74 - P7138: Doenças e outros problemas de saúde que nos afectavam (2): Matacanha (Rui Silva)

Último poste da série de 10 DE NOVEMBRO DE 2013 > Guiné 63/74 - P12274: Fragmentos de Memórias (Veríssimo Ferreira) (1): Chegada a Bissau e deslocação para o Óio

2 comentários:

CT1FDB - Delfim Rodrigues disse...

A "Istória" é engraçada mas os felupes são animistas e não maometanos, os deuses deles são o irâs a quem fazem oferendas se precisam de pedir alguma coisa (Chuva, a cura de ma doença que dificl, etc,

Hélder Valério disse...

Caro amigo Veríssimo

Vens aqui relatar um episódio com a 'matacanha'. Coisa 'chata', incomodativa, mas que felizmente se podia tratar. Calculo que tenhas ficado 'aliviado' quando a 'bicheza' começou (e acabou) por sair.
O tratamento com o alfinete desinfectado (calculo que o 'devidamente' tenha sido com 'cavalo branco') pode parecer estranho aos jovens de hoje mas era comum mesmo por cá para tirar lascas de madeira, farpas, etc.
Sempre que se conseguia entrar em diálogo, em conversa, sobre questões religiosas, alimentação, diferenças culturais, etc., de coração e mente abertas, era possível aprender e dar a conhecer novas perspectivas. E isso contribuía decisivamente para o conhecimento 'do outro' coisa recíproca e que ajudava a compreender as diferenças. Ainda hoje, muito do 'saudosismo' que camaradas manifestam têm a ver com essa identificação, acho eu!
Abraço
Hélder S.