quinta-feira, 31 de outubro de 2013

Guiné 63/74 - P12226: Crónicas das minhas viagens à Guiné-Bissau (José Martins Rodrigues) (3): A minha primeira viagem em 1998 - A descoberta da nova realidade

1. Terceiro episódio da série do nosso camarada José Martins Rodrigues (ex-1.º Cabo Aux Enf.º da CART 2716/BART 2917, Xitole, 1970/72), dedicada às suas viagens de saudade à Guiné-Bissau, a primeira efectuada em 1998.




CRÓNICAS DAS MINHAS VIAGENS À GUINÉ-BISSAU


A PRIMEIRA VIAGEM - 1998

3 – Acompanhem-me na descoberta da nova realidade, porventura imaginada, entre Bissau e Bafatá.

Bem cedo, porque tínhamos pela frente uma viagem de 150 quilómetros até Geba, a cerca de 10 quilómetros de Bafatá, e ainda era preciso trocar escudos por francos CFA, descemos ao piso térreo do Hotti Bissau para o pequeno-almoço. De seguida, à porta do hotel, fomos receber o jipe que havíamos contratado. Para meu espanto, aparece-nos uma Pick-Up que sabia ser muito incómoda e sem o ar condicionado exigido. Recusei com veemência a viatura, exibindo cópia do fax em que constava o que tínhamos acordado. Após alguma discussão e, com a ajuda de Candé, o nosso condutor, guia e segurança, conseguimos que nos entregassem um jipe Nissan Patrol, praticamente novo e todo artilhado de cromados, imagem a condizer com o estatuto que o seu proprietário aparentava. Fomos até ao mercado, zona comercial no centro da cidade de Bissau.

Aqui adquirimos os necessários Francos CFA e percebi que as viaturas eram a imagem da ostentação na cidade. Neste percurso, tivemos que passar junto do mercado de Bandim. Era uma imensa confusão de viaturas misturadas com pessoas. Ultrapassagens sem regras, buzinadelas constantes e nas bermas de tudo se vendia. Plásticos, calçado, roupas, mobílias, frutas, etc. etc. etc.
A caminho do centro da cidade, fui registando imagens de abandono e degradação de vivendas, edifícios e estabelecimentos comerciais. O que não tinha utilidade para a vida possível, foi definhando ao longo dos anos. As necessidades agora eram outras.

Partimos para Bafatá. Estava previsto chegarmos ao Club Capé a tempo do almoço que nos esperava. A estrada era alcatroada mas, em muitos troços, era um verdadeiro calvário de cavernas, o que obrigava a circular pelas bermas por ser o mal menor. Enquanto se ouvia música guineense e notícias no rádio do jipe, a imagem mais marcante em muitos quilómetros deste trajecto, para além das tabancas, das bolanhas e cursos de água, eram as verdadeiras florestas de cajueiros. O sol a pique, um calor abrasador que o ar condicionado tornava suportável, especialmente para as senhoras, e uma vegetação que lutava contra a secura, compunham a paisagem que desfilava perante o nosso olhar. Já próximos de Bafatá, a rádio anunciava a decisão do Presidente Nino Vieira de demitir Ansumane Mané da chefia do Estado Maior por alegada venda de armas aos guerrilheiros de Casamanse.

De Bafatá e até ao Club Capé, aldeamento turístico em que iríamos ficar alojados durante três noites, o trajecto era efectuado em picada, a espaços bastante maltratada. Chegamos tarde, cerca das quinze horas para almoçar e muito cansados pela dura viagem. Após um delicioso e retemperador banho, foi-nos servida uma deliciosa refeição de bife de gazela acompanhada da “nossa” indispensável Superbock bem fresquinha. Esta unidade turística era composta por quartos bungalow inseridos num belo jardim, com vários mangueiros e com os seus frutos ali bem à nossa mão. Num bungalow central ficavam a sala de estar, de jogos e a sala de jantar. Uma bonita e bem cuidada piscina completava o equipamento. Um pequeno paraíso na Guiné. Após a refeição, o “nosso” Candé iria regressar a Bissau. Ajudou-nos a resolver o problema do jipe, fez baixar as cordas das ”fronteiras” que fomos passando e transmitiu-nos um grande sentimento de segurança.

Saciado o apetite e relaxados do corpo, surgiu o espaço e o tempo para os primeiros comentários sobre as aventuras até aí vividas. Para o meu irmão e esposa que já tinham estado no Senegal dois anos antes, o que mais salientaram, pela negativa, foi a pobreza das infra-estruturas patente nas cidades de Bissau e Bafatá. Para a minha esposa, tudo era estranho. Desde a elevadíssima temperatura, à hora em que almoçámos, até à paisagem, que ela jamais imaginara. Para ela, o mundo era a imagem da terra que a viu crescer e eu não esperava outra reacção. Até esse momento fui “bebendo” todos os sinais que tocavam os meus sentidos. Sentia uma enorme alegria interior. Há momentos na vida para os quais não se encontra explicação razoável. Eu estava a viver um desses momentos. Passámos o resto da tarde confortavelmente instalados nas espreguiçadeiras da piscina. Ao jantar, junto à piscina, foi-nos servido um grelhado de caça, que incluía porco de mato e rolas. As senhoras estranharam o paladar da carne de caça. Olhando o horizonte, afastado das luzes, contemplei aquela noite tão escura, tão escura. Até isso ficou gravado.

Amanhã será um dia muito especial. Irei visitar o “meu” quartel, as tabancas e a “minha gente”. Carrego no peito o desejo incontido de abraçar a população do Xitole e, tentar encontrar alguém que tenha partilhado comigo aquela fase da minha vida. Este desejo esteve aprisionado anos demais e iria finalmente ser solto. Quantos de nós não sufocam perante a impossibilidade de o fazerem.

Fomos dormir. Amanhã será o dia de todas as emoções. Até me assusta o que me espera.

(Continua)

Negociando a troca da viatura

Na cidade, para trocar moeda

A caminho de Bafatá

Picada entre Bafatá e o Hotel Capé

Já próximo do Capé, paragem para recolher e saborear Caju

Fim de tarde, na piscina do Capé

Clube Capé, arredores de Bafatá

Avenida principal de Bafatá

Este filme mostra os momentos da partida do aeroporto de Sá Carneiro, as primeiras impressões de Bissau e a ida até Bafatá
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Nota do editor

Último poste da série de 24 DE OUTUBRO DE 2013 > Guiné 63/74 - P12195: Crónicas das minhas viagens à Guiné-Bissau (José Martins Rodrigues) (2): A minha primeira viagem em 1998

1 comentário:

armando pires disse...

Estou curioso de saber como foi o resto da viagem. Saber em que data saíste de Capé.
É que talvez não nos tenhamos encontrado lá por muito pouco.
Aquando do golpe militar foi no clube Capé que eu e outros seis camaradas meus (eramos jornalistas) ficámos alojados. Tinhamos entrado a salto pela fronteira norte, a partir de Kolda.
armando pires