segunda-feira, 27 de maio de 2013

Guiné 63/74 - P11637: Notas de leitura (486): "Memórias da Guiné", por Fernando Magro (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 5 de Fevereiro de 2013:

Queridos amigos,
Temos aqui o relato de um capitão miliciano, é um texto sereno e límpido, nada a esconder pelo transtorno causado quando aos 33 anos foi chamado para um curso de capitães.
Tem boas lembranças do trabalho-chave que desenvolveu: os reordenamentos, além de chefiar um serviço no BENG 447 onde, diz com orgulho, nunca houve reclamações das unidades do mato.
Teve uma comissão sem sobressaltos, teve a família ao pé, ajudou inclusivamente um irmão, deu pareceres técnicos à Tecnil, e foi professor.
Nada de heroísmos, só boas lembranças.

Um abraço do
Mário


Memórias da Guiné, por Fernando Magro

Beja Santos

“Este livro é simplesmente um retrato da mobilização de um oficial miliciano na disponibilidade que, por via da sua formação técnica, acabou, fardado militar, por exercer a sua atividade ao longo de dois anos, ajudando a construir casas para os guinéus, participando na realização de infraestruturas rodoviárias e ensinando na Escola Comercial e Industrial de Bissau”. Temos aqui um capitão miliciano à frente de serviços do BENG 447, a acompanhar os reordenamentos e a viver com a serenidade possível em Bissau, acompanhado pela sua família, um texto cheio de boa vontade: “Memórias da Guiné”, por Fernando Magro, Edições Polvo, 2005.

À volta de 1968, o autor descobre que estão a ser mobilizados antigos oficiais milicianos para, depois de um curso em Mafra, irem como capitães à frente de companhias. Fernando Valente tinha regressado à vida civil em 1960 como Alferes miliciano e promovido na disponibilidade a tenente. Casou, nasceu-lhe o filho, lançou-se na vida profissional como engenheiro técnico, e não foi inesperadamente que recebeu o aviso para seguir para Mafra, em 1969. Contava 33 anos de idade, o curso de Mafra não foi fácil para ele, o que ele escreve lembrou-me a experiência que eu próprio vivi: “Esse curso terminou com quatro dias na Serra do Montejunto, onde dormia ao relento, debaixo de pinheiros e me alimentei a rações de combate. Um dos exercícios foi o assalto a uma aldeia completamente abandonada no cimo da serra. Esta aldeia foi tomada por soldados que comandávamos. Nela estavam abrigados outros soldados da Escola Prática de Infantaria, fazendo de inimigos, que nos receberam com grande rebentamentos a que nós respondemos”. Sobreveio-lhe uma cólica renal, se bem que mobilizado num batalhão que estava a ser formado em Chaves, fez exames, descobriu-se hepatite e uma deficiência congénita das vértebras. Passou para a rendição individual e foi parar à Guiné, tendo sido colocado nos Serviços de Reordenamentos Populacionais, na dependência do Comando-Chefe.

Aproveita a circunstância para no seu relato fazer considerações sobre o Império Colonial Português, os povos da Guiné e até o valor estratégico da Guiné, o historial dos movimentos de sublevação e a vida no clube de oficiais, em Santa Luzia. Em Junho chegaram a mulher e o filho, foram viver para uma pequena moradia situada na Avenida Arnaldo Schulz. Recorda o seu impedido de nome Moba, a lavadeira, Inácia e o cão, o Perna Longa. Não esqueceu a estima e consideração que mantém com o general Carlos Azeredo, ambos trabalharam nos reordenamentos. E fala sobre a sua profissão.

“Tratava-se de um serviço dirigido por militares destinado essencialmente às populações civis. Tinham em vista proceder ao agrupamento de diversas tabancas com o fim de constituir aldeamentos onde fosse rentável dotá-los com algumas infraestruturas como elas, postos sanitários, fontanários, cercados para gado e mesquitas. Além disso, tinha-se também em vista, com a execução do reordenamento, a defesa e o controlo da população”. Detalha as aquisições de material e faz mesmo contas: para, por exemplo, 60 casas T2, havia necessidade de adquirir 11700 ripas, 780 kg de pregos nº 15, 600 kg de pregos nº 7, 480 kg de pregos zincados, 420 anilhas de chumbo 5/8” e 8520 chapas de zinco. Refere as construções em adobe e a armação da cobertura com rachas de cibe. Ilustra também o relacionamento entre o BENG 447 e as unidades militares, sendo que as obras eram geridas e supervisionadas pelo pessoal da unidade militar da área: “Geralmente era nomeado um alferes, um furriel e dois cabos (um carpinteiro e outro pedreiro nas suas vidas civis) para fazerem um estágio de alguns dias no BENG 447. Essa equipa, depois de ficar devidamente elucidada sobre o modo de construção das casas, regressava às suas unidades e ficava responsável pela execução das tarefas”. O local dos reordenamentos era escolhido pelo pessoal do Comando-Chefe e naturalmente tinha em linha de conta os terrenos agricultáveis à volta e a defesa das populações era obrigatoriamente viabilizada. Fernando Valente deslocou-se de helicóptero ou de DO aos diferentes locais onde havia reordenamentos e enumera-os: Catió, Cufar, Cacine, Binta, Farim, Bafatá, Bambadinca (Nhabijões), Nova Lamego e Buruntuma. Tinha um horário de trabalho entre as 9 e as 17 horas. Aceitou dar uma ajuda à Tecnil, passava pela obra pelas 8 da manhã e mesmo durante a hora de almoço. E depois aceitou ser professor de Matemática e de Desenho Geral na Escola Comercial e Industrial de Bissau durante dois anos. Na área militar passou a ser conhecido como “Capitão caça-níqueis” devido, claro está, às atividades e rendimentos que auferia. Conta minuciosamente a operação Mar Verde e transcreve, ponto por ponto, o relato do ataque a Conacri feito pelo tenente Januário, o desertor dos Comandos Africanos, que acabará por ser fuzilado, bem como os seus homens. Descreve lazeres, como viagens a Bubaque e bailes na Associação Comercial e Industrial, os produtos expostos na Feira de Amostras de 1971.

Fernando de Pinho Valente tinha muitos irmãos, todos os seis foram chamados a prestar serviço militar obrigatório, o seu irmão mais novo era cabo auxiliar de enfermeiro, pertencia à CART 3493, estava colocado em Mansambo. O irmão terá adormecido durante uma operação e quando acordou encontrou-se sozinho, felizmente que descobriu um trilho, foi por ali fora, lá encontrou gente da sua companhia. Fernando Valente meteu uma cunha ao diretor do hospital, conseguiu uma troca com um cabo enfermeiro apanhado a roubar bens de militares feridos ou doentes. Foi assim que se fez a troca, o irmão Álvaro foi transferido para o hospital militar.

Fernando Pinto Valente levou uma comissão militar sem grandes percalços, a mulher dava explicações em casa e era professora na escola preparatória. Lembra os tornados, os gafanhotos e os grilos. Em Julho de 1972 a comissão findou. E faz o balanço: “Para trás tinham ficado dois anos de algum sofrimento e angústia que nos era ocasionada pela ausência da família e dos amigos, pela insegurança em que vivíamos no dia-a-dia, devido à guerra… Mal chegámos a Viseu também não deixámos de recordar com saudade as amizades novas que fizemos na Guiné, os jantares festivos no BENG, as festas no clube de oficiais, os golfinhos que saltavam em águas límpidas do arquipélago de Bijagós”. Anos mais tarde, numa feira de motonáutica e de equipamentos de campismo encontrou um guinéu que se apresentou esfusiante como seu aluno, assim: “O senhor foi meu professor em Bissau. Como estou contente por voltar a vê-lo! Nós em Bissau gostávamos muito do professor e da sua família. Professor, deixe-me abraçá-lo”.

É um relato singelo, sem mágoas e sem jactâncias. Um deve e haver frontal, com as lembranças de casas que ainda hoje dão bem-estar a muitos guineenses. No termo da viagem que fiz à Guiné, visitei os Nhabijões, queria ver o local onde morreu o soldado Soares, cuja memória preservo, queria ver um local que visitei tantas vezes, em patrulhamentos de rotina, e a caminho de Samba Silate, à procura de canoas próprias para a cambança dos guerrilheiros. E percebo a boa lembrança que o capitão Valente guarda dessas obras dentro dos reordenamentos.
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Nota do editor

Último poste da série de 24 DE MAIO DE 2013 > Guiné 63/74 - P11618: Notas de leitura (485): Tarrafo, segunda edição fac-similada, por Armor Pires Mota (Mário Beja Santos)

1 comentário:

Carlos Silva disse...

Olá Mário

Tenho o livro, que li e reli, pois é interessante.
Vejo que não abordas uma história/testemunho presenciado por ele na reunião dos capitães com o Gen Spínola relativamente à intervenção do então Cap Vasco Lourenço, págs 38 e 39, que também está contada pelo próprio no seu livro " Interior da Revolução - págs 237 a 239 " e é engraçado que o Cor Vasco Lourenço desconhecia que este episódio vinha publicado neste livro, pelo menos até ao momento em que lhe dei a conhecer.
Um abraço
Carlos Silva