sábado, 26 de janeiro de 2013

Guiné 63/74 - P11008: Memórias do Chico, menino e moço (Cherno Baldé) (43): General Spínola e a política "Por uma Guiné melhor"

1. Mensagem do nosso amigo tertuliano Cherno Baldé com data de 10 de Dezembro de 2012:

Caros amigos Luís e Carlos Vinhal,
Desejando que vos encontre em óptimas condições de saúde e boa disposição física e mental, junto envio mais um texto que, após leitura e correcção do português, poderão publicar se assim o entenderem.

Com um abraço fraterno,
Cherno Baldé


MEMÓRIAS DO CHICO, MENINO E MOÇO

43 - GENERAL SPINOLA E A POLITICA “POR UMA GUINÉ MELHOR”
(NAS PALAVRAS DE ALIU SAMBA OU SAMBA KONDJAM)

O que a seguir se apresenta é um texto narrativo resultante de recordações sobre as palavras de Aliu Samba ou Samba Kondjam(1) e um testemunho pouco fiável de uma criança “rafeira” de quartel, curiosa e intrometida em forma de uma reflexão retrospectiva sobre a política “por uma Guiné melhor” que, na minha opinião, se não atingiu o seu objectivo maior, terá contribuído de certa forma, para a mudança das mentalidades, modelando a especificidade da colonização portuguesa na Guiné.

Assim, iniciamos com algumas questões que, esperamos, alguém mais adulto, melhor informado e mais fiável, nos ajudará a responder:

1- Qual seria a perspectiva do General Spínola para a solução do caso da Guiné “portuguesa” durante a guerra colonial que opunha o exército português, envolvido em três frentes de guerra subversiva, e a guerrilha nacionalista conduzida por Amílcar Cabral por intermédio do PAIGC?

2- Alguma coisa teria falhado nos planos do General para levar ao reconhecimento da autodeterminação e independência total da Guiné-Bissau, ocorrido em 10 de Setembro de 1974, ou teria sido uma consequência lógica da sua visão para esta província ultramarina, em particular, e da política colonial portuguesa em geral, como saída para o conflito armado que ameaçava os alicerces do império colonial português? Sim ou não, é bem possível que estas e outras questões nunca venham a ter respostas satisfatórias que possam desvendar os segredos do mais velho e enigmático Chefe da guerra colonial ou guerra do Ultramar português que, com a condução da política “por uma Guiné melhor”, tinha conseguido conquistar a confiança de uma parte significativa da população da Guiné, dita portuguesa.

Na Guiné-Bissau independente, nos meses que se seguiram ao 25ABRIL74, pairou no ar um sentimento ou esperança de que o General Spínola voltaria para resgatar a Guiné das mãos dos independentistas que os militares do exército português na altura, encurralados nos centros urbanos e entrincheirados em alguns quartéis fortificados do interior, como gostava de dizer o PAIGC, na ansiedade de um rápido regresso a metrópole, tinham entregue sem quaisquer condições prévias. Ninguém sabia ao certo como seria feito o resgate nem para quando estava isso previsto e, se estava previsto.


LEMBRANDO OS HERÓIS DE SANCORLA

Mas, como não há nada sobre a terra que dure para sempre, o boato que não se confirmou nos meses que se seguiram, acabou por se diluir na corrente dos rumores que iam surgindo, para de seguida se extinguir lentamente como as nuvens desaparecem após a chuva, acompanhando a implantação e consolidação do PAIGC, concomitante a eliminação física de centenas de elementos dos ex-comandos, milícias e soldados nativos do exército português, assim como elementos das chefias tradicionais consideradas, potencialmente, perigosas na fase mais crítica da transição e concentração do poder nas mãos do partido estado.

Estas notas servem também para lembrar e honrar a memória dos nossos pais, tios e irmãos, vítimas da repressão feroz e da exclusão politica e social que se abateu sobre os que estiveram, de forma abnegada e valorosa ao lado e ao serviço de certo Portugal e em nome de certa causa em que acreditavam, seguindo os trilhos de homens de coragem que nunca olharam para trás, filhos dignos de Sancorla como Guelá Baldé, Bubacar Fanca, Sedjali Cumbael, Mâma Djamarã, Alanso Candé, Bodo Djau(1) e muitos outros, nascidos nas terras de Ghâlen Soncô e de Buran-Djamé Baldé, onde as mulheres e mães para calarem o choro das crianças que traziam nas costas, simplesmente lhes diziam: “Cala meu filho, o teu pai vai mandar-te para os Comandos e, se não puderes ser comando, por livre arbítrio dos brancos, então serás o keledjaurâ(2) da nossa aldeia contra os homens do mato”.

O que quer que tenha acontecido durante os golpes e contragolpes em Portugal, após o 25ABRIL, na Guiné a expectativa de um hipotético regresso do General, durante muito tempo, foi uma esperança secretamente alimentada e guardada, pelo menos, no regulado de Sancorla que, com a independência do território tinha tudo a perder e nada a ganhar diante das rivalidades étnicas e contas antigas a ajustar com os seus vizinhos e rebeldes mandingas do Oio e Cola-Caresse que tinham apostado no cavalo certo na altura certa, investindo tudo na guerra contra o colonialismo sim, mas também no sentido de recuperar a glória e a coroa perdidas durante as guerras pela posse das terras do reino de Gabú, um século atrás.

Cherno Baldé conversando com "Homens Grandes" de Fajonquito
Foto: © Cherno Baldé (2013). Todos os direitos reservados


SPÍNOLA CONTRA OS IRAS DE BANDIM

Se esta esperança acabou por desaparecer na cabeça de alguns Guineenses, como foi dito mais acima e como seria lógico pensar em tais circunstâncias, parece que nem todos tinham deixado voar as ilusões sobre esta eventualidade e isto seria confirmado com as discretas visitas a terra de Dona Maria, no inicio dos anos 80, de algumas personalidades religiosas locais com a ajuda de emigrantes, os quais se teriam avistado com Spínola.

Ao certo, não se pode dizer que tivessem feito a viagem somente com esta finalidade, tendo em conta o secretismo que envolvia as deslocações, mas a verdade é que, o tema sobre o qual mais se ouviu falar, após o regresso, tinha a ver com as notícias sobre o velho General, “amigo” dos Guinéus, que, aparentemente, estaria vivo e de boa saúde, acrescentando, no entanto, que já era um homem com ar cansado, que falava muito pouco e que, embora se lembrasse de todas as pessoas com as quais se tinha privado enquanto Governador, parecia estar distante da realidade actual da Guiné, da esperança e dos sonhos de uma hipotética comunidade luso-africana que, em tempos, ajudara a acalentar em alguns espíritos e/ou círculos mais próximos. Afinal, sempre os irãs de Bandim tinham conseguido os seus intentos.

O que foi dito até aqui serve o propósito de poder apresentar a ideia, partilhada com muitos, de que não era crível que depois de ter convencido os seus oficiais superiores e a testa de ferro do regime de Lisboa do “bien-fondé” da politica por ele conduzida na Guiné, desde que chegara aquela província em 1968 (?) e, depois de tanto trabalho e recursos investidos nos esforços para conquistar a confiança de populações nativas completamente a deriva e confrontadas com uma escolha difícil, o “Caco Baldé”(3) baixasse os braços, deixando a província, cuja população literalmente o idolatrava, a mercê dos seus ex-inimigos e antigos adversários.

É sabido que o contexto internacional bem como a situação real no plano da guerra, num continente em plena mutação politica, não lhe era nada favorável, mas não era menos verdade que os grandes homens sempre se distinguiram na história, por feitos em que muitas vezes a evidência dos factos não lhe era, de todo, favorável. E a evidência demonstrara que, a politica “por uma Guiné melhor” sendo uma empreitada que, em muitos aspectos, parecia muito acertada na época, era ao mesmo tempo, de difícil aplicação pratica, tratando-se de um acto que mesmo não alterando em nada o colonialismo, na sua essência, contrariava muitos dos comportamentos e preceitos coloniais habituais mais em voga e que pareciam justificar a própria colonização em si, ao veicular a noção de uma pretensa superioridade racial, baseada na origem e cor da pele, o que era insuportável e humilhante aos olhos dos “quase portugueses” ou assimilados. Esta era a verdadeira razão da guerra e tudo o resto viria por arrasto. Nós íamos compreender isto mais tarde, após a independência.

Mas, uma coisa era querer e outra, bem diferente, poder mudar velhas ideias embutidas na cabeça das pessoas durante séculos, num país, também ele atrasado e governado por uma elite dominada por ideias fascistas. Assim, a mudança das mentalidades, se não era impossível de todo, no mínimo, era uma tarefa muito complicada. Mas, o General provou que não era dos que desistiam com facilidade, embora tivesse dez anos de atraso em relação ao pacto neocolonial referendado e aparentemente ganho por De Gaule nos territórios vizinhos da AOF.

O acaso da história quis que, também em Fajonquito, fôssemos testemunhas desta evidente teimosia e pudéssemos assim sentir, ao lado da nossa população “indígena”, os efeitos de um acto de justiça colonial de tempos novos que, muitos anos depois, e favorecido pelo fracasso da nossa gloriosa independência que custou sangue, suor e lágrimas, segundo os cânones do nosso partido estado e o desencanto patriótico que se seguiu, contribuíram para transformá-lo, finalmente, num acto sublime de elevado valor histórico e contributo importante para a mudança das mentalidades, marcando assim, de forma indelével, a sua passagem pelas terras da Guiné, não na cabeça dos eternos “colons”, mas no espírito do povo simples, eternos “indígenas” de uma nação multiétnica e plurirracial sem rumo.


O CAPITÃO CARVALHO

Este acaso aconteceu em finais de 69 ou princípios de 70, não posso precisar, e teria eu na altura cerca de 10/11 anos de idade e havia poucos meses que tinha mudado com os meus pais de Cambajú para Fajonquito. Aqui, não nos deixavam entrar no interior do quartel, mas a atracção que causava em nós era tal que não conseguíamos ficar longe dos arames farpados. Para facilitar as coisas o meu pai trabalhava no mesmo edifício comercial que albergava, também, nas suas traseiras, a residência do Capitão e comandante da companhia, assim como a messe dos oficiais e sargentos.

Depois de algumas horas de aulas de manhã e com o pretexto de ficar a ajudar o meu pai, conseguia esquivar-me dos trabalhos de campo e passar grande parte do tempo a espreitar o movimento da tropa dentro do quartel, usando o espaço da loja e a presença do meu pai como refúgio sempre que um ou outro elemento mais zeloso quisesse importunar-me. Gostava, sobretudo, de acompanhar o vaivém do Capitão no seu pequeno Jeep de campanha donde sempre descia saltitando ao lado antes de este se imobilizar por completo. Eram imagens que me fascinavam.

Em Cambajú, onde estava estacionado um pelotão da mesma companhia, não existia este fosso de separação entre brancos e pretos, militares e civis e por isso, convivíamos de perto com a tropa portuguesa e com as milícias, inclusive já tivera a oportunidade de esfregar as minhas mãos na pele branca e gorda ou agarrar nos cabelos hirsutos das mãos e braços do nosso amigo, o Furriel Libural (Liberal?), que frequentava assiduamente a nossa casa, não sabendo ao certo o que o atraía mais, se as simpáticas palavras do meu pai sempre cordial e respeitoso para com as autoridades, fossem elas civis ou militares, que o obrigava a tirar o chapéu da cabeça quando as cumprimentava e num excelente português nos apresentava dizendo “minha filho” quando queria dizer “meu filho”, ou eram as minhas primas-irmãs com os seus sorrisos de dentes de marfim, nádegas bambaleantes e seios redondos brilhando em céu aberto.

Em nossa casa toda a gente gostava do Furriel Liberal com seu ar bonacheirão que, muitas vezes, trazia consigo uma terrina cheia de comida do quartel para a meninada. Bem, para ser sincero, nem toda a gente apreciava as suas investidas dentro da nossa morança, arvorando os seus “bumdias e buatardes”, mesmo trazendo comida. E a primeira pessoa a manifestá-lo fora a minha avó paterna, Eguê, que se insurgia contra a intrusão do branco e, quando isso acontecia, amaldiçoando o destino que não quisera que tivesse morrido mais cedo, dizia sempre num tom de profunda e incontida amargura: “Áh Allâ..., e tinha que viver para presenciar isto...!?” Nunca soubemos, ao certo, o que ela queria dizer com “isto”, se era o atrevimento do olhar directo e fulminante com que despia os seus interlocutores, em particular as bajudas, se era a maneira diferente como ele falava, lembrando o som gutural de um pombo apaixonado ou a aparente depravação dos gestos e abraços, as vezes, desmesurados do Furriel e dos seus companheiros da tropa. O que valia mesmo é que ninguém se preocupava com as palavras da avó Eguê que vivia agarrada ao passado, passando a maior parte do tempo a falar sozinha com pessoas imaginárias, insistindo em trazer de volta os ecos de uma vida que já não existia. “Uoúh…, a velhice é mesmo uma merda!” Arrematava ela, encolhendo os ombros, diante dos risos e da indiferença geral, antes de se refugiar dentro da sua casa escura e com um estranho cheiro a merda.

A tropa portuguesa e as nossas mulheres
Foto: © Cherno Baldé (2013). Todos os direitos reservados

Em Fajonquito era diferente e, pela primeira vez, via um Capitão assim de perto, o comandante dos brancos em pessoa. Muitas vezes, quando ele descia do seu Jeep aproximava-me, discretamente, esperando dele um olhar, um sorriso ou um gesto de amizade que nunca aconteciam. Por isso, não me lembro da cor dos seus olhos, escondidos debaixo de umas sobrancelhas fartas, que fugiam do meu olhar, mas lembro-me, mesmo que vagamente, do seu rosto sempre hermético e impenetrável como que querendo dizer-me que não tinha tempo para crianças intrometidas.

O seu nome era Capitão Carvalho, estatura baixa, andar pausado, pés firmes no chão, sentidos obscuros e como que carregados de uma missão impossível. Foi a sua companhia (CCAC 2435) que, de facto, construiu o aquartelamento de Fajonquito em 1969, com o reordenamento da aldeia e construção de um dispositivo de defesa que dizia aos inoportunos visitantes nocturnos:
- “Olha, estamos aqui deste lado, para vos receber com metralha!”.

Estes dispersaram-se indo para os lados de Oio e Joladu e nunca mais voltaram.

Ainda na metrópole, antes do embarque, que se esperava fosse tudo menos a Guiné, a divisa que tinham arranjado para a companhia, assim do jeito “pessoal manga-di-ronco”, era qualquer coisa que dizia assim: “Os tigres, juntos venceremos” e por cima destas palavras via-se a cabeça de um tigre ameaçador, mostrando seus dentes aguçados. Outra companhia que se lhe seguiu as pegadas usava outro lema do tipo: “Deixós poisar”. Não percebíamos nada desta linguagem de caçadores, no entanto, o nosso avô materno, caçador profissional que participara na guerra contra os Canhabaques em 1935 e que conhecia todos os animais da floresta, nos dissera com ar muito sério: “Com os tigres não se brinca”. Mas, em Fajonquito e lá para o fim da comissão, estando mais velhos e realistas tinham alterado a mesma divisa para: “Os tigres, juntos resistiremos” e a outra companhia que lhes seguirá nas peugadas dirá mais tarde a todos os que a queriam ouvir: “Deixós-estar”.


Bajuda guineense, anos 60


O CAPITÃO, SPÍNOLA E O DJINNE DJUNCORE

Devo esclarecer que, de todos os membros da família, o nosso avô materno, era o mais bem informado sobre os aspectos bons da presença portuguesa e com ele mantinha um relacionamento íntimo e confidencial, tanto assim que seria dele a ideia magistral de infiltra-se dentro do quartel com a missão bem definida de colectar uns pequenos pacotinhos de cor verde escura que eram distribuídos à tropa como ração de combate e que mais não eram senão o popular e vulgarmente conhecido caldo de galinha. A tropa não usava aqueles pacotinhos os quais, invariavelmente, deitava no caixote do lixo juntamente com os comprimidos a que se juntavam, também, e que, por minha conta, passei a coleccionar para tratar da saúde contra o vírus da fome.

A missão foi bem-sucedida porque juntava o útil ao agradável. O útil era os pacotinhos de caldo de carne que o velho caçador, especialista na arte de conserva e consumo de carnes secas, cego e sentado na sua varanda, tinha descoberto dentro do quartel e com o qual passou a melhorar, substancialmente, os ingredientes e o gosto do seu intragável prato de farinha de milho preto. O agradável para mim era a possibilidade de poder ludibriar as sentinelas, deambular impunemente dentro do quartel, enfrentando o perigo das botas da tropa, sempre prontas para afinar pontapés certeiros no cu dos pobres Jubis e, quando calhava, um pedaço de pão com um saboroso chouriço de carnes vermelhas vindo de uma alma caridosa. Para sobremesa serviam as cartelas de comprimidos das rações de combate, doces por fora, amargos por dentro, como o coração dos nossos políticos.

Mas, vamos deixar de lado o meu avô para lembrar que, um dos actos mais temerários, para além das suas frequentes saídas para as matas do Oio e Cola/Caresse por que ficou conhecido o Capitão Carvalho era o rebentamento de granadas. Sim, granadas lançadas a poucos metros de distância. Levantava-se numa bela manhã e de repente, como quem cumpria um ritual funesto, ouvia-se um ”Booom” enorme dentro do quartel e a seguir, no mesmo instante em que o cheiro irritante de pólvora invadia o espaço do refeitório e da messe dos oficiais, viam o Capitão a sair do interior de uma gigantesca bola de fumo e poeira, no seu passo pausado e firme de militar, vestido com o seu rigoroso e invariável camuflado. Nunca conseguimos saber que tipo de granadas usava nem descobrir o prazer que este oficial sentia nesses exercícios macabros de lembrar a todos que estávamos em tempo de guerra e de morte.

No meio dos nativos, muitos acreditavam que ele era invulnerável aos estilhaços das granadas. Na opinião de muitos, ele era detentor de um “baki-tcham” ou seja “mesinha” contra balas, para outros seria um protegido do próprio Djuncoré, o rei dos “Djinnés” que habitava o poilão luminoso da bolanha de Sunkudjumá, no prolongamento do rio Canjambari. Como sempre acontece em situações de guerra, era difícil separar o trigo do joio, o mito da realidade. O certo, porém, é que com conivência ou sem ela, o Capitão impunha, a seu belo prazer, a sua lei e as suas ordens na quadrícula a seu mando, exceptuando, claro, o território a oeste que o inimigo ia conquistando pouco a pouco alargando o corredor de Sitatô. E, quem se alia ao poder dos “Djinnés” mais cedo ou mais tarde terá que pagar as contas, diziam os mais velhos e entendidos na matéria. Seria este o caso do Capitão?

Naquele dia, estava no perímetro habitual, entretido a apanhar pequenas pedrinhas na estrada para as brincadeiras habituais quando, de repente, começa um movimento de vaivém da tropa que ocupa o local para uma improvisada parada militar. Da pista de aviação, onde aterrou um ou dois helicópteros, chega um veículo que se imobiliza junto a parada, de onde descem algumas pessoas, dentre as quais um velho oficial em farda de camuflado, corpo ligeiramente dobrado a frente, qual imbondeiro fustigado pelos ventos tropicais, uma bengala na mão direita. Disseram-nos depois que era o General Spínola.

Jolmete > O Gen Spínola falando à tropa
Foto: © Manuel Carvalho (2013). Todos os direitos reservados

O que aconteceu a seguir foi rápido e indescritível, não me lembro de ter ouvido o som da corneta, não houve discursos para a ocasião e os militares da parada, provavelmente, teriam executado os habituais gestos teatrais que culminavam no “apresentar armááá!”, prática marcial que o General não vira ou não tivera tempo de corresponder e, dirigindo-se ao Capitão perfilado a sua frente, ter-lhe-ia assestado uma violenta bofetada para depois puxar dos seus ombros as patentes que este orgulhosamente ostentava. E, naquele mesmo instante e no mesmo veículo, voltaram para a pista, levando consigo o Capitão Carvalho que, talvez pela primeira vez, na sua vida de oficial, viajava nas traseiras de um Unimog e, pior ainda, sem os seus lustrosos galões de comando. Mais tarde juntar-se-iam outros elementos do poder local para um desterro de muitos anos. Quando os helicópteros levantaram voo, ouviu-se um convulsivo choro da tropa metropolitana que assim demonstrava, aos olhos da população, os seus sentimentos de grande estima e de apego ao seu comandante de companhia.

Nunca antes, na minha vida, tinha assistido a uma cena tão comovente protagonizada por homens brancos e, como estavam de luto e não tinham nenhuma vontade de comer o guisado de carne de vaca que os esforçados cozinheiros nativos tinham preparado, um grupo de rafeiros famintos foi lá dar uma mãozinha, enchendo cada um a sua marmita bem a medida.

Por uma Guiné melhor, ninguém podia fazer mais e melhor que este “Show-off” público, em nome da justiça e da dignidade dos Guinéus, indiferentemente da cor da pele, da classe social ou do nível da patente militar. Os indígenas tinham ficado confusos e boquiabertos, pois desde os tempos de Mussa Molo que ninguém tinha visto um Capitão do exército português e branco a sofrer uma tão humilhante afronta ao seu estatuto de oficial superior por causa de alegados atropelos aos direitos humanos do “gentio” rebelde e num território em guerra.

Os discursos vieram depois com a entrada em cena de Issufo Sandem, dos nossos vizinhos mandingas e ferreiro bem conhecido por sua eloquência verbal. Saindo do nada, gesticulando freneticamente as mãos e fazendo jus a sua cidadania, num bem aprimorado português, explicava para a curiosa multidão que entretanto se tinha juntado no local, sobre as actividades e os métodos usados pelo Capitão nas sessões de tortura dos presos e que, por conseguinte, ficaria mui célebre:
- “O Capiton pega num gaijo, mete dentro de um bidon d´iagu, cabeças pra baixu e cús pra cima, dipois, com barriga grandi como prenhadas, tira i deita na tchon, piza barrigas com botas de tropa e iagu sair na bocas i na cus”(4).

Ta percebido?

De seguida, o grupo dos prisioneiros, que durante a visita do General tinha sido escondido no interior da tabanca, encabeçados por Tchamá ou Intchamá que, pela primeira vez, eram alvo de alguma atenção e envergando roupas mais ou menos decentes e sem o cheiro nauseabundo que lhes era característico, foram apresentados um a um como se fosse a primeira vez que eram vistos, quando na realidade, todos os dias e durante toda a fase da construção do aquartelamento, tinham sido utilizados como mão-de-obra nos trabalhos de escavação dos abrigos, valas, valetas e ainda na limpeza de toda a área que circundava o quartel e para onde estavam apontadas as metralhadoras que defendiam a aldeia.

Claro que aos olhos da população local, estrategicamente guiada e manipulada, tratava-se de “turras”, catalogados como IN e gente do mato que aterrorizava, matava e pilhava as nossas aldeias e, por isso, simplesmente, não podiam ter qualquer direito de existir e merecer a menor consideração e como tal eram simplesmente invisíveis. Era isto a realidade crua de uma guerra onde cada um tinha que escolher um dos lados, estivesse certo ou errado.

Voltando ao episódio de 69/70 com o Capitão, é claro que não vamos aqui afirmar, sem cairmos no risco de um grande equivoco, que aquilo que aconteceu teria sido o mau desfecho de um sinistro contrato satânico, como pensava o Aliu Samba e os restantes indígenas da aldeia no delírio das suas mentes animistas, mas não deixa de provocar certa perplexidade o facto de que, depois deste fatídico acontecimento de mau agouro, não houve nenhum outro Capitão que tivesse cumprido a sua missão até ao fim sem problemas, nesse subsector.

O primeiro a chegar, o Cap. Figueiredo (1970/72), teve um fim trágico a escassos meses do fim da sua comissão, quando estava a trabalhar no gabinete que o próprio tinha construído no local, onde dois anos antes o Cap. Carvalho tinha perdido os seus galões. O segundo, o Cap. Patrocínio (1972), com seis meses apenas, seria convocado junto a sede do Batalhão, em Bafatá, para receber uma “porrada” que o arredaria, definitivamente, da sua companhia, obrigando-nos a assistir a mais uma cena de choros e ranger de dentes dos seus desamparados rapazes.

O último, bem, o último tinha sido o Cap. Pedreiro Martins (Junho de 1974), a guerra já tinha chegado ao fim e de mais a mais, para uma companhia que tinha participado no trabalho titanesco de furar o cerco de Guidage e tinha depois passado algum tempo no inferno de Gadamael, os irãs, provavelmente, teriam concordado em poupá-los um pouco, deixando-os cumprir com pompa e circunstância a (des)honra que representou para Portugal e os seus aliados fulas de Sancorla, a entrega final do aquartelamento de Fajonquito aos “maquizards” do PAIGC para que assim se cumprisse a profecia de Cabral e pudéssemos, finalmente, passar de “uma Guiné melhor” com roupagem e estilo neocolonial para “uma Guiné bem pior” revolucionária, conforme estava superiormente predestinado.

Mas, na opinião de Aliu Samba e dos seus conterrâneos, a situação era bem mais complexa que isso e, estavam convencidos que a extinção da luz do poilão luminoso do lago Djuncoré, significava o desaparecimento do rei dos Djinnés, no preciso momento em que o PAIGC teria penetrado no coração sagrado do recinto dos poilões de Canhámina, capital de Sancorla, marcando assim o fim do regulado e de uma dinastia.

- Viva PAIGC!... Viva!!!
- Viva Titina Silá!... Viva!!!
- Abaixo a FLING!... Abaixo!!!
- Abaixo imperialismo!... Abaixo!!!
- Viva PAIGC!... Viva!!!
- Viva Osvaldo Vieira!... Viva!!!
- Abaixo oportunistas!... Abaixo!!!
- Abaixo o Colonialismo!... Abaixo!!!
- Viva Amílcar Cabral!... Viva!!!
- Vivam os Heróis da luta!... Viva!!!
- Abaixo barrigas de meia!... Abaixo!!!
- Abaixo Neocolonialismo!... Abaixo!!!

Aplausos camaradas aplausos, enquanto o pano desliza, pouco a pouco, para cobrir o triste cenário do palco quotidiano da alegria das nossas vidas.

Bissau, 21 de Janeiro de 2013.
Cherno Baldé (Chico de Fajonquito)
______

NOTAS: 

(1) - Guelá Baldé – Alf. Comandante do pelotão de milícias de Cambaju, morto em combate em 71 (não há unanimidade sobre a sua patente, muita gente, incluindo familiares, afirma que já tinha sido promovido a Capitão de milícias, antes da sua morte. No cômputo geral, havia no regulado de Sancorla mais de 5 Alferes/Tenentes e 1 Capitão, todos de 2.ª linha, no comando de pelotões de milícias (Sare-Uale, Sumbundo, Cambaju, Suna e Sare-Djamara) que a realidade do conflito tinha colocado na 1.ª linha da guerra, todos eles príncipes de Sancorla); - Carlos Bubacar Djau (Bubacar Fanca) - Alf. Comando, 2.ª Companhia, fuzilado pelo PAIGC nos anos 70; - José Manuel Sedjali Embalo (Sedjali Cumbael) -2.º Sargento Comando, 1.ª Companhia, fuzilado pelo PAIGC nos anos 70; - Mamadu Baldé (Mama Djamara) - Alf. Comando, 2.ª Companhia, falecido em Portugal nos anos 90; - Alanso Candé – 2.ª Companhia de Comandos; - Bodo Djau – Grupo de tropas especiais de Marcelino da Mata.

(2) - Guerreiro, herói e mártir.

(3) - “Caco Baldé” tem origens no meio e língua fulas, é uma alcunha bem conseguida e duplamente interessante. Caco, khaco ou haco, originalmente, quer dizer cor castanha (a cor das folhas secas), na língua fula, e servia inicialmente para designar a cor da farda das autoridades administrativas e/ou da tropa colonial. Mais tarde, para simplificar, este termo seria simplesmente utilizado para designar, de forma disfarçada e caricatural, as autoridades coloniais ou seus representantes. O apelido Baldé seria lindamente encaixado em acréscimo, certamente, seguindo a lógica da brincadeira muito habitual entre grupos que se consideram primos por afinidade (sanguínea ou territorial) - “Sanencuia”.
Por exemplo, os Djaló são primos dos Baldé por afinidade sanguínea, da mesma forma que o grupo fula, na sua generalidade, é primo do grupo etnolinguístico mandinga que abrange Saracolés, Soninqués, Bambaras etc., por afinidade territorial.
Também é bastante lógico se tivermos em conta que a maior parte dos chefes tradicionais fulas (régulos) e colaboradores das autoridades coloniais, no chão fula, ou pertenciam a esta linhagem ou tinham este apelido, de modo que é uma homenagem e, ao mesmo tempo, uma caricatura dirigida a linhagem dos Baldé, na minha opinião bem conseguida, por um primo, resultante da brincadeira entre grupos de afinidade, usando a figura da maior autoridade portuguesa, de então, no território da Guiné.
Não tenho a certeza e trata-se de uma conjectura da minha parte como pista para uma pesquisa mais aprofundada.

(4) - “O Capitão pega num gajo, mete dentro de um bidão cheio d’agua, cabeça para baixo e cu pra cima. Depois, com a barriga cheia e grande como uma mulher grávida, retira-o e deita-o no chão pisando a barriga com as botas de tropa, fazendo sair água na boca e no ânus”.
____________

Nota do editor:

Vd. último poste da série de 13 DE DEZEMBRO DE 2012 > Guiné 63/74 - P10796: Memórias do Chico, menino e moço (Cherno Baldé) (42): Quem roubou o nosso canhão?

18 comentários:

Tony Borie disse...

Olá Cherno Baldé.
Que interessante e importante documento, acabas de mostrar a todos nós, antigos combatentes, e não só.
A tua reflexão, explica um pouco o que se passava na mente dos naturais, que estavam na sua terra, e tu, embora criança, mas vivendo junto da "tropa", já sentias "os pontapés no cú, de algumas botas militares".
As questões que colocas em alguns momentos da tua reflexão, no entender de um antigo combatente, já com uma idade um pouco avançada, que te compreende, pois viveu dois anos admirando aquele povo, humilde, que vivia num meio rural e um pouco selvagem, sem o mínimo de condições, mas era puro nos seus sentimentos, e tal como uma simples gazela, só depois de cheirar o corpo, e saber o sabor da pele, o seu instinto natural, os fazia acreditar, ou única e simplesmente fugir, ou ignorar, quem deles se aproximasse.
As questões que colocas, vai demorar três ou quatro gerações a ter resposta, e mesmo assim, quem cá estiver nessa altura não vai receber uma resposta 100% certa, infelizmente.
Um abraço e obrigado pelo teu "documento".
Tony Borie.

antonio graça de abreu disse...


Muito bem, meu caro Cherno!...

A Guiné pelos olhos e entendimentos
de uma criança com "força na cabeça", uma criança sábia que cresceu e nos deixa agora pedaços de prosa envoltos num manto de sabedoria;
ou, se quiseres, a simples "sagesse"
dos factos e coisas grandes da vida.

Abraço forte.
Escreve sempre.

António Graça de Abreu

Antº Rosinha disse...

Qual seria a perspectiva do General Spínola para a solução do caso da Guiné “portuguesa”?

Cherno, imagina fazeres uma pergunta assim no jornal Nô Pintcha no dia 13 (treze)de Novembro de 1980?

Mesmo hoje ainda é tabú, em África em geral, não só na Guiné-Bissau, sem falar na outra Guiné.

Pois ainda há muitas teias de aranha nas cabeças.

Claro que eu, "colon" empedernido, tinha a mesma ideia do Ká oio, como lhe chamava o Nino no dia 14 daquele mês, podia-te explicar, o que pensava(mos)

Queriamos em primeiro salvar aquelas fronteiras (países) que não estavam garantidas, casos de Gôa e Timor são exemplo, (em 1968)em segundo, proteger o teu pai e família, e toda aquela geração de africanos, do destino que já havia no ex-Congo-Belga, Nigéria-Biafra, Ruanda e Burundi, Uganda, etc,etc.

Sabes que Amílcar é (foi)considerado como fundador do MPLA, simultaneamente com o PAIGC.

Se vês o que aconteceu, em Angola e na Guiné, principalmente em Angola em 28 anos, tem a explicação da luta de Spínola.

Enquanto Amílcar armou e puxou pela juventude, Spínola agarrou-se aos régulos, sóbas e mais velhos.

Mas como a minha guerra foi noutras latitudes, não são para aqui chamadas, fico por aqui, pois que aprendi a colonizar com caboverdeanos e angolanos da geração de Amílcar e vi o que estes pensavam como sei o que pensava Spínola.

Mas Spínola fez o que pôde com os meios que tinha contra "o mundo inteiro".

O que custa é ver os massacres que que não podemos evitar em Angola, Moçambique e Guiné a seguir ao 25 de Abril.

Cherno já uma vez me chamas-te apoiante de Salazar, mas sou mais Spínola.

Um abraço

Anónimo disse...

Amigo Cherno, ao vizitar o blogue nesta manhã de domingo, deparei-me com um dos mais intersantes textos que jamais tivera oportunidade de ler referentes à Guiné postados aqui no blogue, fiquei feliz, e agradeço-te por isso.
Um abraço
António Eduardo FERREIRA

Torcato Mendonca disse...

O que escreveste aqui, Caro Cherno, é para guardar na "pasta". Farei o mesmo aos comentários.
Apesar de eu ser contra a colonização, uma pergunta te faço: - a colonização portuguesa e a descolonização, não foi assim tão abjecta se com outras comparada?

Um abraço vai dando notas para melhor compreendermos a Guiné...África.

Por escrever África, o que se está a passar, neste momento, é grave e a Europa tem que se preocupar. Costumo dizer que, nós portugueses estamos mais próximo dos africanos do que de um eslavo ou nórdico. Ah a cor da pele, isso são tretas.

Abraço T.

Anónimo disse...

De antologia,meu Caro Cherno!


Abraço Grande!


Alfero Nativo (Pel. Caç. Nat. 63)


J.Cabral

JD disse...

Maravilha!
Neste texto sem ressentimentos, nem insolências, nem incriminações, quase romanceado, foi dita muita coisa inesperada, por alguém, que conheceu por dentro, e ainda conhecerá, as diferentes perspectivas sobre a questão guineense, sobre as relações coloniais, sobre a maior razão de contestação àquele regime (que me parece referir-se mais à dignidade, do que à distribuição da riqueza), sobre a política "por uma Guiné melhor", onde a economia, a saúde, a educação, os transportes, os abastecimentos, tudo dependia da tropa e dos consequentes elos estabelecidos com a população. E o Xico interroga-se, e interroga-nos com pertinência, sobre a alternativa, se não tivesse acontecido o corte abrupto das relaç~es entre portugueses e colonizados. Interrogações sem resposta, naturalmente, mas com várias soluções hipotéticas. É lindo o texto, e com uma revisão breve terá direito a figurar na primeira linha de uma antologia do que se tem publicado no blogue.
Abraços fraternos
JD

Manuel Carvalho disse...

Caro Cherno

É um prazer ler o que escreves, já andava para te dizer isto há algum tempo.Temos mais gente aqui no blogue de quem poderia dizer o mesmo.Com pessoas assim a Guiné e Portugal não teriam chegado a esta situação.

Um grande abraço

Manuel Carvalho

Anónimo disse...

De: Augusto Silva Santos
Para: Cherno Baldé

Caro amigo, simplesmente obrigado pelo que hoje nos deste a saber. São factos que merecem da parte de todos nós a melhor reflexão.

Um grande e forte abraço.

Anónimo disse...

Simplesmente antológico

Caro Cherno

Com a tua clarividência e sem ressentimentos para com os "tugas",porque até tens razões para isso,mostras a todos nós que bom seria para a Guiné haver muitos Chernos.

Um alfa bravo

C.Martins

Cherno Baldé disse...

Caros amigos,

Obrigado a todos pela recepção calorosa deste pequeno texto que comporta em si mais interrogações, como bem resumiu o amigo JD, do que respostas sobre a questão colonial vivida activamente e testemunhada por muitos de vós.

Todavia esperava que houvesse maior interacção sobre o tema e sobretudo queria gerar alguma discussão a volta de um periodo pouco claro, na historia de Portugal, referente aos 6/8 meses que se seguiram ao 25ABRIL: 28 de Setembro, 11 de Março, 25 de Novembro; O MFA, Spinola e Costa Gomes e respectivos impactos na descolonização; alternativas que se colocavam no passado e que não foram aproveitadas, mas que de certeza voltarão a colocar-se no futuro próximo pela própria dinamica das coisas. O caso do Mali é paradigmático e mostra claramente que apesar de tudo a África continua frágil quando confrontada com desafios e problemas globais que infligem o mundo.

O A. Rosinha, "colon inveterado" continua preocupado com as fronteiras coloniais e com razão, eu também estou, mas em menor grau que ele, porque a Africa está, também, numa dinámica de integração regional que deve interessar e mobilizar os cidadãos da região e todos os homens de boa vontade.

Sobre a natureza da colonização portuguesa que o amigo Torcato coloca, acho que este tema já tinha sido respondido por Cabral no seu celebre discurso sobre se "Portugal é um país imperialista?" considerando que por ser um país relativamente mais atrasado que os outros, Portugal não se podia dar ao luxo de fazer uma politica neocolonista nas suas colonias sob risco de perdé-las. De resto, tendo em conta os seus pressupostos básicos, não penso que qualquer colonização possa ser considerada melhor que outra.

Para terminar, quero informar que durante muito tempo, estive na dúvida se devia ou não escrever aqui o acontecimento fulcral que desencadeou está reflexao, isto é entre Spinola e o Cap. Carvalho. Finalmente não resisti a tentação de falar sobre o acontecimento que é real, esperando que o próprio, onde quer que esteja, me perdoará por este acto, cujo objectivo também servirá para mostrar as contradições que podiam existir entre os operacionais no terreno e as directrizes politicas ou seja o confronto entre tacticas locais e estratégias politicas mais globais.

E, finalmente um muito obrigado aos nossos incansáveis Editores.

Um grande abraço a todos,

Cherno Baldé (Chico de Fajonquito)


Cherno Baldé disse...

PS: Outra coisa que me parece ser importante referir aqui diz respeito a uma certa ideia, aqui veiculada ( José Brás), em como "os que estiveram de um e doutro lado aconteceu por um simples acidente de percurso", ideia que, na minha opinião, é muito errada, tendo em conta o percurso histórico dos protagonistas e seus posicionamentos estratégicos vi-a-vis da garantia ou conquista de uma certa liberdade/autonomia na defesa dos seus interesses vitais, no momento dos acontecimentos e na base da leitura e compreensão da situação a que foram confrontados.

Cherno

Anónimo disse...

NOTA:

Quanto as fotos que acompanham o texto, exceptuando a primeira, foram todas retiradas do blogue.

Cherno

Anónimo disse...

Caro Cherno

Vou tentar esclarecer-te sobre esse período tão conturbado da história de Portugal.
O general Spínola assumiu a presidência da junta de salvação nacional porque o general Costa Gomes não quis.
O general Spínola pretendeu fazer um referendo na Guiné,mas devido ao prec esse processo foi liminarmente rejeitado,não só porque não tinha apoio politico e muito menos militar.
Nessa altura a principal preocupação sobre as ex-colónias era, como é evidente, Angola e Moçambique e o seu processo de descolonização.
A facção militar subordinada ao pcp teve especial preponderância neste processo.
A Guiné era irrelevante,aliás estou convencido que a própria guerra colonial teve como principal objectivo manter sobre administração portuguesa principalmente Angola e secundariamente Moçambique, só que para o regime ser coerente também tinha que manter as outras.
Apesar de a história não poder voltar atrás,mesmo que houvesse vontade política e poder militar, julgo que na altura o percurso seria o mesmo.
Tanto assim foi que rapidamente se deu a independência à Guiné.
Posso parecer insensível à esperança (na altura) de muitos guineenses..não, não sou, mas como sabes na política normalmente não há "estados de alma",infelizmente.

Um abraço

C.Martins

Cherno Baldé disse...

Caro C. Martins,

Obrigado pelo esclarecimento, na verdade a posicao de Portugal em relacao a Guiné foi sempre muito ambigua, do tipo: nao quero mas nao deixo para outros. Certamente que a Franca nao se importava nada em junta-la ao resto dos territorios que ja possuia na zona, naquela época e, talvez ainda hoje.

E verdade que na politica nao ha estados de alma, mas ha o que se chama honra e dignidade e o referendo, na altura, para Portugal, devia fazer parte dessa segunda categoria politica.

Um abraco amigo,

Cherno Baldé

Antº Rosinha disse...

Amigo Cherno, o C. Martins descreve muito bem o que se seguiu.

Mas a ambiguidade de Portugal que referes quanto à Guiné, sim de imensos portugueses podes dizer que nem era ambiguidade, era pior, era desdém por tudo o que fosse África.

Por isso apareceu o europeísmo cego, e quem tivesse ideias como Spínola, que acreditava no futuro da tradição africanista, era queimado vivo.

No dia 11 de Março, que tu referes, vi-o eu chegar ao Brasil, (refugiado) na televisão a ser entrevistado pelos jornalistas, completamente derrotado.

Spínola não era ambíguo quanto à Guiné, era sincero e os vossos mais velhos sabiam disso.

Boa sorte Cherno

José Manuel Paula disse...

Cherno o seu comentário trouxe-me
memórias,sabe é que estive em Fajonquito no ano 67 até Novembro de 68 fazia parte da Compª 1685 os
"Insaciáveis" comandada por um Grande
Capitão,Alcino de Jesus Raiano um homem que nunca admitiria coisas como a que conta.Tambem estive em Cambajú onde tive o privilégio de estar com o Comdt.Senagalês para o estabelecimento de um "modus vivendi"pacífico.Conheci muito bem
Guelá Baldé como tenente e participei em conjunto em várias operações.Desses tempos guardo aquilo que me é possível já lá vão mais de 40 anos.

José Manuel Paula
Ex Furriel Meliciano

João Martins disse...

Caro amigo e camarada Cherno Baldé
Trato-te por amigo porque é assim que trato todos os "homens de bem", trato-te por camarada, porque durante a guerra estavas ao nosso lado, e, como tal, sujeito a "cair" em decorrência de balas ou de estilhaços das armas fornecidas pelas potências que, então, como agora, tudo fazem para dominarem o mundo.
Do que nos contas, nada me surpreende, tive conversas dessas, muitas vezes, com os meus soldados que eram do recrutamento da Província, e que, aconselhados pelos seus familiares, punham a hipótese de se passarem para o outro lado, de facto, não sabiam de que lado deviam estar, e apenas por esta razão, pelo coração, consideravam-se portugueses e queriam estar ao nosso lado e defender a nossa bandeira, aliás Amílcar Cabral no tempo do General Spínola compreendeu que um acordo com Portugal era o melhor que podia acontecer à Guiné, e, por outro lado, sabiam que os elementos do PAIGC depois das lavagens ao cérebro nos países comunistas, mostravam tal ferocidade e ausência de princípios que não teriam qualquer pudor em eliminá-los porque não passavam de gente sem prncípios.
Aliás, foi gente dessa que os majores, desarmados e com a melhor das boas vontades procurando encontrar uma solução pacífica para o coflito que nos opunha, foram barbaramente assassinados, não por militares, dignos desse nome, mas por gente sem escrúpulos.
Gente com fortes ligações às grandes potências, nomeadamente à URSS, à China e a Cuba, com agentes na República da Guiné - Conakri, governada por Secou Touré que pretendia um protagonismo que era ameaçado pela grande figura de Amílcar Cabral, situação posteriormente aproveitada por João Bernardo Vieira, que não só tirou Amílcar do seu caminho, como aproveitou a situação para eliminar muitos outros possíveis inimigos.
Por outro lado, a KGB também tinha homens profundamente infiltrados nas forças armadas portuguesas difundindo uma ideologia de pseudo-liberdade que não existia na União Soviética, nem mesmo há, hoje em dia, em Portugal, embora, quem anda distraído pense o contrário.
Em consequência do apoio internacional aos movimentos de libertação, da incompetência dos governos portugueses, primeiro de Salazar que já estava velho, caduco e sem forças para se impor, pelo que, inteiramente dominado pela PIDE, e, depois, por Marcelo Caetano, que não esteve à altura das circunstâncias porque não compreendeu a gravidade da situação e não previu o que era facilmente previsível, e não deu o necessário apoio a Spínola.
Por curiosidade, lembro-me de ter sido o comandante do pelotão de artilharia que saudou Marcelo Caetano com uma salva de tiros de canhão, no aeroporto à sua chegada, e, no cemitério, na cerimónia que lá se realizou, e em que pressenti que, com aquele indivíduo que podia perceber muito de direito, mas que não estava à altura do lugar que ocupava, tudo ía acabar mal.
Cherno Baldé, camaradas, é tempo de não ter receio de represálias, é tempo de falarmos, é tempo de apresentarmos as nossas leituras, é tempo de pedirmos perdão por todos os actos que tenhamos cometido e que não nos dignificam, é tempo de voltarmos a África, esse grande continente, que viu há já mais de cinco séculos a chegada de portugueses e que contunua a chamar por nós para, finalmente, obter o desenvolvimento e a felicidade a que tem direito.
E recordo a grande amizade que muitas vezes senti e que, em situações em que "certos elementos" me queriam "apanhar", a população local, corajosamente, me defendeu e protegeu. Senti que se tinhamos inimigos, muitos mais eram os nossos amigos, sentimento que não se desenvolve de um dia para o outro, mas é o resultado de uma longa e profícua convivência.
Desejo o melhor possível ao povo da Guiné.
Grande abraço.
João Martins