terça-feira, 23 de julho de 2013

Guiné 63/74 - P11862: Bom ou mau tempo na bolanha (21): O medo na guerra (Tony Borié)

Vigésimo primeiro episódio da série Bom ou mau tempo na bolanha, do nosso camarada Tony Borié, ex-1.º Cabo Operador Cripto do Cmd Agru 16, Mansoa, 1964/66.



O primeiro sintoma, ou a primeira reacção de um combatente em cenário de guerra, quando ouvia uma explosão ou o som de um disparo de qualquer arma, era única e simplesmente MEDO!

Sim, medo. Alguns, como era o caso do Cifra, fugiam para o abrigo mais próximo, muitas vezes encolhia-se num canto, com as mãos na cara ou na cabeça, esperando que o som dos tiros e da explosões das granadas terminassem. Outros gritavam frases sem qualquer senso, disparavam em qualquer direcção onde pensavam que os guerrilheiros se encontravam, tentavam não se acomodar, mas toda essa movimentação, gritos e gestos, era sem qualquer dúvida, o querer afugentar o medo que naquela altura sentiam, essa é a verdade de quem lá andou, presenciou estas malditas cenas e viu os rostos desfigurados de alguns companheiros que queriam demonstrar alguma coragem, mas naquele momento, atrapalhados, com o medo, claro, tinham dificuldade em trocar o carregador da G-3, quando estava vazio.

É dos livros, muitos heróis foram-no, porque o medo e o desespero fizeram com que fossem buscar forças e coragem que nunca souberam onde, para ultrapassar essas dificuldades de medo, que na altura sentiam.

É por isso que eu aprecio os textos de alguns dos nossos amigos antigos combatentes, que escrevem neste blogue, que nos contam algumas passagens verdadeiras do que lá passaram, mas contam-nas com um certo humor, com uma certa graça, tentam sempre pôr um pouquinho de boa disposição em cenas, que às vezes são de arrepiar.

O Cifra não quer abusar do precioso espaço deste blogue, porque daqui a pouco o bom do Carlos Vinhal vai dizer que já tem mais de quatro páginas e umas tantas fotos ou “rascunhos” a mais, o Luís Graça é capaz de pensar que este blogue não é só do Cifra, pois tem que o repartir com mais umas centenas de companheiros, isto é só o Cifra que diz, pois o Cifra, nunca ouviu um só lamúria da boca de ambos, pelo contrário, mas não pode deixar de exemplificar algumas passagens de alguns companheiros, como por exemplo:
O companheiro Jorge Cabral, o “nosso alfero”, no meio daquele ambiente, com muito poucas condições para um ser humano sobreviver, dizia que tomava “banho à Fula”, falava um pouco “à Fula” mas sabia que ressonava “à Fula” e com o maior humor do mundo, comia numa mesa “ensebada” e quando lhe perguntaram se sabia falar Fula, ele respondeu que em Fula... só ressonava!.

O Veríssimo Ferreira, para não dizer que era ele, que andou por lá a calcar bolanhas, tarrafo e savanas, a certa altura diz que o seu relógio “Cauny Prima Swiss, 25 rubis”, que até era “waterproof”, pois tinha que realmente ser, passeou com ele por Bissau, Mansoa, Cutia, Mansabá, Bissorã, Pelundo, Teixeira Pinto, Cuntima, Canjambari, Quinhamel e Farim, e tinha combatido em Buro, Berecobá, Biribão, Jolmete e K3.

O José Manuel Matos Dinis, que muito originalmente se assina com as letras “J.D.”, diz numa altura de alerta, em que as forças militares iriam entrar em acção, que na sua frente aparece um “contra-guerrilheiro”, empunhando a espingarda automática G-3, com o cinturão a pender da cintura, mas sem tapar o órgão genital, que era um bravo combatente da província do Minho remoto de Perre, e que lhe gritava, “eles estão cá dentro”...!


E para terminar, queria só lembrar esta passagem real, vivida num momento de desespero, contada com toda a sinceridade, que o nosso querido companheiro de armas e de profissão, Henrique Cerqueira descreve: “Nós só tínhamos três meses de mato e como é natural nos primeiros momentos de ataque pelo menos deitei-me no chão e só não escavei um buraco porque não sabia se devia usar as mãos para escavar... ou tapar a cabeça. Eis que passados alguns eternos minutos, olho para o lado e vejo o meu Inhata, a municiar a minha arma e a preparar-se para disparar. Aí senti alguma “vergonha”, saquei-lhe a arma das suas mãos e toca a disparar e o Inhata sempre a meu lado a municiar. Este, numa breve acalmia do ataque, teve o cuidado de me confortar dizendo que já estava habituado e que só queria municiar a arma. Eu acho que ele se apercebeu que inicialmente eu estava era todo acagaçado e na verdade estava mesmo”.

Creio, que mais sinceridade nesta descrição não pode existir.

Mas também existem cenas com alguma ternura, de mulheres que por lá passaram e que sofreram o clima, calcaram aquela terra vermelha, ouviram o som dos tiros e o desespero dos seus maridos e companheiros, mas tinham alguma coragem, estavam a seu lado, a dar-lhe o conforto possível, portanto também sofreram a guerra, como a esposa do Henrique, a sua amada Ni, que a certa altura diz: “Quando chegamos a Bissorã e entro na nossa “casa”, fiquei espantada pois estava decorada com os assentos de um carocha, as camas da tropa, tínhamos um frigorífico a petróleo, a casa de banho, eram dois bidões de chapa...!

Tony Borie,
Julho de 2013
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Nota do editor

Último poste da série de 20 DE JULHO DE 2013 > Guiné 63/74 - P11857: Bom ou mau tempo na bolanha (20): O Cifra encontra os seus amigos (Toni Borié)

7 comentários:

Henrique Cerqueira disse...

Camarada Toni Borié. Ou antes meu inegável e simpático Cifra.
Gratos estamos (eu e a Ni) pelas simpáticas letras que nos dedicas.Vindo de ti até me faz sentir um pouco "vaidoso".É que não será todos os dias que o já nosso querido Cifra se lembre das nossas "Histórias"que são mesmo verdadeiras.
E já agora não tenhas duvida nenhuma que desde o primeiro ao último dia o sentimento de medo nunca me abandonou.Só que a partir de certa altura eu usei esse sentimento como arma de "encorajamento". Ainda hoje eu fico grato por ter esse sentimento , pois que o medo faz com sejamos mais cautelosos e aí resolver melhor os nossos problemas. Para mim o sentimento de medo não significa covardia,daí o melhor é identificarmos o mais rapidamente possível os nossos medos.
Mas daquela vês no mato e no meu primeiro "embrulhanço" foi mesmo medo,cagaço,eu sei lá...mas passados os momentos de aflição e já cheio de adrenalina o medo deu lugar á realidade e as coisas se resolveram felizmente.
Bom camarada CIFRA não pares de escrever,nós cá em casa gostamos das tuas "Histórias"que também são as nossas,não é verdade??? E olha que o Carlos Vinhal de certeza que agradece.
Um abraço meu e da Ni
Henrique Cerqueira

Cesar Dias disse...

Olá Tony
Sabes? o Cifra descreve situações passadas por milhares de nós,algumas já não nos lembramos, outras não queremos. Hoje fizeste-me lembrar de algumas, penso que era muito normal.
Continua a escrever Tony.
Um abraço
César Dias

Manuel Carvalho disse...

Caro Tony

Que bem falas dos nossos medos.Era mesmo isso que nós sentíamos.Julgo eu que medo todos tivemos, alguns conseguiam esconde-lo melhor que outros.Ao ler este poste lembrei algumas situações que estavam no fundo do baú.
Gosto muito do que escreves,obrigado.
Um abraço.

Manuel Carvalho

Rogerio Cardoso disse...

Camarada Tony
Continua meu caro, tenho a certeza que todos gostam dos teus comentários, cheios de verdade e realidade. O Luis Graça e o Carlos Vinhal de certeza que gostam também.Já agora, e lendo algumas passagens da NI, esposa do Henrique, que morou em Bissorã, gostava de contar uma passagem de outras duas senhoras, talvez as primeiras das tropas de Bissorã. Uma era a esposa do 1º Sarg. Rogério Meireles, que também lá tinha a filha, uma menina muito jovem na altura,permaneceram talvez perto de 1 ano, foram embora porque o 1º sarg. foi evacuado por doença. A outra era a esposa do Fur.Mil.Massano, que chegou a Bissau no dia que ele era ferido numa mina. Esta senhora passou as passas do Algarve, como se costuma dizer, porque tinha uma pele muito branca e ainda por cima alérgica aos terriveis mosquitos. Também quando de um ataque, normalmente noturno, o seu sistema nervosa não aguentava e o médico ficava sempre com um trabalho acrescido. Eu e uns amigos lá iamos a correr para a sua porta, para que ela se sentisse mais protegida. Isto passou-se em 1964 e 65, estando estacionada a Cart.643-AGUIAS NEGRAS. Estes nossos camaradas já são falecidos desde á muito.
E para ti Tony, mais uma vez continua com os teus bons comentários e como sempre um abração.
Roger

Anónimo disse...

Amigo Tony. São agora 23horas e 4 minutos no meu Cauny Prima, que mais do que eu, ainda trabalha e nem terá direito a reforma.É o companheiro que mais me escuta e compreende, pelo menos não refila. Gostei e gosto do que vais escrevendo e parece que continuas com uma fabulosa memória. Mantém-te assim e vai-nos dando o prazer da tua prosa. Um abraço do
Veríssimo Ferreira

Hélder Valério disse...

Caro "Cifra"

Tu tens mesmo jeito, amigo!
Pegas num tema, normalmente não muito referenciado, dás nome 'às coisas', de forma que quase todos se podem reconhecer, nem que seja pontualmente (excepto os 'rambos', claro!) e depois socorres-te de partes de textos já publicados que ilustram perfeitamente o teu 'discurso'.
Impecável.

Para facilitar a escrita, socorro-me eu agora do que escreveu o Veríssimo e repito: "Gostei e gosto do que vais escrevendo e parece que continuas com uma fabulosa memória. Mantém-te assim e vai-nos dando o prazer da tua prosa."

Abraço.
Hélder S.

Tony Borie disse...

Olá companheiros.
Os vossos comentários, como de outras vezes, fazem-me "corar" as minhas já com rugas e velhas faces, e também me dão alguma responsabilidade do que escrevo, pois tento sempre ser o mais fiel possível nas minhas lembranças e análises, todos vocês exprimem o que vos vai na alma, o que muito agradeço, eu pelo menos gosto muito do que escreve o Jorge Cabral, o Veríssimo, o "JD", o Henrique e a sua amada Ni, entre outros, mais os comentários fieis do César Dias, que me cedeu muitas fotos de Mansoa, do Roger, com quem troco mensagens quase todas as semanas, do M. Carvalho, mas do eu gostava era de ser um comentador como o Hélder, que está sempre atento, se não gosta diz, e justifica porque não gosta, o que em outras palavras, é tal e qual como se fosse um texto publicado, mas em comentário, se gosta também diz que gosta, e diz porquê, portanto é um colaborador do blogue, tal como o Cifra, talvez até mais apreciado.
Eu recuperei, muitos escritos, mal escritos de Mansoa, que na altura fazia e guardava num caderno a que chamava diário, e hoje, por aqui vivendo, por enquanto com algum sossego, cada frase escrita nesse tempo é uma lembrança de outras passagens, e vou tentando reparti-la com os meus companheiros que viveram aquela guerra.
Olhem vou lá fora, andar um pouco de bicicleta, porque nesta altura dos tornados, de um momento para o outro chove a "cântaros", e neste momento está sol de rachar, boa altura para pôr "vitamina D" no meu corpo!
Um abraço do tamanho do mundo para vocês todos.
Tony Borie.