quinta-feira, 28 de fevereiro de 2013

Guiné 63/74 - P11173: Bibliografia de uma guerra (68): Alguns comentários sobre a guerra na Guiné e a sua literatura (2) (René Pélissier / Mário Beja Santos)

1. Lembrando a mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 14 de Fevereiro de 2013:

Queridos amigos,
Alguns meses atrás, recebi uma carta do Prof. René Pélissier solicitando-me livros e alguns contactos, ele continua indefetivelmente, infatigavelmente, a fazer recensões de livros em torno dos nossos conflitos coloniais. Daí nasceu a ideia, mais tarde, de sugerir a esta autoridade internacional na historiografia das nossas guerras que pusesse por escrito as suas reflexões sobre escritores e escritos de antigos combatentes.
Penso que este trabalho científico nos deve orgulhar e não escondo uma certa ufania em ter participado neste exclusivo que inclui fotografia inédita do historiador a mostrar leituras onde a Guiné é preponderante.

Um abraço do
Mário



Alguns comentários sobre a guerra na Guiné e a sua literatura (2)

René Pélissier

Um dos erros que um historiador não deve cometer, em absoluto, é o de a partir de uma dada situação num período preciso e generalizar conclusões. Cada mentalidade é uma ilha mais ou menos acolhedora ao leitor. Mário Beja Santos cultiva as relações humanas. É um autor que não nos vai ensinar muito sobre as operações militares. Ele não participa em grandes ofensivas. Não estará mesmo constantemente assediado pelos artilheiros cubanos do PAIGC. Vive num território onde a população não está ferozmente explorada por colonos brancos gananciosos, como em certas zonas de Angola ou Moçambique, o seu sector não é uma Disneylândia mas também não é o planalto dos Macondes nem a selva dos Dembos onde cada um sabe onde está o inimigo. Onde ele vive, há uma certa fluidez. O fator étnico, histórico e mesmo social deve ser sempre tomado em conta e nunca deve ser extrapolado à escala de todo um país em África. Uma das explicações da duração da resistência portuguesa à erosão nacionalista que, finalmente, a levará ao esgotamento, reside, apesar de tudo, no facto da guerra da Guiné ter sido conduzida no terreno por soldados oriundos de meios muito humildes, habituados à dureza da vida, e contra guerrilheiros ainda mais pobres do que eles, mas bem armados, cheios de esperança e bem aconselhados. Quanto aos portugueses, a sua esperança era a de regressar o mais rapidamente possível para junto dos seus entes queridos.

Nós estamos nos antípodas de uma guerra ultratécnica, de um lado, perante camponeses fanatizados (tipo Afeganistão e, mais longinquamente, o Vietname ou a Argélia) sem possibilidade de uma real aproximação humana, ao nível dos combatentes. Os portugueses estão condenados a perder, mas lentamente. E, sobretudo, esse sentimento está mais instalado na mente dos oficiais de carreira do que na superioridade esmagadora dos seus adversários. É uma guerra entre duas paciências.

De qualquer maneira, Mário Beja Santos é o autor que publicou mais livros sobre a Guiné: pelo menos cinco grandes volumes até ao início de 2013. E publicou-os através de editoras capazes de tocar um público numeroso. O mesmo não se pode dizer dos dois livros seguintes, seja qual for o valor literário ou documental destes títulos em apreço. Aqui, nós abordamos sem pudor uma questão delicada para um crítico, mas é preciso que fique claro. Para se vender bem um livro, é preciso que ele seja bem distribuído nas livrarias e que, no mínimo, haja bons contactos na comunicação social que permitam o conhecimento desta produção. Os autores-editores e os autores que pagam a um pequeno editor para que a sua obra seja publicada são, por vezes, bem-sucedidos a ganhar dinheiro quando apresentem um tema dito “do grande público”.

Infelizmente, as memórias da guerra colonial não fazem parte desse grande público, salvo honrosas exceções. O “grande público”, em todos os países, é um público de rebanhos que segue a moda ou em conformidade com o que se vê na televisão. Falar de Timor aquando dos massacres cometidos pelas milícias pró-indonésias era uma garantia de sucesso na época. Agora, seria sopa requentada numa panela velha: impensável! Ora, no contexto português atual, a guerra colonial da Guiné interessa a pouca gente, salvo precisamente os antigos combatentes, as suas famílias e os seus amigos. O que é insuficiente. Acresce, é preciso dizê-lo em muitos casos, os simples autores-editores não fazem nada para se fazerem conhecer, ou não têm meios para isso. Alguns limitam-se a dar algumas conferências em vilas de província, em reuniões de clubes, outros não ultrapassam o nível dos antigos camaradas das suas unidades militares, alguns mencionam um ISBN na ficha técnica mas não indicam o endereço ou as livrarias onde se podem fazer encomendas. Sei isto muito bem porque eu compro – ou muitas vezes procuro comprar – todos os anos dezenas de livros que as livrarias portuguesas não sabem mesmo aonde os encomendar. São livros fantasmas, desconhecidos das melhores bibliotecas estrangeiras e mesmo portuguesas. Ou sabe-se que eles existem, talvez, mas nunca lhes pomos a vista em cima.

O mínimo que devia respeitar um autor-editor seria fornecer nos livros e na publicidade à volta da sua obra, um endereço, seja postal, seja eletrónico, e responder aos potenciais compradores se ele não quer assegurar um serviço de comunicação aos raríssimos críticos que querem divulgar a obra. De igual modo, um jornalista ou um publicista deveria nas suas recensões dizer onde se pode obter a obra de que ele está a falar. Caso contrário, é amadorismo que revela uma ausência de confiança na qualidade do livro ou uma evidente falta de profissionalismo.

Pequeno ou grande, para mim, crítico e historiador, um livro desconhecido com uma tiragem de 300 exemplares tem o mesmo valor que um best-seller, se ele é original e me traz algo de novo, comparativamente ao que já foi publicado. Mas também é preciso saber que são muito raros os antigos combatentes que conhecem aquilo que já foi escrito, vai para uns três, cinco, dez anos antes, por um membro da sua própria unidade militar, a fortiori quando se trata de livros publicados por um autor que pertence a uma outra unidade. Cada um no seu pequeno cantinho faz, por conseguinte, a sua própria “cozinha” memorial, sem ir muitas vezes ao “restaurante” – uma biblioteca especializada, quero eu dizer – para comparar e verificar.

Compreendo que um avô queira deixar aos netos as suas memórias da guerra, dizer-lhes as experiências que teve, contar-lhe as operações nas quais ele talvez tenha participado, os seus estados de alma, as suas alegrias, a sua camaradagem com este ou aquele, mesmo os seus desesperos, a brutalidade do comandante, do inimigo, o seu horror face a crimes, os mortos, os hospitais, a rotina quotidiana, os seus medos, a imbecilidade de certos regulamentos, a sua indignação por o terem obrigado a deixar a sua aldeia ou o seu bairro, a vergonha de se ter sentido impotente ou manipulado, e mesmo – isto existe também nos textos de alguns antigos combatentes das tropas especiais – o seu sentimento de satisfação por terem pertencido a um corpo de elite e de se terem sentido “super-homens” durante alguns anos. Tudo isto é admissível, mas o que se destaca, sobre 10 ou 30 páginas, é a centésima versão da viagem para Bissau, Luanda ou Lourenço Marques, é que este material está muito longe de ser indispensável. Ou então que o autor seja um verdadeiro talento no campo do romanesco.

Entre os livros recentemente recebidos sobre a Guiné, assinalaremos ainda António Lobato, Liberdade ou Evasão. O Mais Longo Cativeiro da Guerra, 4ª edição aumentada, DG Edições, Linda-a-Velha, 2011, 277pp., fotos a preto e branco. Este livro foi inicialmente publicado pela Editora Erasmo, 1995, 214pp. com fotografias, analisei-o longamente (cf. René Pélissier, Angola-Guinées-Mozambique, op.cit, p.372), porque é um livro-documento importante sobre o tratamento dos prisioneiros portugueses e sobre a natureza da guerra praticada pela Força Aérea, Lobato acidentou-se em 22 de Maio de 1963, no regresso de uma operação na Ilha de Como. Como eu então cometi uma imprecisão, retifico-a agora. O autor, sargento da Força Aérea, não foi abatido diretamente pelos guerrilheiros, o seu avião simplesmente foi tocado em pleno voo. Ele pedira a um piloto de um outro T6 para verificar se o seu trem de aterragem não estava destruído, o outro piloto passou sob o seu aparelho. E foi durante esta manobra delicada que o avião do seu camarada colidiu com a hélice do avião de Lobato, este ficou ingovernável, o seu camarada despenhou-se e morreu enquanto Lobato aterrou numa bolanha de Tombali. Perderam-se assim dois aviões no dia 22 de Maio de 1963, Lobato foi feito prisioneiro, espancado, ferido e encarcerado em condições muito duras na Guiné-Conacri. Será libertado em 22 de Novembro de 1970 no decurso da operação Mar Verde, os Comandos Africanos assaltaram a prisão e trouxeram todos os prisioneiros portugueses que ali estavam. Na presente atualização da sua narrativa, em Fevereiro de 1999, Lobato foi convidado pelo Presidente ex-inimigo, “Nino” Vieira recebeu-o em pessoa em Bissau, tinha sido “Nino” Vieira a impedir que ele fosse mais mal tratado do que já tinha sido, no início do seu cativeiro: daí a adição de novas páginas (pp. 247-250) sobre este episódio menor mas sintomático da reconciliação. Assim, é necessário possuir esta 4ª edição.

É igualmente recomendado que se procure um romance histórico que decorre praticamente ao mesmo tempo que A Viagem do Tangomau…, op.cit.

Pensamos que Guilherme Costa Ganança, O Corredor de Lamel, 68 Guiné 69, 2ª edição, Chiado Editora, Lisboa, 2012, 418 pp., fotografias a preto e branco, é um romance autobiográfico que vem na sequência de outro volume, igualmente romanceado, sobre o período imediatamente anterior. Trata-se de um alferes da Madeira, da sua companhia, dos seus problemas com a hierarquia, dos seus amores epistolares e sobretudo das operações em que ele intervém em Contuboel, Bula, Cabedu, Catió e, finalmente, a partir de Farim, o famoso corredor de Lamel, que deve ainda hoje evocar muitas recordações. Uma das diferenças da Guiné relativamente a Angola é que o território sendo pouco extenso e o PAIGC militarmente muito mais ativo que a FNLA e o MPLA (e, acessoriamente, a UNITA) havia poucos sectores onde os portugueses viviam em calma ou segurança, com a exceção de Bissau e quatro ou cinco cidades do interior, nos Bijagós, e nos Felupes, e, de uma maneira mais compacta, na região dos Fulas. Dito de outro modo, à intensidade dos combates, à dureza do clima e à morbidade em geral, seria necessário juntar a raridade de sectores tranquilos para onde se podiam enviar as tropas para recuperação das energias. Na Guiné não havia Sá da Bandeira, Lunda, Bié ou vilegiaturas urbanas. A inquietação era geral e nós ainda não lemos uma só narrativa onde os soldados desmobilizados se tenham vindo a instalar na Guiné, situação que foi frequente em Angola e Moçambique. Era um Purgatório para todos e um Inferno para a maioria. Mesmo os ultrapatriotas ou os super-homens autoproclamados dos comandos, dos páras e dos fuzileiros só tinham em mira um objetivo: a peluda. Como é evidente, com o passar dos anos e com a juventude já no passado longínquo, certos autores não querem mais do que rememorar – seletivamente – os raros momentos em que eles estavam otimistas, mas se dispuséssemos de um corpus completo de todos os livros publicados pelos antigos soldados da Guiné, poder-se-ia estabelecer uma grelha de análise fina onde certamente se poderia constatar que as más recordações são mais frequentes que as reminiscências felizes. E isto ainda mais no Exército, em especial nos açorianos e nos madeirenses que foram enviados para a Guiné nos últimos anos da guerra.

Em última análise, todos estes autores (uma centena) não tiveram nem têm uma memória tão compassiva face aos guineenses como Mário Beja Santos que deve ter sido o alferes (1968 a 1970) mais atento à sorte dos seus homens, velhos e desesperados, vendo em que decrepitude caiu a Guiné, tal como ele a visitou em 1990, 1991 e 2010. Ele resumiu o quadro através de uma expressão fúnebre: “um buraco na escuridão” (p.509).

Tantos mortos, tantas esperanças para ter que ver um antigo coronel do PAIGC mendigar-lhe um saco de arroz.
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Nota do editor

Vd. poste anterior de 26 de Fevereiro de 2013 > Guiné 63/74 - P11159: Bibliografia de uma guerra (67): Alguns comentários sobre a guerra na Guiné e a sua literatura (René Pélissier / Mário Beja Santos)

5 comentários:

Anónimo disse...

Espero que o Pèlissier tenha comprado um capacete novo.
Vai certamente levar na cabeça tanto ou mais do que no post anterior.
Por mi, como já disse, acho os seu comentários muito lógicos e com bastante validade.
Um Ab.
António J. P.Costa

Anónimo disse...

Caro camarada A.J.P.Costa

Por mim o Sr. prof. René até pode por dois capacetes novos.
Detesto que um estrangeiro para mais sendo francês..oh. lá..lá..faça comentários jocosos e adjective sobre aquilo que não viveu e sabe apenas por conhecimento livresco.

Admito a minha antipatia e até parcialidade,mas é fundamentada.

Não reconheço ao Sr. prof. René,autoridade moral para falar sobre as nossas "guerras coloniais" quando se refere a factos baseado em suposições e muito menos quando adjectiva..aí passo-me.

Admito tudo a um Português e ex-combatente,por isso caro camarada J.P.Costa,quando dizes que achas que "os seus comentários muito lógicos e com bastante validade",não te vou contestar e respeito a tua opinião.

Podem chamar-me o que quiserem..

Um alfa bravo

C.Martins

Anónimo disse...

Pela primeira vez não concordo com o que diz e disse no comentário anterior o Camarigo C. Martins.
Com a devida vénia e com os meus cumprimentos faço minhas as palavras do Pereira da Costa.
Venho apreciando muitos dos escritos/recensões de Monsieur Pèlissier.

Joaquim Sabido
Évora

Antº Rosinha disse...

"...Ora, no contexto português atual, a guerra colonial da Guiné interessa a pouca gente, salvo precisamente os antigos combatentes..."

Pois Beja Santos, sempre acompanhei e aplaudo as tuas leituras, e dou a minha opinião.

Eu adivinhava que ias dar nas vistas fora do blog.

Não é só este francês que olhou para ti.

E tu és um exemplo de que quem fez a guerra ou a acompanhou, é que é o verdadeiro "reporter" dessa guerra.

Os outros que no seu gabinete interpretam o que escreveste, não sabem quanto pesa uma G3 no início da marcha e no final, por muito bons jornalistas e escritores e honestos que sejam.

Aquilo que ponho entre aspas sobre o desinteresse geral "atual" quanto à guerra da Guiné, sendo uma redondante verdade, não retrata o quanto perdeu o interesse logo, imediatamente, que os negociantes ainda em 1974 (Mário Soares, Almeida Santos...) se puderam desfazer de Caboverde e Guiné.

A não ser os militares da Guiné, praticamente logo no dia 26 de Abril, força de expressão, evidentemente, os portugueses de Minho a Timor esqueceram ou nem chegaram a saber que na Guiné houve aquela tremenda guerra.

Pelissier, como francês, talvez esteja admirado como esquecemos tão depressa a Guiné e os franceses ainda hoje não esqueceram Dien Bien Phu, de 1954.

A realidade portuguesa, é como qualquer país, ou guerra ou crise, só quem a vive.

Podemos dizer que por exemplo a nossa crise é igual à da Grécia, como está na moda dizer, mas cada um tem as suas especificidades e muito diferentes.

Se eu não tivesse andado a cubicar laterite na Guiné para tapar alguns buracos de estrada ainda com sinais de rebentamentos de minas, ficava com a ideia que a Guiné foi um pequeno episódio da guerra colonial. Quando foi o principal episódio.

O desinteresse da Guerra da Guiné não é só actual, como diz Pelissier.

Beja Santos estavas na dúvida mas fizeste muito bem em trazer esta "leitura da tua leitura".

antonio graça de abreu disse...

Já agora podiam publicar a recensão do grande René Pélissier (recensão ao meu livro
que o Mário Beja Santos nunca teve coragem de publicar neste blogue), a recensão do francês ao meu Diário da Guiné.
A ignorância do Pélissier sobre a Guiné 1972/74 é abissal, a recensão é de mijar a rir. Mas talvez um riso triste.
Há quem goste, com capacete ou sem capacete, há quem goste.
Tudo bem.

Abraço,

António Graça de Abreu