segunda-feira, 17 de junho de 2013

Guiné 63/74 - P11719: Notas de leitura (492): em nome da Grei, por Gustavo Pimenta (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 4 de Março de 2013:

Queridos amigos,
Foi graças à Teresa Almeida, da Biblioteca da Liga dos Combatentes, que tive conhecimento deste livro que é uma imprevista descoberta.
Se as suas memórias da Guiné já nos tinham surpreendido, este relato dos meses de recruta, especialidade, colocação numa unidade a aguardar mobilização e, por fim, a formação de batalhão com destino à Guiné, é surpreendente pelo didatismo comedido, a sinceridade das situações, os desabafos de alma, o desvelamento da intimidade.
Um livro magnifico e tocante que não devia andar escondido ou despercebido.

Um abraço do
Mário


Em nome da Grei

Beja Santos

Se me pedissem alguns títulos de obras sugestivas que explicassem com rigor e probidade o que eram as nossas recrutas e especialidades, não hesitaria em propor o diário do soldado Inácio Maria Góis, o livro “O Pé na Paisagem”, de Filipe Leandro Martins e “Em nome da Grei”, de Gustavo Pimenta, Palimage Editores, 2003.

Falou-se de Gustavo Pimenta a propósito de um livro de grande interesse: "sairòmeM Guerra Colonial", Palimage Editores, 1999, dedicado à sua comissão na Guiné. Obra singular, com estrutura em flashback, ou seja ou acontecimentos vão sendo rebobinados. Escrevia ao tempo que esta boa prosa convincente e afetuosa precisava de três leituras: a primeira, para nos aproximarmos dos factos; a segunda, para nos fixarmos numa cronologia de uma comissão que ocorreu entre 1967 e 1969; a terceira, para incorporar nos cinco sentidos um depoimento sensível e delicado sobre quem viveu quase um ano em Madina de Boé e perdeu soldados naquela trágica travessia da jangada, em Fevereiro de 1969.

Agora temos um funcionário camarário, tem 22 anos, é educado em meio provinciano, Viana do Castelo, recebeu uma guia de marcha para se apresentar nas Caldas da Rainha, lá vai de Viana para Campanhã, daqui à Pampilhosa, Figueira da Foz, Caldas da Rainha, a recruta será no RI5. Descreve a chegada ao pormenor, a caserna, a arrecadação, as primeiras brutalidades no tratamento, o fardamento, a péssima comida. Quando abre espaço ao diálogo, são frases incisivas, telegramáticas. Como se o leitor tivesse todo o direito a saber o ABC da mobilização militar, esmiúça quem frequentava o CSM ou COM, onde ocorriam tais cursos, como se processava a ordem unida, qual a sua linguagem automatizada, abreviada: “Começávamos logo pela manhã, obedecendo às ordens que faziam de nós um grupo marionetas, mantendo o ritmo e o passo acertado ao som de – esquerda, direita, um, dois!, que depressa se transformaram em – erda, eita, um, dois!, assim como – direita volver! e esquerda volver! passaram a – eita er! e erda er!”

A aprendizagem dos postos da tropa, a docilidade dada pela ordem unida, a proibição de não tratar ninguém por colega, as continências, instrução física e a aplicação militar, a limpeza da Mauser, os crosses, a revista à caserna, os testes escritos feitos às sextas-feiras de manhã, sentados na parada com uma prancheta de platex sobre os joelhos e apostando nas opções de escolha múltipla, as excursões de fim de semana até casa, o ambiente das Caldas, o recebimento do pré, as formaturas para sair do quartel, não há pormenor que escape a Gustavo Pimenta: “Botas de cabedal, que se prolongavam em polainas, afiveladas ao lado, até meio da canela; calças de terylene, camisa de popelina; blusão com as insígnias da arma a que pertencíamos, em metal amarelo, espetados nos virados e boina, com o distintivo da unidade no mesmo metal”. Mas também a barba escanhoada, as apresentações na porta de armas e, mais à frente, parece que o leitor entra num pinhal e vai fazer instrução, ensarilha a arma, monta e desmonta a arma, segue para a carreira de tiro, ali ocorrem sempre peripécias, como a do Pires: “Na primeira sessão de tiro que fizemos, o Pires, que integrara comigo a equipa de futebol júnior do Vianense, possuidor de um corpanzil impressionante, não conseguiu ajeitar a posição da Mauser de forma a acomodar o impacto de recuo. Sucessivamente obrigado a fazer os disparos previstos, a dor e o escárnio do oficial da carreira fizeram-no descontrolar até ao choro. Foi humilhado e, com ele, todos nós. No fim da sessão o hematoma que ele tinha na clavícula era do tamanho da nossa revolta e do desprezo, ainda que inútil, que passámos a dedicar ao alferes que a orientou”. E os exercícios noturnos, a malta a trepar por montes e vales, a tiritar de frio, a emboscar o inimigo. Finda a recruta, vai até à EPAM, foi sol de pouca dura, tinha tido alta classificação, seguiu para Mafra. Põem-se problema de consciência: devia recorrer ao Batateiro para passar a salto, ir para França? Sente-se impelido pelo dever, vai desenganado, aquela guerra não lhe diz nada.

Em Mafra, sai-lhe na rifa dormir na capela, o seu instrutor é o alferes Rocha: “no seu porte atlético, bíceps salientes, atarracado, pernas demasiado pequenas para o tronco que tinha, ar de anão – ou de símio, como preferiam os sussurros a meu lado”. Quem vinha do CSM era visto com desconfiança: “Estes gajos acham que nós, o que viemos do curso de sargentos, somos menos do que eles. A mim, em todos estes dias quase não me falaram”. O alferes puxa-lhes pelo físico, andam constantemente suados, enlameados, a jogar boxe, a sofrer todas as agruras do Vale Escuro. As marchas finais foram inesquecíveis, golpes de mão a aldeias encravadas na montanha, não teve alta classificação porque o Rocha considerou que ele não tinha físico para oficial do Exército, ainda por cima usava óculos.

Aspirante, é colocado em Penafiel, um oásis. Foi praxado e não gostou. Escreve a vida em Penafiel, levou uma vida santa até ter sido responsabilizado pela decoração de um túnel, lá encontrou papelada muito ao gosto do comandante. A espera pela mobilização não foi longa, muito menos inesperada. Foi até Tancos tirar o curso de minas e armadilhas, seguiu para Tomar, faz parte da CCAÇ 1790. Ficamos a saber o que lê os filmes que vê, a música que ouve. Volta-se a pôr a questão da deserção, volta repudiar tal atitude. Agora tem que formar soldados, sente-se confuso: “Como fazer deles os melhores soldados do mundo, que são os únicos que vão para além da morte em todas as impérvias lutas e, perante as mais nobres das causas, chegam até à suprema dádiva da vida? Que causas lhes incutir? Antes, que causa a minha?”. A maioria do contingente era gente minhota. Tinham um soldado envelhecido, com 32 anos. Vivia lá nos ermos, metido na aldeia natal, jamais descera à cidade. Até que lhe nasceu um filho e teve que o ir registar. Aí deram por ele, descobriram que era refratário, não aparecera na inspeção militar: “Introvertido, obedecia a tudo sem resmungo, como se obedecer fosse sina com que nascera. Numa das primeiras sessões de aplicação militar, quando se ensaiavam cambalhotas sucessivas, o Jesus, logo à segunda ou terceira, deu um berro e ficou no chão agarrado ao ombro. Tinha fraturado uma clavícula em dois sítios e a recuperação seria problemática e prolongada. No dizer dos médicos, tinha a estrutura óssea de um velho e não era claro que voltasse a ser o mesmo”.

E um dia vem a notícia: a Guiné espera-os. Ele ama profundamente Joana, não sabe o que dizer à namorada, nem aos pais. Continua a insustentável indecisão entre partir ou fugir. O BCAÇ 1933 está pronto para partir para a Guiné, goza as últimas férias, recebe a bênção dos familiares, escreve cartas ainda em Santa Margarida para Joana, julga e pede-lhe que o esqueça. Já embarcaram no navio Timor, começa uma viagem de vários dias até chegarem ao palco da guerra. Tira a carta destinada à Joana do bolso e lança-a ao rio, tem os olhos marejados de lágrimas. “Invadiu-me uma inexplicável alegria. Senti uma convicção absoluta, uma certeza indestrutível: regressaria, no fim da comissão, inteiro e salvo, para a Joana”.

Um livro comovente, continuo a não perceber como é que estas obras andam despercebidas.
____________

Nota do editor:

Último poste da série de 14 DE JUNHO DE 2013 > Guiné 63/74 - P11705: Notas de leitura (491): Atlas dos Instrumentos Tradicionais da Guiné-Bissau (Mário Beja Santos)

1 comentário:

Luís Graça disse...

Mário, nosso crítico-mor, sempre de serviço, e agora comendador:

E será que o nosso camarada Gustavo casou com a Joana, no regresso da Guiné ?... Um triplo abraço, Gustavo, Joana e Mário.

PS - A Teresa Almeida é uma querida tabanqueira. Ainda ontem falei dela, na Atalaia, Lourinhã, ao secretário geral da Liga dos Combatentes, cor Faustino Alves Lucas Hilário. Um beijinho para ela.