sexta-feira, 24 de maio de 2013

Guiné 63/74 - P11618: Notas de leitura (485): Tarrafo, segunda edição fac-similada, por Armor Pires Mota (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 20 de Maio de 2013:

Queridos amigos,
“Tarrafo” foi o primeiro dos diários da Guiné, é contemporâneo do Diário de JERO, curiosamente, é recomendável lê-los um a seguir ao outro, de Binta a Jumbembem a distância é curta.
Armor Pires Mota fez bem em apostar nesta edição fac-similada, dá para esclarecer quais os fantasmas da censura, é bom não esquecer que oficialmente as forças armadas exerciam atos de polícia, aquelas emboscadas, assaltos a bases, recuperação de populações, etc. eram pura ficção.
Lê-se “Tarrafo” e fica-nos a convicção de que o texto é perene, está lá quase tudo e estamos lá quase todos.

Um abraço do
Mário


Tarrafo, segunda edição fac-similada, por Armor Pires Mota

Beja Santos

Impunha-se esta reedição de uma obra que se pode classificar como um diário da Guiné. Com efeito, as crónicas que Armor Pires Mota publicou no Jornal da Bairrada, foram escritas a quente, estão cronologicamente organizadas, a tal ponto emerge o entusiasmo entremeado de desfalecimento, o ímpeto dos primeiros tempos até se chegar ao último texto, em que ele escreve: “dias feitos de nada, inúteis; dias impossíveis de construir, em atiramos a alma para trás das costas porque era grande o peso das sombras que lhe iam por baixo”.

Publicado em 1965, posto timidamente à venda numa livraria de Aveiro, foi imediatamente retirado. É por isso que vale a pena ver cuidadosamente as considerações do censor, do princípio ao fim, o que podia ser dito enquanto prosopopeia enaltecedora da presença portuguesa em África e que estava interdito escrever-se ou supor-se na cabeça de um combatente.

Há três momentos chave neste diário: as primeiras operações, presume-se que à volta de Bissorã; a participação na operação Tridente, de Janeiro a Março de 1964; a vivência na região de Jumbembem, um tempo sem parança, fica-se com a ideia de aquele Batalhão de Cavalaria amargou do princípio ao fim: “Tarrafo, crónicas de um alferes na Guiné”, por Armor Pires Mota, Palimage, 2013.

O que torna este livro uma obra completa é a sinceridade, os altos e baixos de um diário, intercalando-se elogios, vibrações heroicas, cuidados de um olhar etnográfico e antropológico e, gradualmente, uma canseira irremediável, um anseio em voltar para a família, em fazer família. E sempre atravessado por uma certa solenidade, temores, calafrios, a guerra não poupa ninguém. No Como, no auge dos combates, ele escreverá: “Não contarei nada com as cores carregadas. Cada palavra será tão real como a morte ou sofrimento. Não quero que ninguém fique com a impressão que este diário é pura ficção, nem, tão pouco, que me mascarem de valente. Faço tudo por vencer, cumpro e é tudo. Sei mesmo que poderia nem ter começado. Mas hoje senti uma coragem de vencer o silêncio das minhas próprias palavras. Escreverei para mim e não para a eternidade. E aqui estarei para chegar até ao fim”.

Acresce que o diário de Armor Pires Mota acaba por ficar ao dispor do historiador da guerra: nestes relatos é visível ainda um PAIGC militarmente difuso, servindo-se de abatises para emboscar, deficientemente armado, as forças portuguesas combatem de capacete, estão a abrir caminhos que se fecharam logo em 1963; temos aqui a batalha do Como desde os primeiros desembarques, as primeiras trocas de tiros, os ataques e os recuos, a valentia de ir buscar debaixo de fogo o camarada morto, passam-se todas as dificuldades, as mais indescritíveis, mas mesmo assim, o autor pode escrever: “Tivemos missa, como antigamente nas manhãs das grandes batalhas. O altar era feito com duas caixas de cervejas e montado por detrás da velha casa a ruir. De tronco nu ou descalços, mas alma cheia de esperança nos desígnios eternos, todos quanto ali estavam confiavam ao Senhor dos Exércitos as suas angústias, as horas más, as vitórias e derrotas, as saudades da terra e da família, da noiva…”; e temos também aquele norte da Guiné onde ainda tudo é tão confuso na região fronteiriça, com milhares e milhares de deslocados, o PAIGC ainda não tem liberdade de ação, move-se graças a bases que se montam e desmontam, consolidam-se posições como em Cuntima ou em Canjambari, parece que Jumbembem renasce das cinzas, por ali houve abandono, fuga de muitas populações, com ocupação efetiva do território, muitas perderam o medo, acolhem-se à sombra da bandeira portuguesa.

Mal começam as operações, entram numa casa de mato e depara-se-lhe uma situação insólita, com a população em fuga: “Quem não fugiu foi uma velhinha de faces corridas em sulcos pela vida e seios caídos. Sentada dentro de um tufo de bananeiras, a chorar, estava ali, de olhos baixos, como se alguém a tivesse condenado. Mas não. Ninguém a condenou. Tive um momento de espanto, mas não lhe perguntei nada”. Contém-se perante os primeiros mortos e feridos, trata-se de uma guerra cuja dimensão não lhe foi dada na formação para oficial, há para ali bombardeiros, o troar da artilharia, há agentes duplos, aparecem burros carregados de mantimentos, visitam-se tabancas com enfermeiros que levam mezinho.

O Armor Pires Mota que se revela no Como é do combatente que atende ao estado de espírito dos seus homens, que regista os desembarques, os acidentes estúpidos como o do Quítalo que se deixou trair por uma armadilha por ele montada e que explodiu e que apareceu gemendo, rosto mascarado se sangue e lama, peito ensanguentado e sem uma das mãos. Ele escreve no Como, a 24 de Fevereiro: “Há 40 dias que o mundo para nós é a incerteza da hora seguinte. O mundo para nós é de luta, uma terra de sangue e fogo”. E acrescenta: “Uma grande parte da tropa está já inoperacional” e dias depois reza uma oração inesquecível:
“Só Tu sabes, Senhor, a minha hora.
Mas tenho medo porque sou homem e tenho o destino de mãos vazias.
Que as minhas mãos não façam correr sangue inocente, mas que não sejam cobardes se for preciso castigar, matar ou morrer.
Mas tenho medo, Senhor!
Tu bem sabes que eu tenho uma mãe que chora e reza a minha ausência e que a saudade chora dentro de mim como uma criança longe dos braços maternos.
Tu sabes que eu tenho sonhos de ouro e espero de olhos azuis no futuro”.

A ida para Jumbembem significa uma nova etapa, juntar populações, viver dentro do arame farpado, calcorrear tabancas, registar abandonos: “Chegámos a Jumbembem, à serração. A aldeia estava queimada, destruída e a serração tinha um ar de completo abandono. A máquina e as serras haviam gelado. Casas vazias, camionetas desmanteladas como ossos perdidos de uma vida que parou, milhentos bidões e tanto ferro velho que era dinheiro no lixo”. São tempos duríssimos, apanha-se um ciclista em fuga, toca de se disparar, descreve-se a vida na caserna, os perigos na noite, as flagelações, as emboscadas. Há a imensa curiosidade por perceber pelo conteúdo das festas até, porque é que se mata um carneiro em sacrifício, qual a essência de um batuque. Em Jumbembem escreve-se uma carta de amor: “Sei que, além do mar, pensas em mim a estas horas e, talvez, colhas a primeira flor de primavera. Falas-me de ti, de mim, da nossa rua que está mais bonita. Compreendemo-nos muito bem e de tal modo que sou capaz de acabar uma frase que tu deixes incompleta, sei que eu traia a tua maneira de pensar” e regista-se o que diz um soldado ferido a um companheiro: “Quando regressar à metrópole, se eu morrer, peço-lhe que vá a casa dos meus pais e lhes diga que nunca os esquecerei”.

Tenho muito orgulho em ter escrito quando há anos descobri “Tarrafo”: “Outro valor histórico não tivesse e ficariam parágrafos indesmentíveis, solenes, melancólicos, pensamentos que ocorreram a qualquer um de nós”.
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Nota do editor

Último poste da série de 20 DE MAIO DE 2013 > Guiné 63/74 - P11600: Notas de leitura (484): Os Portugueses nos Rios da Guiné (1500-1900), por António Carreira (3) (Mário Beja Santos)

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