domingo, 19 de maio de 2013

Guiné 63/74 - P11597: Notas de leitura (483): Soronda - Revista de Estudos Guineenses - Dezembro de 2000 (2) (Francisco Henriques da Silva)

1. Mensagem do nosso camarada Francisco Henriques da Silva (ex-Alf Mil da CCAÇ 2402/BCAÇ 2851, Mansabá e Olossato, 1968/70), ex-embaixador na Guiné-Bissau nos anos de 1997 a 1999, com data de 16 de Maio de 2013:

Meus caros amigos e ex-camaradas de armas,
Na sequência do meu "post" anterior, junto segue a 2.ª parte da minha recensão sobre o número especial da revista "Soronda" relativo ao conflito armado de 1998-1999.

Afiguram-se particularmente interessantes os "cartoons" de Fernando Júlio, “A guerra desenhada – Lutu na Polón di Brá”, de que reproduzo alguns, em que o desenhador compara, com humor, a guerra civil à luta livre tradicional, muito popular na população bissau-guineense, onde, todavia, há sempre a enorme vantagem de não se registarem mortos.

Com os meus cumprimentos cordiais e amigos
Francisco Henriques da Silva
(ex-Alf Mil de Infª
CCaç 2402,
ex-embaixador de Portugal em Bissau 1997-1999


Soronda – um exercício a várias vozes sobre a guerra civil

(continuação)

Mamadu Jao faz uma “Leitura do Conflito Guineense” em que analisa as causas e consequências da guerra de 7 de Junho. No que concerne as causas, segundo ele, não existe, até à data, uma versão que se possa considerar consensual: para uns, designadamente para o Poder político em Bissau o conflito constituiu uma verdadeira surpresa; para outros, o país reunia todas as condições objectivas (políticas, económicas e sociais) e subjectivas para a eclosão das hostilidades em larga escala. Calcula o número de mortos em 6.000, o que se nos afigura exagerado, desconhecendo-se o rigor da cifra apresentada e como se atingiu tal valor. Considera ainda que a guerra colonial de 11 anos não atingiu a crueldade desta que, em contraste, durou apenas 11 meses. Em conclusão, para o autor, quando o conflito tem lugar, a Guiné-Bissau debatia-se com uma profunda crise económica e social, perfilhando por conseguinte a segunda tese. Adianta que a guerra não se traduziu em condições mais dramáticas para as populações devido ao espírito de solidariedade e de entreajuda, sobretudo no interior do país, mais tangível nas primeiras fases da guerra e menos na fase final, em que se geraram mesmo alguns focos de tensão.

“A tragédia de Junho de 1998 – factos e comentários” de Leonardo Cardoso é um texto em que, à parte um ou outro elemento novo eventualmente a reter, repete informação já conhecida e especula de forma infrene sobre o envolvimento de países exteriores à região (neste caso, a França e Portugal). A análise centra-se sobre as razões do conflito e as diferentes tomadas de posição sobre o mesmo, bem como, a variabilidade dessas mesmas tomadas de posição ao longo da contenda. Não primando pela inovação, nesta matéria, o autor repisa os habituais lugares comuns de todos os que escreveram sobre o conflito. Aponta como motivos para a guerra a crise generalizada política, económica e social com que se debatia a Guiné-Bissau culminando no levantamento de 7 de Junho. A deficiente democratização do país, a má governação, a gestão deficiente, a corrupção endémica, a degradação das condições de vida da população, os problemas nas áreas de maior impacto social (educação e saúde) são alguns dos temas glosados à exaustão ao longo de vários parágrafos. Para Leonardo Cardoso “começava a desenhar-se o início do fim da era do PAIGC enquanto partido no Poder e do autoritarismo do seu líder, Nino Vieira” (p. 132). Mais grave ainda era a situação no seio das FA’s com diferentes facções que se opunham entre si, num ambiente tenso e malsão. Quanto ao tráfico de armas (considerada por quase todos os autores como uma das causas do conflito), o autor alega que não está na origem, mas que foi apenas um acelerador do processo. Em seguida, L. Cardoso, depois de se referir à condenação internacional do levantamento militar, analisa as posições de Portugal e da França. As adesões à Francofonia e à UEMOA da Guiné-Bissau conduzem a uma “derrapagem da política linguística e cultural de Portugal nesse país “franco-luso-africano a favor da França que multiplica as suas ações e vê as suas relações com a Guiné-Bissau cada vez mais fortalecidas” (p. 144). Afigura-se-nos que, neste particular, apesar de Leonardo Cardoso ter parcialmente razão, está a analisar o problema de modo muito superficial, o desenrolar da guerra, designadamente a intervenção dos países vizinhos, e o seu desfecho vêm precisamente contrariar esta tese. Refere-se a uma alegada “intervenção francesa directa” (bombardeamentos por navios franceses, militares desta nacionalidade na linha da frente, morte de 2 militares, etc.). Trata-se, bem entendido, de pura especulação sem qualquer fundamento ou coerência. Em seguida, com base numa notícia publicada pelo “Observatório” da Liga Guineense dos Direitos Humanos (de Novembro de 1998) refere que o embaixador de Portugal em Bissau, na altura eu próprio, teria, supostamente, recebido um telefonema anónimo, cerca das 5 e 30 da manhã, de 7 de junho de 1998, a informar-me do levantamento militar, que eclodiria minutos depois, o que é totalmente falso. Afirma L. Cardoso: “É, no mínimo, questionável este telefonema. Que relações existiam entre o embaixador português e o levantamento militar? O levantamento representava. algo de importante para Portugal ao ponto de o seu embaixador ser informado em primeira mão ainda antes de começar, com todos os riscos que a chamada pudesse representar caso fosse interceptada?” (pp. 149-150). O delírio destas pretensas informações, sem qualquer credibilidade ou fundamento, é absoluto. É questão para nos interrogarmos quanto às razões que levaram à respetiva publicação. O autor vai ainda mais longe, considerando que a prontidão em evacuar os cidadãos portugueses , “permite concluir que Portugal estava na posse de informações sobre as disposições da Junta Militar” (p. 150), o que é um absurdo. Poder-se-á dizer que devido à situação de grande instabilidade político-militar na Guiné-Bissau, Portugal dispunha já de um plano secreto de evacuação (Operação Crocodilo) que foi acionado logo que se encetaram as hostilidades, o que, aliás, é hoje bem conhecido. O autor alude ainda ao “envolvimento de Portugal no conflito ou de uma grande simpatia para com a Junta Militar, à qual tinha sido prometido o apoio da marinha portuguesa caso se consumasse o envio das corvetas francesas” (ibid). Eis, Alice, resplandecente, no País das Maravilhas! Quaisquer comentários adicionais são inúteis.

“La guerre des mandjua – crise de gouvernance et implosion d’un modèle de résorption de crises” de Fafali Koudawo trata-se de um dos artigos mais interessantes desta edição especial da “Soronda”. Mandjua significa em crioulo pares, ou seja da mesma idade, da mesma geração. No sistema tradicional vigente na Guiné-Bissau, o termo refere-se à igualdade social e à identificação com o mesmo grupo etário. Para Koudawo estamos perante uma crise multidimensional. Se a razão imediata para a guerra consistiu no tráfico de armas para os rebeldes de Casamansa, as causas remotas são mais complexas, a saber: as marcas deixadas pelo processo de independência por um partido armado; os efeitos perversos do sistema de hegemonia politica do PAIGC; a insuficiente despolitização (leia-se, despartidarização) das FA’s, consideradas o braço armado do PAIGC; a incompleta conversão do PAIGC em partido civil; a difícil adaptação do partido único ao novo contexto politico pluralista; a questão mal resolvida da desmobilização dos antigos combatentes, abandonados pelo Poder; a cisão entre ex-combatentes privilegiados versus ex-combatentes proletarizados (lumpen), ou seja um sistema iníquo criado pelos antigos companheiros de luta; os obstáculos reais à criação de um verdadeiro estado de direito; a preeminência da má governação com problemas graves de administração e de gestão do Estado e dos recursos do país, a opacidade e a corrupção. Koudawo coloca o acento tónico na questão da má governação e na ruptura dos equilíbrios que engendrou.

Seguindo as teses de Fafali Koudawo, ao longo do tempo, a transferência de competências institucionais para círculos privados traduziu-se numa efetiva privatização das instituições e numa forte informalização do Estado. A suspensão de Ansumane Mané do cargo de CEMGFA em Janeiro de 1998 e o aumento das tensões entre fações militares, atinge, digamos, um ponto de não retorno quando a crise (designadamente a questão do tráfico de armas) sai dos círculos informais e passa para os circuitos formais. O Parlamento tenta reabsorver uma situação crítica, o que deveria ser considerado normal, mas, com efeito, acaba por gerar maior instabilidade. O autor conclui: “A guerra não é pois o simples resultado do fracasso duma saída da crise, é também a consequência fatal duma tentativa de saída do Estado informal. Posto noutros termos se a crise é resultado da má governação, a guerra é o resultado duma tentativa abortada de instrumentalização da boa governação numa situação de crise. É este aparente drama da boa governação que constitui o paradoxo Bissau-guineense.” (trad. pp. 157-158). Por conseguinte, a má governação constitui, por assim dizer, o elemento decisivo, o que engendra um sistema informal de resolução de gestão de conflitos nas diversas esferas de poder (económico, politico e militar) com ramificações por toda a sociedade, prevalecente na Guiné-Bissau desde a independência, mas que é posto em causa quando da abertura política em 1991 e sobretudo nas eleições de 1994. O PAIGC e o velho sistema informal de resolução de crises desorganizam-se e não podem funcionar, como no passado, porque as regras do jogo são outras. Os mandjuas (os pares, os iguais) que resolviam os problemas entre si deixam de o poder fazer e os diferendos passam para os circuitos formais e institucionais de eficácia precária ou inoperantes. Os actores sentem que a situação lhes escapa, mas concomitantemente sentem também que as questões permanecem todas em aberto e sem solução à vista. Esta manifesta incapacidade de gestão dos conflitos internos está na origem do levantamento militar, ou seja na expressão violenta do descontentamento, pela via das armas, com inevitáveis reflexos regionais e internacionais. Atente-se que Nino pensava ter resolvido o problema do partido no VI Congresso pela via informal e preparava-se para suprimir a resistência do CEMGFA suspenso, por processos semelhantes. A revolta de Mané é um elemento capital, mas só pôde ser concretizada porque – e não é demais sublinhá-lo - não foi um ato isolado. Tratava-se sobretudo da recusa na restauração da hegemonia pessoal e autoritária em torno do Presidente da República (v. p. 168). Nino procurava impor-se e conquistar o Poder absoluto. A mensagem dos mandjuas é simples: Nino não é mais que um primus inter pares e os pergaminhos do tempo de luta devem-se igualmente aos seus iguais.

“O impacto do conflito na reserva da biosfera do arquipélago Bolama-Bijagós” de Justino Biai, refere que as ações beligerantes levaram muitos milhares de cidadãos de Bissau a procurar refúgio em regiões menos afetadas pela guerra, como foi o caso do arquipélago Bolama-Bijagós. Para alem dos deslocados, as ilhas receberam também militares estrangeiros, senegaleses e conacri-guineenses que para ali foram destacados, uma vez que o aeródromo da ilha principal, Bubaque, era vital para os militares leais a “Nino” Vieira e para a tropa estrangeira, sobretudo após a queda do Leste (Bafatá e Gabu) a favor da Junta Militar. Todavia, o arquipélago é uma reserva da biosfera e possui um eco-sistema muito frágil. A população aumentou desmesuradamente o que veio a prejudicar os recursos naturais e as atividades da população local.

“O Impacto do conflito político-militar sobre o Instituto Nacional de Estudos e Pesquisa” de Samba Sané é amplamente referenciado neste artigo. O INEP era uma instituições científicas e culturais de referência na Guiné-Bissau. Situado na linha da frente, entre a tropa de “Nino” Vieira e dos seus aliados e os rebeldes da Junta Militar, foi alvo de bombardeamentos, pilhado e saqueado. Serviu de caserna à tropa senegalesa. A maior parte da documentação e do material foi destruída ou roubada. “Todo um trabalho de mais de 15 anos de recolha de dados com vista à constituição da memória histórica do país desapareceu” (p. 211).

O antropólogo francês Gérald Gaillard, da Universidade de Lille, publica um extenso artigo intitulado “La guerre en son contexte: histoire d’une erreur politique” que se divide em quatro partes: na primeira, analisa a história da Guiné-Bissau, sobretudo a partir de 1980; na segunda, debruça-se sobre a guerra civil, com alguma minúcia; na terceira, em que predomina a especulação amiúde infundamentada, avalia a queda de “Nino” Vieira, as políticas divergentes da União Europeia, uma vez que Portugal e a França alinharam em campos opostos e, sobretudo, tenta compreender os erros desajeitados cometidos por Paris na análise da situação bissau-guineense, das realidades locais e dos jogos internos de relação de forças; finalmente, na quarta parte, examina a situação da Guiné-Bissau no rescaldo da guerra civil, o problema de Casamansa, a influência líbia na região, designadamente, na Guiné-Bissau e na Gâmbia e a situação neste último país. A primeira e segunda partes constituem uma narrativa descritiva relativamente extensa que nos vamos abster de comentar em geral, limitando-nos a referir quatro ou cinco questões pontuais. Para Gaillard não há uma cesura étnica na Guiné-Bissau o que, a seu ver, demonstraria uma grande maturidade por parte do povo bissau-guineense. Parece-nos uma conclusão apressada e superficial. Ao referir-se às eleições de 1994, alega que “Nino” não terá obtido votos junto dos veteranos de guerra, o que demonstraria que estes já não estariam maioritariamente com ele. Não se sabe até que ponto esta asserção é verdadeira. Apesar de todos os defeitos do regime, as agências de cooperação e assistência internacionais e as embaixadas estrangeiras teriam confiado em “Nino” na ausência de uma alternativa viável – i.e., não haveria ninguém para o substituir. Esta conclusão é presumivelmente verdadeira. Estamos em crer que Portugal, a França e os demais países apostaram sempre em Kabi, até porque estavam convictos que o regime, apesar das turbulências, estava de pedra e cal e o PR para ficar. Gaillard refere-se ao dossiê petrolífero e às reservas off-shore bem como às posições perdedoras da Guiné-Bissau nesta matéria, sem, porém, entrar em grande pormenores. Seria importante que o tivesse feito, mas trata-se, bem entendido, de matéria opaca. Afirma que a “luz verde” para o ataque final às posições ninistas em 6 de maio terá sido dada pelo presidente nigeriano Abdulsalami Abubakar a Ansumane Mané, o que se nos afigura totalmente especulativo e pouco crível. Para o autor, Portugal ao conceder o asilo político a Vieira, no fundo, “impôs” (?) uma solução que evitaria o respetivo julgamento em território da Guiné-Bissau. Desconheço que elementos de informação dispôs Gaillard para poder concluir desta forma. Ora bem, se se deparam com especulações na primeira e segunda partes aquelas continuam com uma intensidade quiçá reforçada na terceira e quarta, até por que aqui a matéria de facto já não é tão abundante e a imaginação não tem fronteiras. É claro que a ausência de uma política europeia comum em relação à Guiné-Bissau, como em relação a n outras regiões do mundo e a outros tópicos de politica externa, é no fundo uma tautologia. Considera que a França falhou ao acalentar uma aproximação da Guiné-Bissau ao Senegal e a integração do país no conjunto francófono. Todavia, Gérald Gaillard chega a advogar que a Guiné-Bissau se possa tornar uma província do Senegal (!). Finalmente, para além dos erros crassos cometidos pela França, duvida da capacidade de Portugal se impor como coordenador da politica externa europeia na Guiné-Bissau. Trata-se a meu ver de um problema geral de falta de confiança no nosso país, que, aliás e infelizmente, não é só apanágio de certos autores franceses.

Finalmente, Fafali Koudawo, analisa os “cartoons” da história em quadradinhos de Fernando Júlio no texto intitulado “A guerra desenhada – Lutu na Polón di Brá” em que compara, com humor, a guerra à luta livre tradicional, muito popular na população bissau-guineense, onde, todavia, não se registam mortos.


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Nota do editor

Último poste da série de 18 DE MAIO DE 2013 > Guiné 63/74 - P11591: Notas de leitura (482): Soronda - Revista de Estudos Guineenses - Dezembro de 2000 (1) (Francisco Henriques da Silva)

1 comentário:

Unknown disse...

Caros Camaradas.
Na minha simplicidade intelectual depois de ler este artigo nao posso deixar de escrever este comentario, alem do meu servico militar na Guine, e mais tarde como professional durante cerca de dez anos, trabalhei em quase todos os paises africanos e como tal na medida, como atraz disse do meu simples intelecto, o que me da certo conhecimento de causa. O problema da instabilidade politica e social nos paises africanos, e de que aparentemente ninguem fala por ignorancia o por manter uma atitude politicamente correcta e de que se esqueceram de que a base social dos africanos e o premordial tribalismo o que proibe a esta sociedade establecer uma conciencia nacional e sem aqual uma verdadeira independencia nao sera possivel, foram os paises colonialistas pelos seus interesses economicos (caso do celebre Mapa Cor de Rosa) que debaixo da arbitragem to Presidente Americano James Monroe defeniu fronteiras geograficas que nao teem nada que ver com os imperativos territoriais da mutitude de tribos (etenias)que ai vivem. Lembro agora de uma conversa que tive com um cidadao to Ghana e que e emblematica desta minha opiniao: Ele doutorado pela Universidade de Pequim ( Financas) viu-se obrigado a trabalhar como empregado de uma bomba de gasolina em Accra apos a queda do regime do Kwame Nkrumah porque simplesmente nao pertencia a tribo no poder, foi de Ministro a "Bombeiro", ja vai sendo tempo de o mundo se educar e aprender a manterse na realidade y nao num pseudo intelectualismo.
Um abraco-Ze