sábado, 9 de março de 2013

Guiné 63/74 - P11221: Do Ninho D'Águia até África (56): ...tudo parecia redondo (Tony Borié)





1. Quinquagésimo sexto episódio da série "Do Ninho de D'Águia até África", de autoria do nosso camarada Tony Borié (ex-1.º Cabo Operador Cripto do Cmd Agru 16, Mansoa, 1964/66), iniciada no Poste P10177:




DO NINHO D'ÁGUIA ATÉ ÁFRICA - 56


O mês era Abril, e alguns diziam:
- A Páscoa, está à porta!.

Para o Cifra, tanto fazia ser Páscoa como Natal, os dias eram iguais, andava por ali, fumava os seus cigarros, umas vezes normais, outras vezes “especiais”, quase sempre trazia nas mãos uma garrafita de “coca-cola”, cheia de álcool, alguma água e um pouco de vinho ou café para lhe dar a cor, parecendo coca-cola, não aparecia à hora do comer e depois roubava pão e vinho, e quando havia oportunidade, álcool ao Pastilhas, metia conversa com este e com aquele, mas o final da conversa era sempre, “tirem-me daqui”. O Curvas, alto e refilão, já não se podia aturar, tinha sempre razão, os outros é que estavam todos errados, mas nesse dia reparou numa coisa diferente.


O Curvas, alto e refilão, andava em cima de uma bicicleta, muito velha, mesmo velha, sem pneus, com os aros tortos a fazer barulho no chão, de vez em quando desiquilibrava-se, quase que caía, colocava os pés no chão e gritava palavras obscenas, bicicleta esta, que possivelmente roubou a algum miúdo natural da aldeia com as tais casas cobertas de colmo, que ficava próximo do aquartelamento, trazia vestido uns calções rotos, em que o forro dos bolsos já tinha desaparecido há muito tempo, nos pés trazia os restos de umas botas de pano e borracha que tinham sido novas há vinte e dois meses atrás, amarradas com um fio, a servir de atacadores, somente nos dois últimos buracos do resto das referidas botas.
A medalha cruz de guerra andava pendurada na frente do resto da camisa suja, que tinha sido amarela quando as botas que trazia nos pés eram novas, medalha esta que balançava com o movimento do seu corpo. Guiava só com uma mão, pois a outra trazia o maço de cigarros “três vintes” e o isqueiro que o Movimento Nacional Feminino lhe tinha oferecido, por indicação do Cifra, não que ele o tivesse pedido, isqueiro esse que funcionava a gasolina ou a álcool, que ele roubava da enfermaria quando apanhava o “Pastilhas” desprevenido, pois o “Pastilhas” quando o via próximo, escondia o frasco do álcool. Quando isso acontecia, usava gasolina e deitava um cheiro que alguns diziam:
- Cheira a gasolina, anda por aí o Curvas, alto e refilão.

Andava na bicicleta, não conseguia rolar pois mais que uns escassos metros, voltava a desiquilibrar-se, quase que caía de novo, e então dizia com a voz um pouco alta e algo excitado:
- Fujam, fujam caral..! Que esta merda, ainda vai cair!

O Cifra olhou para ele e sentou-se em cima de uns restos de um barril de vinho vazio, que por ali andava a já não sabia há quanto tempo, tapou a cara com a mão, em sinal de desespero, pois estava nesse momento a pensar na sua aldeia do vale do Ninho d’Águia, passado uns momentos, tira a mão da cara, e olhou para o tampão, que também era redondo, e pensou para si:
- Isto é muita coincidência.

Olhou para o seu relógio de pulso, que também é redondo, e rondava por volta das seis horas da tarde, o Curvas, alto e refilão, rodava na bicicleta velha, com as rodas tortas, a pequena bolanha, ou seja pântano, que existe ao fundo do aquartelamento, também é redonda na sua superfície, pássaros de diversas cores, voavam e rodavam em redor uns dos outros, na tal pequena árvore florida, de que já se falou, no princípio desta série de textos e que existe junto da bolanha.

Verificando melhor, lá ao fundo, vem um bando de patos rodeando a bolanha, o furriel miliciano vai a passar por ali, com um cigarro feito à mão na boca, leva a sua G-3 ao ombro, que acabou de limpar, no cabanal, era assim que se chamava ao local onde os militares de acção limpavam e oleavam as armas, que era um lugar que alguém se lembrou de fazer, com quatro estacas de troncos redondos de palmeiras, cobertas com três folhas de zinco, já com alguma ferrugem que andavam por ali, depois alguém para lá levou uns barris de vinho vazios, também redondos, que serviam de mesas, e lá começaram a limpar as armas, passando a chamar-se, “o cabanal da limpeza de armas”. O dito furriel, com uma habilidade espantosa, talvez sobre influência do cigarro feito à mão, dá um tiro certeiro num dos patos, talvez para experimentar a arma, que rodou sobre si, morto por uma redonda bala, saída de um redondo cano, o resto do bando dos patos continuou a rodear a bolanha, mas fugindo, na procura de novos rumos. O Cifra, pensou para si:
- Estou a ficar maluco, é tudo redondo, por favor tirem-me daqui!


Olhou melhor para o barril vazio, e os aros também eram redondos, o buraco no meio, também era redondo, assim como a rolha, e ficou a pensar que o pato que o furriel miliciano matou, sem tirar o cigarro, feito à mão, da boca, cigarro esse que apesar de encurrilhado, na mente do Cifra também lhe parecia redondo, e pensou que o pato morto com o tiro certeiro, não rodará mais, mas fará rodar os membros de quem o comer, e de repente, põe de novo a mão na cara, fica por segundos a pensar e lhe volta à ideia a sua aldeia do vale do Ninho d’Águia e quando era criança também formavam uma roda em redor uns dos outros, esperando que o futuro os rodeasse com os seus caprichos, e quem sabe se foi graças à roda que se inventou a bola de futebol, e por falar em bola, lá ao fundo vem o Trinta e Seis, que é baixo e forte na estatura, e que no pensamento do Cifra, não vem a caminhar, vem a rebolar, pois também parece redondo como uma bola.

Era demais, tinha que ir ver o “Pastilhas”, o tal cabo enfermeiro, pois já estava a ficar tonto, e por cima não tinha fumado nenhum “especial”, e a pensar em tudo isto, levantou a cabeça e reparou lá ao longe que o sol, também redondo, se estava a querer esconder para dar lugar à lua, que nesta altura, também é redonda.

Levantou-se, sacudiu a cabeça e começou a correr ao lado do Curvas, alto refilão, tentando também empurrar a bicicleta, ao que ele resistiu, com os seus insultos habituais, dizendo:
- Fora daqui, caral..!. Isto é a minha bicicleta!
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Nota do editor:

Vd. último poste da série de 2 de Março de 2013 > Guiné 63/74 - P11180: Do Ninho D'Águia até África (55): O fim aproximava-se, mas havia desespero (Tony Borié)

1 comentário:

Bispo1419 disse...

Gostei, Tony. Um bom e "redondo" texto que me fez lembrar Zeca Afonso:
"Era um redondo vocábulo, uma soma agreste. Revelavam-se ondas em maninhos dedos ..."
"... Congregando farpas, chamando o telefone, matando baratas, a fúria crescia clamando vingança ..."
Um abraço do
Manuel Joaquim