terça-feira, 28 de maio de 2013

Guiné 63/74 - P11646: Bom ou mau tempo na bolanha (12): O meu 10 de Junho (Tony Borié)

Décimo segundo episódio da série Bom ou mau tempo na bolanha, do nosso camarada Tony Borié, ex-1.º Cabo Operador Cripto do Cmd Agru 16, Mansoa, 1964/66.




Companheiros e amigos combatentes, no dia 10 de Junho, em Portugal, celebra-se o dia do combatente, e eu aqui, um pouco distante, é o único dia no ano que uso com muito orgulho as insígnias comemorativas das campanhas da Guiné, que me foram colocadas no peito, no Forte da Amura, em Bissau, em Maio de 1966, pouco tempo antes de ter embarcado no navio “Uíge”. E nesse dia devíamos ser nós os combatentes, tal como disse o nosso camarada combatente José Colaço, acompanhado por muitos, que sofreram no corpo aquela guerra, a falar e expressar o profundo sentimento que nos vai na alma. Eu, colocando-me numa hipotética personagem de um filho, cujo pai morreu nas bolanhas e savanas da Guiné, vou contar-vos este texto, que não é bem um texto, é um expressar de um sentimento profundo e quase real, de um filho que ainda chora o pai morto em combate, portanto tirem um minuto e leiam.

Claro que ele me disse, com os olhos chorosos, que é por profundo sentimento que faz isto. Fiquei tão impressionado quando ele falou e pediu a todos para serem atenciosos e lembrarem o que as vidas representadas por aquelas pedras, naquele cemitério de aldeia, significavam.


Quem estava na minha frente e falava era um antigo Combatente do Ultramar, tinha barba crescida, cara com rugas e uma boina muito velha, mas com um emblema muito brilhante. Depois de muito emocionado, ter falado que conheceu o meu pai, que lutou e sofreu junto a ele, que se riu e confraternizou com ele, que ambos viveram debaixo de um miserável abrigo, que eram como irmãos, sabiam segredos um do outro, ajudavam-se e repartiam as agruras de uma maldita guerra, e que um maldito dia, uma mina rebentou-lhe debaixo dos pés, mesmo debaixo daquelas botas já velhas, quase com vinte e dois meses, que conheciam o som dos tiros, o rebentamento de uma granada, as bolanhas e algum tarrafo que existiam na zona de combate onde estava estacionado, foi ele que recolheu o resto do seu corpo.


Esse combatente, limpando uma lágrima, agarrou ainda com alguma força numa coroa de flores, entregou essa mesma coroa de flores a mim. A minha mãe, mal se podendo erguer, limpando constantemente os olhos com um lenço branco, o mesmo que tinha acenado ao meu pai, na despedida, já grávida e trazendo-me na sua barriga, no cais de embarque em Lisboa, antes de ir para a Guiné, que o meu pai lhe tinha oferecido, escolheu a minha neta mais nova para colocar a coroa de flores no túmulo de meu pai, porque essa minha neta, ainda leva o seu nome, e via-se que estava muito orgulhosa. Mais tarde a minha mãe, mostrou-nos um livro com fotografias a preto e branco e estava lá na última página a legenda:

“NÓS, ORGULHOSOS DE TI, NUNCA TE VAMOS ESQUECER”


Isto significou muito para mim, e eu percebi que já fazia parte da minha dor, os meus filhos nunca o conheceram, os meus netos nunca irão encontrá-lo, e eu estava com medo que ele um dia, o meu querido pai, morto em combate nas bolanhas e savanas da Guiné, fosse esquecido.

E virando-me para esse antigo combatente, com a barba crescida, cara com rugas e uma boina muito velha, mas com um emblema muito brilhante, disse-lhe:

POR CAUSA DE TI, O MEU PAI NUNCA VAI SER ESQUECIDO


Tony Borie, 10 de Junho de 2013
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Nota do editor

Último poste da série de 25 DE MAIO DE 2013 > Guiné 63/74 - P11628: Bom ou mau tempo na bolanha (11): Diz-me com quem andas... (Tony Borié)

5 comentários:

Anónimo disse...

Amigo Tony: Só nós não nos vamos esquecendo uns dos outros. As novas gerações, salvo raras excepções, sabem lá quem somos, quem fomos, o que sofremos. Tal como os governantes desta terra, também eles se esquecerão e a própria história é bem capaz de passar sem nos mencionar. Este é um País que esquece tudo e todos. Gostei muito desta tua crónica mas fizeste-me ficar a pensar triste. Um abraço do Veríssimo Ferreira

Hélder Valério disse...

Caro Tony

Dizes bem: "... um expressar de um sentimento profundo e quase real...".

Muito bem escrito, muito bem imaginado, "quase real", ou seja, é bem possível que tenha acontecido num qualquer local.
E de tal maneira assim é que temos o comentário do Veríssimo para o comprovar.

Deixo-te apenas um forte e sentido abraço.
Hélder S.

admor disse...

Caro Camarigo Tony,

O Veríssimo e o Helder já disseram o que eu queria expressar, portanto perfeitamente de acordo com eles, mas se calhar também temos uma pontinha de culpa, porque mesmo em casa não demos a conhecer o que por lá passamos.

Um grande abraço para todos.

Adriano Moreira

Bispo1419 disse...

Um grande abraço, Tony.
Manuel Joaquim

Luís Dias disse...

Caro Tony

Um país que não honra a sua história, não merece todos aqueles que se bateram pela sua bandeira e muito menos aqueles que deram a sua vida - o bem supremo - em honra da sua pátria. Adivinha-se também que um país assim não irá ter grande futuro.

Um abraço.
Luís Dias