quarta-feira, 17 de abril de 2013

Guiné 63/74 - P11414: Bom ou mau tempo na bolanha (3): O Tótó e o vinho (Tony Borié)

1. Terceiro episódio da nova série do nosso camarada Tony Borié (ex-1.º Cabo Operador Cripto do Cmd Agru 16, Mansoa, 1964/66) Bom ou mau tempo na bolanha.



O António, mais conhecido pelo nome de “Tótó”, talvez por ter o nariz um pouco grande e achatado, era oriundo do Alentejo. Depois de fazer o exame da quarta classe de instrução primária, veio para os arredores da capital, para um bairro bastante popular, para casa de um tio que tinha uma tasca, que vendia vinho ao copo e sandes de presunto, de queijo, e sardinhas e carapaus fritos de escabeche.

O tio, aos poucos, foi ensinando o sobrinho as manhas do negócio. À noite, depois de fecharem a tasca, na altura de arrumarem as cadeiras para varrerem o chão, em que nalguns sítios até era térreo, ele explicava ao sobrinho, dizendo:
- Ouve lá, oh António, por exemplo, a água serve para fazer vinho de tudo, até de uvas. O presunto das nossas sandes é de puro porco preto, mas na verdade é de porca prenha que já pariu seis vezes e morreu ao parir a sétima vez. O nosso queijo, puro da serra, de ovelhas que pastam na montanha e que só comem carqueija, mas na verdade é de leite de vaca, misturado com batata cozida e moída depois de seca. O peixe que nós vendemos depois de frito, e dizemos que é fresco, apanhado umas horas antes, foi apanhado a semana passada, pois é o resto do mercado, mais barato, e nós fazemos este molho de escabeche que é para lhe tirar o gosto do atrasado, compreendes? Às vezes, se há muita freguesia, e conseguimos vender a travessa toda, fritamos mais, e até é fresco, mas nesse caso aumenta-se o preço.

E terminava, dizendo:
- Aprende António, que a vida não é simples, é complicada, temos que ser mais espertos, para sobreviver, rapaz!

Foi neste ambiente que o António cresceu. Era um bom companheiro e tinha algum “esperto no cabeça” pois a sua posição no aquartelamento era deveras importante, a sua principal tarefa era padeiro, por sinal um bom padeiro, pois trabalhava sob umas condições bastante precárias, mas desempenhava o seu trabalho com uma certa eficiência. Também estava encarregue da distribuição desse precioso líquido, que era o vinho, portanto o “Tótó” era popular no aquartelamento. Trabalhava debaixo das ordens do Sargento da messe e do Arroz com Pão, que era o cabo rancho. Normalmente havia sempre de reserva cinco barris de vinho, pois o Sargento da messe, dizia:
- Pode faltar tudo na vida dos militares, mas vinho tem que haver, nem que vá eu próprio a Portugal, comprá-lo!

Era assim o Sargento da messe, “burro” no dizer de alguns, pois não sabia fazer contas, mas muito boa pessoa no trato e nas atitudes.
Mas vamos continuar com a história, pois o protagonista é o “Tótó”.
Havia um pequeno armazém, podemos chamar-lhe assim, debaixo do mesmo cabanal, onde estava instalada a padaria, armazém este, onde só o “Tótó”, o Sargento da messe e o Arroz com Pão, tinham acesso, e era onde se guardava, entre outras coisas, os barris de vinho, que eram cinco, mas que em determinada altura passaram a seis. Por acaso, o Arroz com Pão reparou na anomalia, também por acaso fez saber ao Sargento da messe, e vão verificar porquê esse engano, pois apesar de ter fama de ser “burro”, sabia contar até cinco, verificando melhor, havia seis barris de vinho novos, todos selados, sinal de que nunca foram abertos, mas não estavam cheios, um, até parecia que estava pouco mais que meio, todos tinham falta de líquido, o que no pensamento do Sargento da messe que era “burro”, até lhe parecia natural, pois dizia que talvez o líquido se tivesse evaporado durante o transporte e mudança de clima. Havia a um canto, em cima de uns troncos de palmeira, um outro barril que estava em uso, com uma torneira de metal, fechada com um cadeado, cuja chave, normalmente o Arroz com Pão trazia consigo, e que facultava ao “Tótó”, na altura das refeições. A partir desse momento, o Sargento da messe disse que se tinha que reduzir para cinco barris cheios e um em uso.

E tinha sido verdade, esses seis barris estavam selados, nunca foram abertos pelo local que deviam de ser, pois o “Tótó”, tinha o seu pequeno negócio de um púcaro do café, quase cheio de vinho e um bocado de pão quente, que podia ser comido simples, ou com alguma manteiga que alguns traziam, que vendia por um mísero “peso”, às vezes mesmo nada, era de graça, só pagava quem tinha “patacão”. Tudo fora de horas, pela noite dentro até madrugada, num canto, atrás da rima da lenha, fora das vistas, onde se guardava os sacos da farinha, que também serviam de assentos, do cabanal da padaria, aos amigos de confiança e já conhecidos, no qual se incluía o grupo do Cifra. Para os estranhos e tropas novas, a padaria àquela hora estava em pleno labor, mas fechada aos militares, e a maneira como fazia acrescentar o número de barris e sempre selados, era simples, removia um arco de ferro ao barril, fazia um buraco, tirava o líquido, tapava o buraco com uma peça redonda de madeira e colocava de novo o arco no seu lugar, ficando tudo impecável, selado sem qualquer vestígio, e deste modo tinha quase sempre um barril a mais, que neste caso era o que estava um pouco mais que meio. Com vinho tirado dos outros barris, que estava sempre em uso, de onde tirava o que dispensava aos amigos, pois à noite, retirava o arco de ferro e colocava uma pequena torneira de madeira no buraco já aberto, virava o barril 300 ao contrário, e era a maneira simples como enchia o púcaro.

Depois da inspecção do Sargento da messe e do Arroz com Pão, que nunca descobriram porque havia seis barris, e quando começou a haver só cinco barris de reserva, o negócio parou, pois o “Tótó”, dizia que era um “taberneiro sério” e tinha um nome a defender, e também desconfiava que depois da inspecção, pelo menos o Arroz com Pão, ficou a saber que havia por ali alguma tramóia, se já não soubesse antes, pois tudo fazia crer que já sabia. Tudo isto aconteceu, para grande desgosto do Cifra e de alguns, mas havia sempre maneira de um modo ou de outro, de não faltar o precioso líquido, fora da sua rede normal de distribuição, pois o vinho, era a alegria da maior parte dos militares, já fazia parte das suas miseráveis vidas, naquele cenário de guerra a que estavam sujeitos.

O “Tótó”, cobrava um mísero “peso”, não era pelo valor, era o vício do negócio que o tio lhe ensinou.

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Nota do editor:

Último poste da série de 14 DE ABRIL DE 2013 > Guiné 63/74 - P11391: Bom ou mau tempo na bolanha (2): Regresso a Portugal e matrimónio (Tony Borié)

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