domingo, 3 de março de 2013

Guiné 63/74 - P11186: História da CCAÇ 2679 (62): Um caso com o Vieira (José Manuel Matos Dinis / Cândido Morais)

1. Mensagem do nosso camarada José Manuel Matos Dinis (ex-Fur Mil da CCAÇ 2679, Bajocunda, 1970/71), com data de 20 de Fevereiro de 2013:

Meus amigos Carlos e Cândido,
Aqui vai um novo trecho da História da CCaç 2679, desta vez subscrito pelo Cândido Morais, e que reporta num estilo bem comunicativo, mais uma estória sobre a sageza e oportunidade do nosso capitão Trapinhos.
O Cândido centraliza a estória na atitude tomada pelo Vieira, mas eu considero que é ele mesmo, o Cândido, o ilustre herói da narrativa. Porque heróis foram também todos aqueles que não se queixavam e estavam prontos para a solidariedade. É característica dele a altruísta entreajuda manifestada. A ele não caíam os parentes na lama, sempre que decidia ajudar um subordinado em dificuldades, pois a todos considerava camaradas.
Era um exemplo a seguir.

Daqui envio um grande abraço para ambos
JD

************

HISTÓRIA DA CCAÇ 2679

62 - Um caso com o Vieira

Cândido Morais

O Vieira era um homem calmo, por natureza. Com ele podiamos conversar, sem corrermos riscos de algum atropelo verbal, pois media cuidadosamente tudo o que dizia, tornando-se evidente que se preocupava com o interlocutor, não pretendendo maçá-lo e deixando ao seu critério a duração duma conversa. A ele, ninguém poderia apelidar de cansativo, pois estava ali apenas para conversar e não para se constituír parte integrante de uma enfadonha conversa.
Não sei como e quando isso lhe aconteceu, mas chegou ao meu conhecimento que o Vieira tinha grandes dificuldades para dormir. Na verdade, tinha sido atingido pelos efeitos colaterais de uma "roquetada", que, pelos vistos, embatera na frente do abrigo de um posto avançado, projectando os seus estilhaços para as costas do Vieira, que se soerguera um pouco na vala quando respondia a fogo do IN. Pelo menos, foi essa a informação que chegou ao meu conhecimento.

A minha preocupação principal não se concentrou nos tais estilhaços. Segundo me fora dito, os mesmos poderiam manter-se por ali indefinidamente, e o Vieira poderia viver até aos 100 anos com eles nas costas, e não seria por causa disso que entregaria a alma ao Criador. O que realmente me preocupava, era o sacrificio que me fora confidenciado por um camarada de armas, que acrescentara a enorme dificuldade que o Vieira sentia quando fazia reforço nos abrigos, pois, como lhe era dado dormir pouco, acabava por executar duplo esforço, enquanto olhava para lá do arame farpado na solidão que se proectava savana fora.

Um dia, tive com ele uma das tais conversas, durante a qual me contou grande parte da sua vida e me confessou as dificuldades que passava, por causa dos tais estilhaços. Acabei a ouvi-lo atentamente, e a pensar como poderia ajudá-lo em tão doloroso sofrimento, definindo lentamente uma decisão:
- Olhe, Vieira, eu não me importo de fazer o seu turno de reforço. Ao fim e ao cabo, são duas horinhas que tiro ao sono, e a essas horas da noite, até dá para pensar um pouco mais, ali sozinho, longe de tudo e de todos.

Eu não contava que o Vieira aceitasse tão prontamente, desfazendo-se em elogios e agradecimentos endereçados à minha pessoa. Disse-lhe que nada tinha a agradecer, e antes era meu dever colaborar com todos os camaradas, para levarmos aqueles dois anos a bom termo, dentro da maior amizade e camaradagem. Pedi-lhe, por isso, que não comentasse a minha disponibilidade, e que o facto ficasse apenas entre nós, pois não havia vantagem nenhuma em que mais alguém soubesse.

Mas soube. Não foi preciso passar muito tempo para se saber que o furriel estava a fazer os turnos de reforço do Vieira, não por que este tivesse falseado a sua promessa de sigilo, mas por que talvez não fosse habitual os furriéis consagrarem-se a essa actividade. Ao fim e ao cabo, eu teria sempre de ir acordar o reforço seguinte, que estranharia a minha presença nessa missão diária...

Passou-se, contudo, um mês, sem qualquer ocorrência, ligada ao facto, que importunasse esse desempenho. Até que, um dia, me vieram dizer que o Comandante de Companhia soubera do que se passava e, mais uma vez, decidira dar o seu ar de mando, chamando o Vieira e perguntando-lhe se tal era verdade. Este, segundo me informaram, respondeu prontamente que sim, voltando a referir a minha pessoa em tom elogioso e dizendo que isso lhe aliviava, e muito, o sofrimento. O nosso Comandante ouviu-o atentamente e, depois, mandou-o embora, dizendo-lhe que o chamaria brevemente, para continuarem a conversa.

Essa conversa, não chegou a acontecer, nem com o Vieira, nem comigo. Mandou-lhe recado por um cabo da secção, dizendo-lhe que teria de reiniciar o reforço, pois as necessidades de pessoal eram grandes e o sacrificio tinha de ser repartido por todos. Nesta justificação, não teve oportunidade de ponderar a minha disponibilidade, e eu ainda hoje não sei quais foram as razões que o impeliram a proferir essa ordem por interposta pessoa.

Eu não assisti à cena que se seguiu, mas vieram contar-ma à camarata onde dormitava, e confesso que sorri ao ouvir esse relato, conhecedor que era das falas mansas do Vieira e da sua enorme vontade de não chatear ninguém, mesmo que fosse para levar a cabo uma acção radical. Disse-me então a minha fonte que o Vieira, depois de lhe ser transmitida a decisão do Comando, pegou numa granada de mão e dirigiu-se ao gabinete do nosso Comandante, onde pediu educadamente licença para entrar:
- O meu Comandante dá-me licença?
- Entre! O que o traz por cá?
- Disseram-me que o meu Comandante mandou que eu fizesse reforço outra vez, e eu vim cá confirmar...
- Sim senhor! Você vai ter de fazer reforço outra vez, e aliás nunca devia ter deixado de o fazer! - Disse-lhe o Comandante.
- Mas sabe, meu capitão, é que me doem tanto as costas!... argumentou o Vieira.

E, se havia uma coisa que o Vieira honrava, era não ser medroso. Por isso, mentalmente, engendrou a melhor forma de levar a cabo aquilo que se determinara fazer e, muito mansamente como era seu timbre, descavilhou a granada e, segurando a respectiva alavanca entre ela e a mão, pousou-a sobre a secretária:
- É que sabe, meu Comandante, as costas estão mesmo a doer-me muito...

Talvez influenciado pelo conhecimento de outros factos do género que, infelizmente, não rareavam entre a tropa e não só em terras da Guiné, o visado ponderou a situação.

 - Que acha, meu Capitão? Acha mesmo que devo fazer reforço?
- Ora, ora, senhor Vieira! Claro que vai deixar de fazer reforço. Eu só estava mesmo a ver se era tudo verdade o que se passava consigo!
- Eu bem me parecia, meu Capitão! Que diabo, as costas doem-me mesmo! Muito obrigado, meu Capitão, e se me dá licença, retiro-me.

Como já disse, eu não assisti a esta conversa. Contaram-ma depois e não foi preciso assistir a ela, conhecendo como conhecia o Soldado Vieira. Mentalmente, idealizei a cena e deu-me uma enorme vontade de sorrir novamente. No íntimo, penso que o Comandante procedeu sensatamente, pois ainda hoje não sei o que teria acontecido no Gabinete (eram três, as pessoas lá presentes), se o Vieira recebesse uma recusa pura e simples. Quanto a mim, que não fui tido nem achado em todo o processo, continuei calmamente a fazer o reforço do Vieira, remetendo insistentemente para o Minho o meu pensamento, naquelas longas e negras noites a olhar o mato ali tão próximo, donde por vezes surgiam ruidos estranhos, uns rápidos e fugazes, outros cansativamente persistentes, entremeados com o irritante riso das hienas, que não tinham pejo em tocar o arame farpado junto ao posto avançado, fazendo tilintar as garrafas de cerveja estrategicamente lá posicionadas para nos alertarem da presença dum intruso

Cândido Morais
ex-Fur Mil
CCAÇ 2679
Bajocunda
1970/71
____________

Nota do editor:

Vd. último poste da série de 25 de Janeiro de 2013 > Guiné 63/74 - P11002: História da CCAÇ 2679 (61): A vingança serve-se fria (José Manuel Matos Dinis)

1 comentário:

Tony Borie disse...

Olá José Manuel e Cândido.
A história da granada, o Curvas, alto e refilão, também fazia a mesma cena no dormitório, mas não tirava a cavilha à granada, mas fazia toda a cena, alterado e com os olhos vidrados, talvez sobre influência, que metia medo a toda a gente, menos a alguns que já o conheciam!.
Um abraço, Tony Borie.