sexta-feira, 8 de novembro de 2013

Guiné 63/74 - P12266: Filhos do vento (23): ...ou da ventania (Juvenal Amado)

1. Mensagem do nosso camarada Juvenal Amado (ex-1.º Cabo Condutor da CCS/BCAÇ 3872, Galomaro, 1971/74), com data de 7 de Novembro de 2013: 


Filhos do Vento ou da Ventania

Os jornais todos os dias mostram situações de pais que abandonam os filhos ou os matam. Há mesmo uns jornais especializados nessas noticias e que as desencantam em todo o lado. Chamasse a isso jornalismo do terror, desgraças e dos maus costumes.

Estamos num país dito civilizado com obrigatoriedade escolar bem longe da média escolar de há 40/50 anos atrás.

No entanto estes casos continuam.

Naquele tempo, fizeram o que era mais fácil que foi abandonar à sua sorte filhos, que seriam mal olhados numa sociedade onde preconceito social condenava os responsáveis por estas situações a algum estigma, especialmente no Portugal profundo das pequenas vilas e aldeias, dominadas por conceitos morais, raciais e éticos a roçar em muitos casos tempos bem anteriores ao Século XX. E lá diz o ditado que pena que não se vê, não se sente!

O que era perfeitamente aceitável lá, mergulhados que estávamos numa guerra em que se vivia grande parte da comissão, numa lógica de um dia de cada vez, tornava-se intolerável junto das namoradas ou esposas após o regresso e na moral de então.

As preocupações começavam a partir do momento em que pensávamos que íamos finalmente regressar. Esses e outros medos passavam assim a ser uma constante no nosso dia-a-dia. Como não correr riscos e como fugir dos resultados de uma convivência amorosa, que agora resultava numa trágica fotografia e na indecisão quanto ao caminho a seguir? Aparecer à namorada quando não esposa, com um filho mestiço até fazia ganhar suores frios, porque aventura é aventura, champanhe é champanhe, mas um filho assim caído de repente era o diacho.

Conheci um caso de um militar que mentiu quanto ao à data do seu regresso à Metrópole e quando a pobre foi à procura dele com trouxa e tudo, já ele estava em casa. Felizmente desse caso não tinham resultado filhos, mas também conheci outra situação em que o militar avisou a família bem como namorada, que ia ser pai e que era sua intenção levar o bebé para casa quando regressasse. Na altura disse-me que a situação tinha sido aceite senão com alegria, com conformismo e que estariam à espera do filho dele. Infelizmente o bebé uma menina por sinal, acabou por falecer no parto, dado que sendo a mãe de Bangacia, só recorreu aos serviços médicos já tarde para salvar a filha. Vi então o militar com lágrimas nos olhos, que se compreendiam perfeitamente em função ao seu envolvimento emocional.

Sabemos que nem todos militares ou ex-militares que ficaram no território agiram como o meu camarada. Está à vista que a grande maioria não lhe seguiu o exemplo e com a independência, resolveram vir embora e deixar filhos para trás.

Talvez até nem tivessem consciência do muito sofrimento que acarretava a sua resolução.
Essas crianças deixaram ser guineenses e muito menos portuguesas.
Ficaram sem estatuto por isso apátridas.
Ninguém os queria.

Aos mestiços trataram de os mandar ter com os pais à Metrópole, pois já não eram puros para serem naturais da sociedade que os viu nascer.
Vai para a terra do teu pai “cutima” filho di puta. (Também me mandaram a mim para esses sítios muitas vezes)

Em Angola por exemplo, fizeram-se cartoons com os aviões carregados de retornados e os mestiços pendurados nas asas do avião do lado fora.

As ameaças eram muitas. A razão era abafada pela violência latente, nós sabemos que nas sociedades em ebulição os novos aderentes ou de fresca data às causas, são muitas vezes mais perigosos e menos racionais.

Filhos diferentes abandonados pelos pais, sujeitos a uma sociedade que se radicalizou, foram rejeitados e excluídos como um tumor que denunciava as mães e as famílias de colaboracionismo com as tropas colonialistas, que se tinham tornado peçonha.

Nas campanhas de reeducação que se seguiram, quem é que aceitava de bom modo o ser apontado por ter privado tão de perto as tropas tugas, que se tinham ido com malas e bagagens embora ao fim de 11 ou 13 anos de guerra?

Hoje quantos se esqueceram do que deixaram para trás?
Dificilmente temos os resultados imediatamente dos nossos actos, porque se tivéssemos, muito das decisões que tomamos ficariam por tomar.

Quem corta uma linha de água com uma construção, pensa que se viu livre do inconveniente, mas mais tarde ou mais cedo a água forçará a passagem com resultados funestos. Nessa altura desejamos não ter feito a parede ou lá o que seja e é tarde. Ficamos felizes quando os resultados não são irremediáveis.

Por vezes ainda vale a pena tentar remediar, fazer as pazes com a sua consciência e o passado, certo que a juventude de então, não justifica a omissão de hoje.

Juvenal Amado
____________

Nota do editor

Último poste da série de 6 DE NOVEMBRO DE 2013 > Guiné 63/74 - P12257: Filhos do vento (22): Criada a Associação de Solidariedade dos Filhos e Amigos dos Ex-Combatentes Portugueses na Guiné

10 comentários:

MANUEL MAIA disse...

JUVENAL AMIGO,

GOSTO DESTE TEU ESCRITO QUE PÕE O DEDO NA FERIDA DA CHAGA QUE A GUERRA AJUDOU A ABRIR...
DEVEM SER MUITOS MILHARES DE MESTIÇOS TENDO EM CONTA OS ANOS DE CONFLITO,AS VÁRIAS FRENTES DE GUERRA E AINDA OS CASOS DE S.TOMÉ, DE CABO VERDE ,DE TIMOR ATÉ DE MACAU(EM NUMERO NECESSARIAMENTE MUITO MENOS SIGNIFICATIVO),MAS CERTAMENTE EXISTENTE...


NÃO É DE AGORA QUE SE DIZ QUE DEUS FEZ O MUNDO E O PORTUGUÊS O MULATO...

É CHEGADA A ALTURA DE QUEM OS TIVER DAR AOS FILHOS LÁ DEIXADOS,OS TAIS FILHOS DO VENTO, O PRAZER DE SABEREM QUE TÊM UM PAI.
É TEMPO DE REPARAREM ESSE ERRO...
OXALÁ ESTE TEU ESCRITO APELANDO À CONSCIÊNCIA POSSA SER A PEDRA DE TOQUE DE UMA REPARAÇÃO QUE SE EXIGE.
ABRAÇO
mm

Anónimo disse...

Olá Camaradas

São lógicas, pertinentes e ajustadas as considerações que aqui ficam.
Porém não creio que, nesta altura, haja algo a fazer e que os pais das crianças estejam dispostos a fazê-lo.
Não vejo, portanto qualquer solução.
Um ab.
António J. P. Costa

Torcato Mendonca disse...


Juvenal

Li, gostei, agradeço o que escreveste e mando-te um abração.

#Hoje por aqui tem estado ventania ...chato pois desce a Estrela, arrefece e deixa para trás o frio a subir a Gardunha#...ventos de Novembro.

Ab, T.

Arménio Estorninho disse...

Caro Amigo e Camarada Juvenal Amado, verifico que apresentas uma explanação escorreita do teu ponto de vista das duas faces da moeda sobre os "filhos do vento," e que não se afasta da realidade.

Só um pequeno à parte sobre a palavra que descreves como "cuntima." Eu, ouvia pronúnciar essa palavra com a fonética de "cuntinimã" e tinha a mesma forma de expressão depreciativa de "filho da p...

Quem tiver doutos conhecimentos que avance e ficamos mais esclarecidos.

Com Um Abraço
Arménio Estorninho

Juvenal Amado disse...

És bem capaz de ter razão Arménio.
Desculpa que no comentário anterior enganei-me no teu nome.
Vamos esperar que alguém mais conhecedor de alguns -mimos- com que nos agraciavam de vez enquanto desfaça a duvida.

Um abraço

Hélder Valério disse...

Caro amigo Juvenal

Esta tua reflexão sobre este tema tão 'melindroso' é um bálsamo.
Porque fala dos assuntos sem ideias preconcebidas, sejam de que tipo for.
É claro que poderá haver sempre quem diga, ou pense, que és um idealista, que estás cheio 'de boas vontades', mas que, na prática, não há nada a fazer agora e que isso da 'consciência' diz-se por aí que "era verde e que veio um burro e comeu-a".
Outros haverá que pensem, ou digam, que 'mexer' nestes assuntos é pernicioso, pode servir para muita especulação, que se trata de um trabalho académico destinado a valorizar quem o faz ou promove. Do tipo 'preso por ter cão, preso por o não ter'.... pois se não se fala dos assuntos, ninguém nos liga, se se fala dos assuntos, é porque estão a querer fazer demagogia....

Seja como for, o que escreveste parece-me bem colocado e de forma escorreita. Não envergonha ninguém, não faz nem insinua acusações, apenas reflecte o teu pensamento sobre o assunto e acabas interrogando se "fazer as pazes com a sua consciência e o passado, certo que a juventude de então, não justifica a omissão de hoje."

Abraço
Hélder S.

Cherno Balde disse...

Caros amigos Juvenal e Armenio,

O palavrao em lingua fula que estao a tentar interpretar nao e mais nem menos que um insulto quase que vulgarizado, mas que e preciso saber utilizar correctamente (como sempre na vida).

^Koto-inama^ e uma palava composta por ^koto^ = orgao sexual feminino e ^Inama^ (literalmente significa: da tua)da mae de quem se dirige o insulto.

Mas atencao, esta forma de insulto so e permitido de cima para baixo e nunca o contrario. nunca se diz a uma pessoa mais velha: ^Cona-da-tua-mae^.

Diz-se Koto quando se expressa de forma e tamanhos normais.

Diz-se Kotiou kotal para expressar tamanho maior, grau superlativo absoluto sintetico.


Espero ter ajudado e desculpem a intromissao.

Um abraco,

Cherno Balde

Juvenal Amado disse...

Caro Cherno

Estava totalmente errado quanto à forma de escrever, uma vez que na verdade nunca tinha visto a palavra escrita.
Estava certo quanto ao que ela queria dizer e era normalmente "mimo" das lavandeiras quando já estavam chateadas da malta.
Na altura não tínhamos qualquer ideia de e como se podia usar o termo e acabava ser um insulto sem lhe atribuirmos grande significado, ou pelo o menos nunca o levei a sério e aceitava-o como resultado da brincadeira.
No linguarejar vernáculo dos soldados não era nem mais nem menos que isso. Porém a intenção com que se dizia os palavrões é que fazia a diferença.

Um abraço

Arménio Estorninho disse...

Caro Amigo Cherno Baldé, Saudações Guinéuas.

Gostei do teu esclarecimento, o qual tem o propósito de nos elucidar convenientemente o significado desta palavra fula.

Na realidade quando era pronunciada havia o intuito de auto defesa, em que cada um de nós dava-lhe ou recebia como um desses sentidos depreciativos e é compreensível.

Como se pode ler o Juvenal Amado pronunciava "cuntima" e eu talvez por ter mais contacto com a população sempre tenho pronunciado "cuntinimã."

Diga-se que, ao tempo de 1968/70 foi-me fácil aprender crioulo, embora interpretasse mais razoavelmente do que pronunciasse.

Contudo foi-me útil o crioulo que aprendi, porque sendo Técnico de Saúde facilitou interpretar muitos guinéus quando se dirigiam ao Centro de Saúde.

Caro Cherno Baldé "járame ánani" pelo esclarecimento devidamente exemplificado.

Com Um Abraço
Arménio Estorninho

Anónimo disse...

Caros amigos,

Na sociedade fula tudo é tratado em funcao do estatuto social dos protagonistas. Existem classes de idade as quais correspondem as formas de tratamento e de comportamento.

A questao que me podiam por é: Qual a classe ou classes a que correspondiam a tropa metropolitana?

Do que me apercebi, os oficiais, geralmente, eram tratados como Homens grandes, isto é, que mereciam todo o respeito e que, também correspondia ao seu comportamento.

Ao grupo dos Furrieis e Sargentos era caso a caso, em funcao das suas atitudes, sobretudo, em relacao as bajudas.

As pracas, normalmente, sem querer generalizar, eram mal vistos porque, também, geralmente, diante das bajudas,das suas bocas so saiam asneiras e as maos estavam sempre dispostas a apalpar tudo e mais alguma coisa sem qualquer discernimento e leitura de contexto e, em consequencia, recebiam insultos que, nao eram permitidos em condicoes normais.

Quando se diz a uma miuda, em plena rua: "parti fudi-fudi" nao se pode esperar, naturalmente, uma boa resposta, em qualquer latitude. No entanto,muitas vezes, era so uma especie de defesa da honra, como muito bem disseram, porque no fundo, nao levavam muito a sério, tendo em conta o estatuto marginal da tropa na esfera da vida comunitaria.

Abracos,

Cherno Baldé