domingo, 29 de setembro de 2013

Guiné 63/74 - P12100: Blogoterapia (235): Quando a morte nos retorna aos princípios - Reencontro com Benjamim Lopes da Costa, 1.º Cabo do Pel Caç Nat 52 (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 26 de Setembro de 2013:

Queridos amigos,
É empolgante quando alguém que estimamos profundamente e constou que tinha morrido nos telefona a dizer que tem saudades nossas, que nos quer ver com urgência, que no fim do mês regressa a Bissau, depois de uma longa estadia com tratamentos médicos.
Foi esta a grande alegria que me deu o Benjamim Lopes da Costa, um dileto colaborador que tive no Cuor, mesmo que em circunstâncias penosas houve que lhe dar voz de prisão, como aqui se descreve.
Há algo de muito forte nesta camaradagem da Guiné que não cabe nas palavras.

Um abraço do
Mário


Quando a morte nos retorna aos princípios

Beja Santos

Chama-se Benjamim Lopes da Costa. Tem 70 anos. Vive no Bairro da Ajuda, em Bissau. É funcionário reformado do BCEAO. Estudou e foi enfermeiro. Frequentou Bolama e chegou ao Xime, era o cabo Costa. Do Xime foi transferido, em Abril de 1969, para o Pel Caç Nat 52, em Missirá. Vinha substituir o Paulo Ribeiro Semedo, tragicamente sinistrado em Chicri. Dedico-lhe uma referência no Diário da Guiné, nas Terras do Soncó: “Chegou o Benjamim Lopes da Costa que veio substituir o Paulo. O Benjamim será um camarada inesquecível, mesmo quando, cheio de sofrimento, lhe darei voz de prisão após uma emboscada em que ele perdeu a cabeça e me chamou branco assassino”. Cordato, sempre leal, cooperativo, contei sempre com os seus primores de caráter. Aquela fatídica noite de 3 de Agosto, porém, foi um tremor de terra na minha existência, parece que um chicote me tagantou todo o sistema nervoso. Talvez valha a pena recordar o que sobre esse infausto evento se impôs escrever:

Mataste uma mulher, branco assassino!

Em 1 de Agosto, parto para Finete acompanhado de uma dúzia de colaboradores. Assentara com o Casanova e com o Pires o que havia a fazer em Missirá nesta primeira semana do mês, sendo que as idas a Mato de Cão nos seriam sempre comunicadas em Finete, para onde se deslocaria um contingente de 15 homens, respetivamente com morteiro 60, dilagramas e bazuca, e que aqui seria reforçado com milícias, e eu assumiria, sempre que possível, o comando. Continuávamos a ter muitos doentes, militares e civis, quase todos os dias o David Payne atendia sofredores de malária e múltiplos vírus. Levei rações de combate, colchões, mosquiteiros, o indispensável Lion Brand para afugentar a bicharada, algum material de engenharia para apoiar as obras em curso, e, a despeito dos vendavais e novas enxurradas de água, sempre dentro do ciclo "chove agora copiosamente, daqui a um bocado faz sol, troveja depois", recordo um tempo magnífico, patrulhamentos à volta de Boa Esperança, travessia até Canturé e descida até à bolanha de Gambana. Ao fim da tarde do primeiro dia, encontrámos marcas de sandálias de plástico em trilhos que ligavam Gambana até Malandim. Que desaforo! As gentes de Madina passeavam-se mesmo junto a Finete. A 2, conferi carga de material enquanto os Cabos Benjamim Costa, Domingos Silva, Alcino Barbosa e António Queirós ajudaram nas obras do novo balneário e de um abrigo reforçado, no alto do morro, com uma posição estratégica para os acessos de Malandim.

É nessa tarde que escrevo à Cristina: "Faz agora exatamente um ano que recebi uma guia de marcha para seguir para Bambadinca. Cheguei a 3 de manhã ao cais de Bissau foi uma longa viagem que acabou ao anoitecer no cais de Bambadica. Eu era o “periquito de Missirá”. Na tarde do dia seguinte, há de aparecer o Saiegh acompanhado de Mamadu Camará e Campino, todos me olham como curiosa novidade. Nunca mais esqueci o olhar do Saiegh, dois carvões iluminados, resguardados por pestanas muito bonitas, olhos como azeitonas brilhantes que não iludiam um grande ressentimento, como vim a comprovar. Nesse dia, em Missirá, a gente da Madina deixou na fonte panfletos a convidarem os "colonialistas" a desertar; na véspera, Uam Sambu, também não muito longe da fonte de Cancumba, viu o seu peito estilhaçado por uma granada mal armadilhada. Será uma noite muito difícil, esta primeira noite em Missirá: oiço uma língua que mal percebo, parece um português arcaico entremeado com diferentes linguajares, o que não estava longe da verdade. Choro mansinho dentro do meu mosquiteiro, num abrigo onde se ouve o tossir áspero do rádio de transmissões para onde o Teixeira de vez em quando se dirige e fala acaloradamente. Estou a dimensionar uma pavorosa solidão, depois de ter visto alguns despojos macabros que o Saiegh guardava em frascos. Desculpa as longas descrições, os pormenores entediantes, os sustos que te dei. Sei que sofreste muito com as minhas cartas, com os meus mortos e feridos, as flagelações. Desculpa tudo, estou certo que Deus assim andou connosco, e nos deu força".


Uma emboscada com uma crise de nervos

E, portanto, em 3 de Agosto vamos emboscar em Malandim, vamos mostrar a quem se abastece em Mero e Santa Helena que não estamos impassíveis ao descaro. Trabalhou-se até cerca das cinco da tarde, escolhi um grupo de quinze homens, cuidadosamente, com o auxílio do Benjamim Costa e do Domingos Silva expliquei como íamos atuar: ficaríamos em linha numa clareira, muito perto do mato denso que vem da destilaria de aguardente abandonada da fazenda de Malandim; ficaria no meio rodeado do Cherno e de Mamadu Djau; ninguém dispararia a não ser à minha ordem, e a haver uma retirada viríamos pelo trilho até Finete, deixando as sentinelas de sobreaviso quanto a essa emergência. Levara para Finete alguns livros, tais como "A vida de Charlot", por Georges Sadoul, um volume com as aventuras Sherlock Holmes, um belo livro policial de Ellery Queen, um romance que mal iniciei de Truman Capote e estava a meio de um policial de Erle Stanley Gardner, " O caso do pato afogado". Este último, envolto num plástico, acompanha-me até à emboscada de Malandim. Estamos devidamente posicionados quando a repentina noite tropical caiu sobre nós. Aqui e ali ainda se ouve um cantil que vai à boca, um mastigar de comida, um pedaço de cola que ajuda a passar o tempo e quebra a secura. Penso mais no dia de amanhã que no de hoje, amanhã quero levar as folhas dos vencimentos a Bambadinca, procurar trazer arroz, encomendar comida para a nossa messe em Missirá, ver se já chegaram alguns cunhetes para suprir as munições desaparecidas na noite de 15 de Julho. Em 5 de Agosto vou escrever à Cristina: "Não podes imaginar a dor com que te escrevo, estou chocado e não sei conter a amargura que me trespassa a alma. Tens que me ouvir. Montei uma emboscada na noite de 3 perto de Finete, onde estive até ontem. Aguardávamos com ânimo elevado a borrasca dos céus e o desfiar das horas, até alta madrugada. Eu estava estirado na pequena picada que conduz às ruínas da fazenda de Malandim. Silêncio sem o piar das aves até que, passava das sete, não estávamos ali há mais de uma hora, oiço o brado do Mamadu Camará que passa como um chicote pelas minhas costas: “alto, alto já!” Rodopio, há um vulto que avança para mim, é um manto que me parece esverdeado que vacila diante de mim, não sei se vem armado, crivo-o de balas, oiço um suspiro breve, é como se uma massa mole que me cai nos braços. Estala o pânico, ouvem-se passos em fuga, é naturalmente o grupo que se reabastecera em Mero que parte em fuga. Acometido por uma violenta histeria, o cabo Costa pragueja e insulta-me: “Matou uma mulher, és um branco assassino!”. Uns procuram dominar o dementado, outros querem caçar os fugitivos, é uma desordem geral que se cruza com a berraria do cabo Costa que continuava a vociferar e a insultar-me. Coisa curiosa, estou sereno, ordeno a retirada para Finete, aqui peço ao Bacari para ir buscar o corpo e os despojos, informo que vamos todos seguir para Bambadinca, sei e sinto que é necessário cortar pela raiz este sinal de insubordinação. Os quilómetros enlameados que levo até Bambadinca dão para pensar no que devo ao Benjamim Lopes da Costa, seguramente o mais culto dos meus cabos, sempre prestável, militar aprumado a quem reconheço a qualidade da solicitude e o valor da lealdade. Mas não se pode passar uma esponja sobre o que aconteceu". Atravessado o Geba, parece que corremos até à rampa de Bambadinca, em segundos alcanço a messe de oficiais onde Jovelino Pamplona Corte Real joga bridge. Cá fora fica o grupo acompanhante, tudo gente que presenciou os acontecimentos de Malandim.


Um diálogo extraordinário com o novo comandante

- O que o traz aqui a estas horas? 
- Meu Comandante, fizemos uma emboscada perto de Finete, surpreendemos um grupo que ia para Madina, matei um dos elementos, um dos meus cabos perdeu a cabeça e insultou-me, chamando-me "branco assassino". É indispensável que se reponha a ordem. Tem que ficar aqui preso. É a si que compete dar voz de prisão. 
- Homem, nem pensar. Na guerra, não se prende toda a gente só porque se perde a cabeça. Fale-lhe a bem, obrigue-o a pedir desculpa, vai ver que não houve insubordinação nenhuma. 
- Meu comandante, mantenho com todos os militares em Missirá e Finete uma relação de autoridade e estima que não posso nem quero perder. Não vou agora fazer um relatório com este episódio aldrabado. Não pudemos capturar o inimigo por este desrespeito, este ato insensato que estragou o patrulhamento ofensivo. Os meus soldados nunca entenderiam ter-se feito silêncio sobre este acontecimento. Aliás, não aceito desculpas aos soldados que adormecem no posto, nunca deixo passar em branco as tentativas àqueles que querem pagar reforços para fugir ao serviço. O cabo Costa ou é punido ou eu não volto para Missirá. 
- Acalme-se, vamos para o meu gabinete.

E fomos, eu fiz sinal para que todos viessem atrás de nós. Entrei a seguir ao comandante no seu gabinete, a luz acendeu-se, ele sentou-se e voltou a propor-me um exercício de cortesia. 
- Veja se serena. Quando se é implacável em excesso, corre-se o risco de perder o verdadeiro respeito que a tropa nos deve ter. O melhor é o cabo ficar aqui, eu converso com ele, eu trago-o à razão. 
- Não, meu comandante. O cabo Costa chamou-me branco assassino na presença de todos os camaradas. Sei que é um excesso, conheço as suas qualidades, mas a vida militar faz-se de exemplos. Ou ele entra na prisão à sua ordem, ou eu informo os meus soldados que a partir de hoje não os comando. E juro-lhe que não voltarei ao Cuor se não se fizer justiça pelas suas mãos. Asseguro-lhe que não volto atrás.

O comandante olha-me intensamente, o tempo suficiente para perceber que era escusado tentar demover-me. Não estou em pânico nem exaltado, a dor que me atravessa não é reparável por qualquer voz de prisão. 
- Bom, vou mandá-lo prender, ele fica à minha custódia. Depois vejo o número de dias de prisão que lhe vou dar. 
- Desculpe, o meu comandante vai mandá-lo conduzir para a prisão na nossa presença. Os meus soldados precisam de ver com os seus olhos quem faz justiça, quem castiga a insubordinação.

Levantando-se a custo, como se deslocasse todo o peso do seu corpo e da sua decisão, Jovelino Pamplona Corte Real chama o oficial de dia. Quando este chega, ordena-lhe que conduza o cabo Costa para a prisão, que era qualquer coisa como um galinheiro ali em frente. Apercebendo-se do que estava a acontecer, o Benjamim procurou justificar-se. Insensível a qualquer pedido de reparação, perfilei-me e informei que ia partir imediatamente para Finete. Não falo com ninguém, nem durante a viagem nem depois. Mais tarde, frente a toda a tropa formada na parada de Missirá, leu-se a ordem de serviço com a punição: 8 dias de prisão disciplinar por se ter dirigido ao seu comandante em tom e termos denotando falta de respeito, atitude que impediu a perseguição imediata de um grupo inimigo, porque o seu comandante tinha aberto fogo e abatido um dos seus elementos. E não era mais rigorosamente punido devido às suas qualidades e capacidades de colaboração”.

Um pouco mais tarde, reconciliámo-nos, também está escrito no Diário da Guiné. O Benjamim esteve no jantar do meu casamento no restaurante Pelicano, em 20 de Abril de 1970. Logo a seguir, abandonou o pelotão, já levava mais de três anos de vida militar. Empregou-se como enfermeiro (instrumentista), no Hospital Central de Bissau. Em 1978, fez concurso para o BCEAO, aqui se reformou há dois anos atrás. Azar meu, alguém me informara que morrera num desastre de viação, não muito depois da minha estadia como cooperante por vários meses, em 1991, houvera mesmo um lauto almoço em sua casa, apareceu outro querido amigo, o irmão do Benjamim, Benício Lopes da Costa, então secretário-geral da Assembleia Nacional Popular, era um quadro brilhante do PAIGC, uma grande promessa. Com o Benjamim carteei-me nos primeiros anos após o regresso a Portugal, em Agosto de 1970. Comunicou-me o casamento, enviei-lhe as alianças. Depois a alegria do reencontro, em 1991. Seguiu-se o silêncio, a notícia da sua morte tinha sido tão chocante que nada mais averiguei.

Ora em 1 de Dezembro de 2010 reencontrei o Benício em casa do Chico Bá, encontro mais emocionante não podia ter sido, chorámos convulsivamente, ele tinha escapado a um poderoso AVC, faltou-nos tempo para conversar, seguia para Dakar, para um exame de rotina, eu regressava no dia seguinte a Portugal. Fui aí que perguntei pelo Benjamim, como estaria a família e a resposta calma do Benício alegrou-me: “Ele está bem, a mulher e os sete filhos também”.

E passaram os anos, sem rasto do Benjamim. Há dias toca o telefone, ouviu-se o seu vozeirão inconfundível: “É o Benjamim, finalmente encontrei o Mamadu Camará que me deu este número de telefone. Quero vê-lo rapidamente, sei que há livros que escreveu sobre os nossos tempos, marque encontro”.

Apareceu ao anoitecer de 26 de Setembro, em minha casa. Tirei-lhe várias fotografias, escolhi esta que vos mando. E depois fomos jantar fora e falámos do futuro. No restaurante, tirámos outra fotografia, para que conste.

O Benjamim vem regularmente a Portugal, o assunto é sério e tem a ver com a próstata. Regressa agora a Bissau com os livros e promete telefonar-me, estar em contacto, para o ano, queira Deus, voltaremos a ver-nos.

Há mortes que modificam as nossas vidas, aquela de 3 de Agosto de 1969 reajustou a nossa existência, o que estava quebrado soldou-se, agora pesa o que pesa a nossa amizade. Temos razão para dizer que para todo o sempre. O Benjamim é um dileto camarada da Guiné.

Joaquim Lopes da Costa

Joaquim Lopes da Costa e Mário Beja Santos
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Nota do editor

Último poste da série de 10 DE SETEMBRO DE 2013 > Guiné 63/74 - P12024: Blogoterapia (234): É muito difícil para mim falar da guerra da Guiné (Francisco Baptista)

1 comentário:

Anónimo disse...

Caro camarada Beja Santos

Confesso que fiquei comovido ao ler este relato de um acontecimento traumatizante para todas as partes envolvidas...

Está aqui tudo sobre o que é a guerra.."bestialidade"..carácter...camaradagem..disciplina..indisciplina.

São acontecimentos como estes que definem o carácter de comandantes e comandados...

Louvo a confissão de um acto que pode parecer desumano..mas só por quem nunca passou por estas circunstâncias que é a "bestialidade" da guerra..

Um grande alfa bravo

C.Martins