quarta-feira, 20 de fevereiro de 2013

Guiné 63/74 - P11122: Cartas de amor e guerra (Manuel Joaquim, ex-fur mil, arm pes inf, CCAÇ 1419, Bissau, Bissorã e Mansabá, 1965/67) (6): Amor sofrido

1. Em mensagem do dia 6 de Fevereiro de 2013, o nosso camarada  Manuel Joaquim (ex-Fur Mil de Armas Pesadas da CCAÇ 1419, BissauBissorã e Mansabá, 1965/67), enviou-nos a sexta colaboração para a sua extraordinária série "Carta de Amor e Guerra".


CARTAS DE AMOR E GUERRA

Eu e minha esposa temos sentido alguma emoção ao relermos a correspondência que está na base desta série “Cartas de amor e guerra” e, de vez em quando, damo-nos com uma lágrima ao canto do olho ou com um sorriso, por vezes trocista, perante o seu conteúdo: desejos, carícias, intimidades, zangas, ambições, opiniões de carácter político-social e religioso, vivências onde avulta o sofrimento provocado pela distância e pela guerra.

Recordamos dois jovens revoltados que fomos nós, jovens voluntariosos, solidários, confiantes e bonitos (!). Jovens socialmente intervenientes para quem olhamos com ternura e nostalgia e com aquela satisfação que nos apraz registar, debaixo do peso dos nossos 70 anos: éramos gente porreira!

Segue o sexto capítulo da série:


6. Amor sofrido

Bissau, 24-Agosto-65
 (… … …). Vai-te convencendo, meu amor, de que és capaz de suportar a nossa separação. Tira o melhor da vida que levas e peço-te, minha querida, que te lembres de que a vida (…) não é um ponto definido mas sim uma progressão (…). Peço-te encarecidamente que não estagnes. (…). Procura cultivar-te. (…). Só assim poderás encontrar em ti mais formas de beleza (…) em ti e no meio social e natural em que estamos envolvidos. (…). E há tanta coisa que nos pode levar ao encontro da beleza: (…). 
(… … …) 
 Ah, como gostaria de te ter aqui (…)! Apertar-te muito contra mim, beijar-te, beijar-te, dando livre curso ao nosso entusiasmo, à nossa sede de viver, de amar! 
(… … …).

Uma imagem da carta de Bissau em 24/8/1965: por vezes, as lágrimas deixam marcas.

Lisboa, 30/VIII /965 
 Querido: Avalio por mim o aborrecimento que te causou não teres à tua chegada uma carta para amenizar (…) abstrair-te um pouco dos problemas militares em que estás envolvido. (…). A distância é longa, as circunstâncias que nos obrigam a ela são as mais infames, (…). É preciso compreensão, tolerância de parte a parte para que essas dificuldades que surgem sejam superadas. 
Combinado, meu M.? 
 (… … …)
(…) [Aqui vai] toda a minha saudade, a angústia de viver assim longe de ti, tristeza, solidão, (…). 
A vida é bela? Duvido. Quero encontrar essa beleza. Ajuda-me querido. Eleva meu espírito (…), até à altura do teu. Eu quero acompanhar-te. Essa beleza que tu encontras na vida não se abre a meus olhos, é-me vedado descobri-la? Não. Creio que não, se o meu espírito desanuviar e eu deixar de ser pessimista. Para isso peço a tua ajuda. (…). 
Preocupo-me mais, muitíssimo mais, com as misérias humanas. (…). Não é de admirar que a juventude de hoje ao encarar estes problemas os sinta profundamente, (…) e nasce então o espírito de rebeldia, de revolta. 
(…) [O modo como] os governantes apregoam a defesa do Ultramar, a vitória das nossas tropas, não pode, nunca será compreendido pelos “homens de bem”, (…), enquanto tentarem defender causas injustas e de antemão já perdidas. 
(… … …) 
Sou uma jovem de 22 anos. Começo a viver (…) o flagelo a que nos submetem os (…) que nos regem. É um pouco tardiamente que o reconheço, confesso-o, mas a tempo suficiente para trabalhar, para fazer algo pelos que vierem, pelos que sofrem mais acentuadamente as consequências de um regime que não se cansa de apregoar ser o melhor, (…), que luta apenas pelo que nos pertence, o protector das classes menos abastadas, isto em teoria porque na prática é viva contradição. 
(… … …) 
Fazes 24 anos na próxima quarta-feira. Não me esqueço, meu querido. E, embora muito dificilmente, vou enviar-te uma recordação. Corro o risco de ela não te chegar às mãos mas de qualquer modo envio. Meu amor querido, eu estou contigo (…). Que poderemos nós fazer, em que poderemos melhorar a situação em que nos encontramos e em que tomamos parte obrigatoriamente?
(… … …).

Foto 1: D./ “N.” em 1965 
 © Manuel Joaquim

Bissau, Setembro-7/65 
(… … …) 
Um beijo (…) para achares um pouco de beleza neste gesto. Tu, que andas atarefada, um bocado pessimista à procura dessa beleza, repara neste meu gesto e vive este momento que é belo. 
Cá longe, não me esqueço de ti. Não de ti, figura, mas de ti, totalidade, com todas as tuas forças (…) em progressão. Sinto-te latente, cheia de vontade e esperança no futuro. (…). 
Mais um beijo, muitos beijos para ti, minha N.

Vale de Figueira, 13. Set. 1965 
Tenho de te pedir perdão se com a minha ausência de alguns dias contribuí para aumentar a tua solidão, se te fiz sofrer. (…). 
(… … …) 
A razão do meu silêncio, minha jóia querida? Vou expor-ta com a maior sinceridade. (…). Nestes últimos dias o trabalho na C.P. tem-se aglomerado. Os dias são extenuantes, com trabalho até às 19 horas todos os dias. (…). 
O fim-de-semana passado (…), aproveitei-o a passá-lo com a tua Mãe. (…) estive no teu Casal Novo, (…) um belo recanto, sem dúvida. (…). Ali espero que passemos juntos alguns dos nossos dias felizes. Regressei de lá no comboio da noite chegando a S.ta Apolónia de manhã, bastante fatigada. Não consegui escrever-te nesse dia porque o sono vencia-me. E, como já não apanhava o avião na 4ª feira, ficaste sem notícias oito dias. 
Este fim-de-semana (…). Saí com três colegas no rápido da manhã rumo ao Porto e só regressámos a S.ta Apolónia no comboio-correio da noite. Estou a escrever-te mas, de instante a instante, cai-me a caneta e fico-me a dormitar. 
(… … …) 
Enviei-te como recordação para o dia dos teus anos, (…), um isqueiro em embrulho registado como amostra sem valor já que te não era possível recebê-lo de outro modo. Diz-me se já te chegou às mãos. (…). Se não foi aberto pelo caminho, já tiveste tempo de o receber pois foi pelo serviço civil. 
(… … …)

Bissau, 14-Set.-1965 
Minha querida, (…). Pego no papel e não sei sobre que assunto te hei-de falar. Queria escrever-te muito mas uma certa preguiça intelectual parece estar a inibir-me de o fazer. Tu não te vais aborrecer, pois não meu amor? 
(… … …) 
E hoje é um daqueles dias em que, se estivesse contigo, estaria calado e limitar-me-ia a acariciar-te, a olhar-te, a viver a doce acalmia que muitas vezes respiro junto de ti. Num dia como hoje amar-te-ia silenciosamente (…). Seria simplesmente corpo vibrando ao contacto do teu corpo, (…). 
E aqui estou eu assim. Recebe-me. Possui-me … (…). 
(…). Cá continuo em Bissau. Saio mais ou menos uma vez por semana. Não posso dizer mal da “festa”! Fiquei deveras confundido com a tua lembrança. Não te agradeço. Beijo-te. Beijo-te muito, minha D. Vai aqui uma fotografia. Mas isto é só pose. (…) não há perigo. 
(… … …).

Foto 2. – “É só pose”, e que fraca pose! 
© Manuel Joaquim

Vale de Figueira, 18. Set. 1965 
(…). Num dia maravilhoso como o que hoje se apresenta apetece-me chamar-te até aqui, (…) dares-me a tua mão para seguirmos com rumo incerto através dos campos, respirarmos o ar puro, a beleza da natureza. O sol brilha intensamente, o céu azul dum azul límpido (...). 
Não posso fisicamente trazer-te para junto de mim nem, do mesmo modo, seguir para aí mas em espírito estou todinha junto do meu querido. (…). Estás contente? Então senta-te aqui junto de mim e vamos conversar. 
(… … …) 
A ideia que alimento de que já nada nos pode separar e que me ajuda a suportar esta situação, a encará-la até com optimismo e um pouco de bom humor, (…), essa ideia não pode ser fictícia! 
Mas deixemo-nos disto (…) agora não interessa. (…) interessa acima de tudo é não preguiçarmos, (…).
Inconscientemente, (…), vamos adiando, esperando para melhor oportunidade e melhor disposição para escrevermos uma carta. (…). E depois o celebérrimo “já não vale a pena” porque já não segue hoje ou o “não me apetece” vão preterindo a nossa vontade, aquilo que até há pouco tínhamos tão presente (…) fica esquecido no amontoado das nossas preocupações, (…). E nessa semana não há mesmo correio. Não quero (…) acusar-te, tanto mais que só esta semana é que a tua correspondência falhou. É de supor que seja atraso dos correios também. 
(…) estou preocupada com o que aconteceu. (…) não é um esquecimento (…) pois não meu M.? 
Recordo o dia 31 de Julho [data da partida para a Guiné] com saudade, acredita. Dia simultaneamente belo e triste. Maravilhosamente belo, horrivelmente triste. Li na firmeza do teu olhar, no ardor da tua despedida, toda a magnitude e pureza dos teus sentimentos, dum Amor que tantas vezes pus em dúvida, mesmo durante os últimos encontros. 
(… … …). 
Recebe-me. Acolhe-me nos teus braços (…). 
Nas situações mais críticas, (…), apoiados um no outro saberemos sempre estar unidos, física e ideologicamente. Haverá uma vontade, uma ideia a seguir. 
(… … …). Peço-te que não deixes de escrever. 
Meu amor querido, abraço-te e beijo-te amorosamente. Tua N.
____________

Nota do editor:

Vd. último poste da série de 6 DE FEVEREIRO DE 2013 > Guiné 63/74 - P11066: Cartas de amor e guerra (Manuel Joaquim, ex-fur mil, arm pes inf, CCAÇ 1419, Bissau, Bissorã e Mansabá, 1965/67) (5): Às portas da guerra

4 comentários:

Anónimo disse...

Bonito, sentido, acariciante e terno
o vosso epistolário.
Amor abençoado pelos deuses.

Abraço amigo aos dois.

António Graça de Abreu

Luís Graça disse...

(...) "Recordo o dia 31 de Julho [data da partida para a Guiné] com saudade, acredita. Dia simultaneamente belo e triste. Maravilhosamente belo, horrivelmente triste. Li na firmeza do teu olhar, no ardor da tua despedida, toda a magnitude e pureza dos teus sentimentos, dum Amor que tantas vezes pus em dúvida, mesmo durante os últimos encontros." (...)

Manel, isto só pode ter sido escrito por uma grande mulher, inteligente e sensível... Estás a provocar uma saudável pontinha de ciúme naqueles, como eu, que num dia igual a esse, 31 de julho, e no mesmo local, o Cais de Rocha Conde de Óbidos, não tiveram o privilégio de ouvir palavras de amor, conforto e encorajamento como essas... que ouviste!

Cinquenta anos depois, como deve ser bom recordar todas essas emoções e sentimentos (por vezes, contraditórios) de dois seres humanos que se ama(va)...

Um xicoração para os dois! Luis

admor disse...

Caro Camarigo Manuel Joaquim,

É impressionante! Vocês tinham um amor e uma cumplicidade tão grandes
que pareciam dois rios a correrem em continentes diferentes, mas a desaguarem na mesma foz.
As vossas cartas de amor para além de mostrar esse grande amor que vocês viviam mostravam também a força da nossa juventude e o preparar para as conquistas que alcançamos mais tarde e que os nossos políticos nunca viram e teimam em não querer vêr.
A minha admiração por ti e pela tua esposa e um grande abraço para os dois.
Adriano Moreira

Hélder Valério disse...

Caro Manuel Joaquim (e companheira)

Isto que temos vindo a ler é muito íntimo, faz parte do vosso crescimento, da vossa cumplicidade.
Não vou tecer comentários. Seriam excessivos.
Ressalvo apenas uma frase, legenda de uma foto: "por vezes as lágrimas deixam marcas"....

Abraço
Hélder S.